APURAÇÃO E NARRATIVA
Raquel Paiva e Muniz Sodré (*)
Foram vários os jornais a dar destaque à história do operador de máquinas baiano Amilton dos Santos, que se recusou a derrubar com uma retro-escavadeira duas casas habitadas, para cumprir uma decisão de reintegração de posse de um terreno.
Narra a repórter Heliana Frazão, de O Globo (4/5/2003):
"Pai de nove filhos, Amilton, de 53 anos, é tratorista há 33 anos e disse que nunca havia derrubado casas habitadas. Ele disse ter certeza de que tomou a decisão acertada. No local, ouviu manifestações emocionadas de agradecimento:
? Não tenho como retribuir. Pelo menos estou passando o fim de semana em casa, com meus filhos ? agradecia Telma Sueli Santos Sena, 40 anos, que juntamente com a vizinha Ana Célia Gomes Conceição, seria despejada".
Para o jornalismo, o episódio tem, em princípio, interesse técnico. Pelo modo como foi apresentado ? uma seqüência cronológica de enunciados com um personagem constante ?, ele se reveste de uma aura de "conta-se", isto, de indisfarçável narratividade. É o que nos permite falar de caso, uma fórmula jornalística para tratar o acontecimento com princípio, meio e fim, apropriado à narração.
Mais de um estudioso de mídia tem observado que o caso é a forma mais comunicativa para a transmissão de fatos com forte conteúdo humano. A chamada "grande reportagem" sempre foi o recurso jornalístico privilegiado para o exercício da narratividade (logo, uma variante do caso), levando-se em conta que a estrutura narrativa é superior aos veículos que a realizam. Assim, ela pode dar-se no romance, no cinema, na televisão, mas também na comunicação não-ficcional de fatos da atualidade jornalística, a exemplo da reportagem.
É certo que esse gênero faz-se cada vez mais ausente no jornalismo escrito predominante. No entanto, nos documentários, "casos especiais", minisséries e gêneros afins na mídia audiovisual, o caso, com todas as suas inflexões dramáticas, é uma forma privilegiada. Ele evoca o espírito da narrativa que, muito além do mero arcabouço técnico, deixa aflorar o inesperado ou a surpresa de uma experiência humana. Na narrativa, como se sabe, a variedade e a dispersão dos fatos ganham, por meio da ordenação dramática denominada "intriga", uma síntese integradora, capaz de oferecer ao ouvinte, espectador ou leitor uma significação qualquer. O real faz-se inteligível, porque a narrativa o humaniza.
É preciso deixar bem claro que o caso jornalístico não é a mesma coisa que a narrativa plena. Mas a redução técnico-midiática da polivalência do acontecimento aproveita elementos narracionais, a exemplo do personagem-ator recorrente, que é chamado de "anafórico" pelos teóricos.
O tratorista é a anáfora do caso em pauta:
"Amilton conta que, ao chegar à empresa, foi orientado a fazer um trabalho, sem saber do que se tratava. O operador disse que o homem que contratou o serviço informou apenas que a tarefa era derrubar uma casa velha.
? Mas quando cheguei ao local, vi a agonia dos moradores, gente chorando, me implorando para parar a máquina. Fiquei sem saber o que fazer. Pedi a Deus que me iluminasse. Pensei nos meus filhos em casa, poderia estar acontecendo comigo e não agüentei ? emociona-se, acrescentando que não é religioso, porém não deixa de chamar pelo nome de Deus".
Os lances subseqüentes ? a voz de prisão dada ao tratorista pelo oficial de justiça com o aval dos policiais militares, o avanço da retro-escavadeira até a porta da casa, a decisão corajosa de não demolir ? são empáticos e granjeiam a comoção e o respeito do leitor para com a atitude de Amilton.
"Espírito comum"
O episódio baiano, em princípio, não teria nada a ver com um outro acontecimento (O Globo, 5/5/2003) no distante Iraque, relativo aos momentos finais de Mohammad al-Sahaf como ministro da Informação de Saddam Hussein. Como se sabe, o ministro tornou-se cult por suas informações escandalosa e divertidamente falsas sobre os rumos de batalha contra os americanos invasores. Mas sob a forma de um "caso", narrado por Inigo Gilmore (Daily Telegraph), o ministro ganha um inusitado contorno humano, pelo menos nas palavras de uma testemunha (um primo seu, general de exército), segundo a qual Sahaf desistiu de seu posto apenas pouco antes de os americanos chegarem à sua rua:
"Por dois dias ele ficou comigo sem comida, sem nada. Ele cumpriu o seu dever até o fim. Foi valente".
O dramático mistura-se ao patético, quando Sahaf faz lembrar o personagem Brancaleone, do cineasta Mario Monicelli, na voz da mesma testemunha:
"Ele quer sair do Iraque. Quer chegar ao Egito. Tem dinheiro escondido num banco e adora as mulheres egípcias".
Amilton e Sahaf reencontram-se jornalisticamente na forma caso, resguardadas as diferenças. Sahaf hibridiza o burlesco com a lealdade, o que permite extrair-se de sua história um arremedo de moral fabulatória, com algum fundo ético. Já Amilton protagoniza um acontecimento rico de "eticidade", com a possibilidade de uma moral extensiva a aspectos mais amplos da sociedade global. Ele responde à questão de quando é imperativo infringir as determinações "de cima", seja um mandado de despejo, seja a conveniência de um ajuste fiscal, seja uma diretriz do Fundo Monetário Internacional.
Amilton ouviu, como Sócrates, o seu daimon interno, atendeu ao coração e à consciência ética, certamente por ainda ser atravessado por um "espírito comum". Tanto que foi louvado como herói na comunidade periférica onde mora. Nome do bairro? Palestina ? irônica surpresa do destino que habita toda narrativa.
(*) Professores da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro