EMBARAÇOS NA PÁG. 2
Alberto Dines
Previsto, inexorável, todos sabiam que o vexame aconteceria. Mais cedo ou mais tarde, numa sexta-feira, algum dos combativos articulistas da Página 2 da Folha de S.Paulo desceria o sarrafo na excelsa figura do presidente do Senado, José Sarney, que neste dia oferece suas inspiradas reflexões na mesma página.
Sarney sempre foi um prato feito e, quando assumiu a presidência do Legislativo do governo progressista de Lula da Silva, a Folha deveria ter imaginado que seu dileto colaborador e “amigo da Casa” logo receberia as pedradas a que faz jus pelos serviços prestados à sobrevivência do coronelismo. Manteve-o na página, contrariando normas que tornou notórias quando dispensou outros colaboradores que assumiram funções públicas.
O desenlace ocorreu na sexta, 2/5, quando a aguerrida Eliane Cantanhêde ofereceu ao leitorado da Folha a esplêndida e definitiva peça jornalística intitulada “Amigão” [veja íntegra abaixo].
E agora, José? Se responder, estará usando espaço do jornal numa causa pessoal; se calar, consente: aceita as graves acusações da jornalista que, além da coluna, ocupa importante posição no comando do jornal. E na Folha, como sabemos, nada acontece por acaso.
Graças ao amigão, ACM livrou-se por alguns dias do processo por quebra de decoro parlamentar. Diante do que foi denunciado pela Folha quem corre perigo agora é o coleguinha ao lado, o ínclito José Sarney.
ASPAS
“O amigão”, copyright Folha de S.Paulo, 2/5/2003, pág A 2
“Todo mundo dizia que José Sarney trabalhava intensamente para livrar a cara de ACM, amigo e ministro do seu governo, no processo dos grampos da Bahia.
Enquanto isso, o próprio José Sarney, seus assessores e aliados tentavam de tudo para dar uma versão diferente: a de que ele se comportava e continuaria se comportando como ?um magistrado?. ?Lavaria as mãos?, sem interferir -nem a favor nem contra.
A decisão da Mesa Diretora do Senado, anteontem, acabou com qualquer dúvida. Sarney foi central, decisivo, para o resultado: a Mesa recusou o pedido de abertura do processo por quebra de decoro, o que, na prática e para a história, significa arquivamento. Até pelo menos alguém ou algum partido entrar com recurso.
O envolvimento direto de Sarney ficou patente, principalmente, pelo dia escolhido para livrar a cara de ACM: quarta-feira, 30 de abril, ao mesmo tempo véspera do feriado de Primeiro de Maio e dia da festa política superproduzida em que Lula entregou os textos das reformas tributária e da Previdência ao Congresso.
Com tantos discursos, textos, governadores, efeitos de marketing (como ir de ônibus ou a pé entre o Planalto e o Congresso) e muita polêmica em torno das reformas, o caso ACM por pouco não ficou soterrado. Tanto no interesse dos próprios políticos como no espaço da imprensa.
O dia, portanto, foi escolhido a dedo para tirar ACM e a decisão, no mínimo questionável, dos holofotes das críticas e dos críticos. E quem escolheu o dia foi o amigão Sarney.
O presidente do Senado vem se empenhando para polir cada vez mais seu currículo, e com nuanças de esquerda. A aproximação lenta e segura com Lula e o PT, que não é de hoje, faz parte disso. E os elogios ao presidente também. Ele foi dos primeiros a defender a reeleição em 2006.
Mas não é favorecendo escancaradamente ACM e fingindo que ele nada teve com os grampos que Sarney vai dourar o currículo, dar fecho de ouro à carreira e confirmar positivamente o seu nome para a história.”