RESCALDOS DA GUERRA
Nilson Lage (*)
Em 24 de janeiro passado, uma sexta-feira, um grupo de cientistas americanos encontrou-se com Joseph Collins, assessor do secretário-adjunto de Defesa Paul Wolfowitz, e lhe entregou uma relação de cinco mil lugares de importância cultural ou arqueológica que deveriam ser preservados no já então programado bombardeio ao Iraque. O primeiro da lista, redigida pelo professor McGuire Gibson, do Instituto Oriental da Universidade de Chicago, era o Museu Nacional de Bagdá, exatamente aquele que foi saqueado no dia seguinte ao colapso do governo de Saddam Hussein, sem que as tropas americanas fizessem algo para protegê-lo.
Uma omissão ou desobediência desse tipo seria possível em uma força armada incompetente e mal treinada, não na versão moderna das legiões romanas. A intenção de destruir ou espalhar tesouros ímpios seria admissível em um daqueles fundamentalistas radicais do Sul dos Estados Unidos, do tipo que sequer admite o estudo da Teoria da Evolução e ainda cultua a cruz em chamas da Klan. Não é certamente o caso de Wolfowitz, que foi decano da Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins, chefiou embaixadas e é bem conceituado na formulação de políticas de segurança ? tanto que o democrata Bill Clinton o designou, em 1995 para a comissão que trata de funções e aptidões na comunidade de inteligência dos Estados Unidos.
Isso me levou ? a mim, que não sou especialista em assuntos internacionais ou americanos ? a me deter na figura e nas idéias do Dr. Wolfowitz. Segundo o Washington Times, jornal que compete com o muito mais respeitável Washington Post e é geralmente tido como bom intérprete da direita americana, a tese central do secretário-adjunto é "prevenir-se contra a emergência de superpotências regionais hostis, por exemplo, Iraque e China". Na opinião dele, a América "representa algo decente e importante": "O que é bom para nós é bom para o mundo, e assim queremos que seja". Para o New York Times, a doutrina Wolfowitz inclui clara rejeição do "internacionalismo coletivo", o que indica papel não decisório, para a ONU, bem como para as alianças regionais de que os próprios Estados Unidos participam.
Especialista em tornar certo o incerto
Os textos de Paul Wolfowitz são muito técnicos e acadêmicos. No entanto, a origem de suas idéias remonta ao curso de graduação em Matemática e Física que concluiu em 1965, na Universidade Cornell. Um dos problemas centrais dessas ciências, desde o início do século 20, é a Teoria da Incerteza ? por exemplo, a decisão sobre para qual lado cairá uma carta de baralho cuja espessura é desprezível, quando posta de pé; ou como chegar a resultados que demandariam milênios de cálculos nos computadores mais rápidos possíveis. Um dos atalhos, proposto em data relativamente recente, são os algoritmos genéticos. Outro, que se experimentava antes, é basear-se em suposições analíticas (heurísticas) ou intuitivas, levando-as adiante até que se provem mais ou menos adequadas.
Terá sido esse o caminho que o Dr. Wolfowitz transferiu para seu campo de pós-graduação, na Universidade de Chicago no final da década de 1960, sob a orientação do professor Albert Wohlstetter: as ciências políticas, especificamente a tomada de decisões em assuntos de segurança nacional. O ideário que resultou desses estudos e das experiências subseqüentes (em controle de políticas de desarmamentos, entre outros) pode ser resumido em alguns tópicos, segundo um artigo de Jack Davis supostamente destinado a agentes de inteligência:
** Esclareça o que é conhecido expondo as evidências e apontando os padrões de causa e efeito;
** Estruture cuidadosamente as suposições e argumentação sobre o que é desconhecido e o que não se pode conhecer;
** Traga a opinião baseada na experiência (expertise) para lidar com o planejamento e ação em importantes ameaças ou oportunidades de baixa previsibilidade.
Paul Wolfowitz julga importante assegurar relações muito íntimas entre a instância política e o mundo dos analistas de inteligência: "A separação artificial entre a inteligência e a política serve apenas para degradar o desempenho de ambos os sistemas".
Radicalismo e pragmatismo
Mas o que mais interessa é realmente sua concepção de poder único e incontestado; a caracterização como "superpotências regionais" de países tão diferentes quanto o Iraque e a China; o radicalismo (certa vez, ordenou o recolhimento e destruição de 600 mil quepes fabricados na China, argumentando que "as forças armadas americanas não devem usar objetos feitos na China ou com componentes chineses"); os reparos que faz à objetividade (descrê da possibilidade de se considerar sem tendenciosidade política aspectos que envolvem incerteza); a facilidade com que transita do apoio a ditadores (na Indonésia, onde foi embaixador; nas Filipinas) à aliança com os que intentam derrubá-los, com total pragmatismo; a consideração de que símbolos e documentos capazes de induzir ao orgulho nacional ou religioso podem prejudicar a "dominação benevolente" dos Estados Unidos, cujas instituições seriam, julga ele, modelo único para o mundo.
No entanto, o próprio percurso histórico torna cada vez mais ameaçadora a aliança antes impensável entre o grupo neoconservador erudito que Wolfowitz representa e a direita menos sutil que se considera geralmente associada ao presidente George W. Bush e ao seu secretário de Defesa, Donald Rumfield.
Bailar com o perigo
O que isso tem que ver conosco? Pode ter pouco, pode ter muito.
A economia real dos Estados Unidos tem crescentes áreas de deterioração, desde a siderurgia à indústria automobilística e, ultimamente, à agricultura, que sempre foi um ponto forte do país; os setores gravosos se multiplicam, em parte por causa dos salários exageradamente altos e da exportação de fábricas, principalmente para a Ásia e o México.
Qualquer que seja o rumo do desenvolvimento do Brasil, se ele ocorrer, o país competirá com os Estados Unidos em vários campos, com algumas vantagens estratégicas relevantes. Transferida para fora da órbita da segurança, uma doutrina como a do Dr. Wolfowitz pode assim tornar-se ameaçadora. A potência militar do Brasil não é considerável, no caso, nem se presume que venha a ser; em termos de capacidade econômica e tecnológica, a perspectiva não é exatamente essa.
Situações de nítida divergência entre Brasil e Estados Unidos envolvem, além da própria questão dos limites do poder imperial de Washington, a Venezuela, a Colômbia, a Argentina e a tríplice fronteira em que os americanos afirmam haver agentes da al-Qaeda, com a mesma convicção com que sustentaram e sustentam a suposição de existência de armas de destruição em massa no Iraque, mesmo que elas não tenham existido.
Como disse um personagem sombrio da história recente da humanidade, verdade é ou pode ser, dessa perspectiva, uma mentira infinitamente repetida. Portanto, discuti-la ou descobri-la não faz sentido, uma ver tornado certo o incerto, em um passe de mágica. Perícia de comissões técnicas (jamais isentas, diria Wolfowitz), jornalismo investigativo, também não.
Outro risco é o aguçamento da competição ? econômica e política ? , já evidente, entre os Estados Unidos, de um lado, e a Europa, de outro (basta uma pequena expansão do euro para bloquear as emissões sem inflação que sustentam a economia americana); ou uma iniciativa de confronto com a China ? país evidentemente nada semelhante ao Iraque, sob qualquer aspecto. Até hoje, os Estados Unidos têm-se limitado a ameaçar os chineses com redução de compras e investimentos, bloqueio a aliados seus (como o Paquistão) e apoio a inimigos regionais no jogo de poder da Ásia (como é o caso da Índia).
O Brasil concentra muitos capitais de risco europeus e busca maior aproximação tanto com a China quanto com a Índia ? o que é facilitado pela semelhança de nível tecnológico e de possibilidades de consumo, bem como pela imagem simpática que os brasileiros construíram no mundo, com seu futebol, seu carnaval, sua música, sua cultura tolerante e seu pacifismo.
Educação massificada para os latinos
Mais imediato é o fato de que a expansão americana sobre o Brasil já se vem efetivando, bem antes da Alça ? no direito, na educação e em certos enfoques das ciências humanas, como é o caso das relações entre sexos (que eles chamam de "gêneros") e etnias. Historicamente, estamos na órbita da potência americana pelo menos desde a Segunda Guerra e, em condição bastante subalterna, desde os anos 1980 e o governo Collor.
Na educação, é inevitável a previsível a oferta maciça cursos à distância ou semipresenciais, de graduação ou pós-graduação, em universidades americanas, ministrados em português e, provavelmente, de qualidade duvidosa e intenção propagandística.
Caso interessante é de uma tal Wisconsin International Univesity <www.wintu.com.br>, que "não projeta seus programas de graduação para satisfazer qualquer exigência estabelecida por departamentos regionais aprovados pelo Departamento de Educação dos Estados Unidos", mas consulta "conselheiros de educação e/ou o Ministério da Educação em cada país onde atua para prover cursos que melhor satisfaçam às necessidades dos estudantes locais"; assegura que seus diplomas de mestrado à distância (em educação e direito) "são reconhecidos, após a conclusão pelo alunado, por universidades brasileiras, seguindo a LDB ? Lei de Diretrizes e Bases ? do Brasil".
O preço cobrado (30 mensalidades de R$300), o pedido de uma taxa de matrícula adiantada, a ser depositada na conta de um "representante no Brasil", fazem desconfiar que isso realmente exista; encaminhei o e-mail da proposta e o endereço de internet à Polícia Federal e à Sesu-MEC, por via das dúvidas.
Mas não são certamente casos de vigarice outros tantos de que se fala constantemente no setor de ensino, particularmente entre a universidades privadas brasileiras sempre dispostas a consórcios que lhe rendam clientes e prestígio.
O risco para a mídia
Quanto à mídia, conta-se com investimentos pesados do grupo Murdoch ? o mais à direita de todos os segmentos conservadores da mídia americana. A perspectiva de ingresso de capital estrangeiro poderá ter, em um primeiro momento, alguns resultados positivos. É possível que mude a estrutura familiar e paroquial das maiores empresas brasileiras de comunicação: indícios disso surgem com a profissionalização da gestão da Rede Brasil Sul (grupo Sirotsky) e do Estado de S. Paulo; pelo menos no primeiro caso, um dos objetivos é evitar conflitos de interesse entre os muitos proprietários da terceira ou quarta geração da família.
Como decorrência dessa gerência profissional, é possível que se criem empregos e surjam melhores políticas de recursos humanos, embora a tendência seja manter os veículos brasileiros atrelados às informações (e aos interesses) das redes globais. O que conviria ao Brasil e ao público brasileiro seria exatamente o contrário: que eles oferecessem visão mais "brasileira" das principais questões mundiais, além de mais "nacional" das principais questões regionais.
O fato de se amiudarem contatos de financiadores e de fundações americanas com empresários do ramo em plena crise econômica e, mesmo, junto a meios profissionais, a pretexto de assistência técnica ou alianças corporativas, ganha sentido particular quando a imprensa dos Estados Unidos enfrenta situação de constrangimento que não é vista, pelo menos, desde o tempo da Comissão de Atividades Anti-americanas, presidida pelo senador Joseph McCarthy, há meio século.
Ou quando, após ter advertido enfaticamente os jornalistas que, caso não se integrassem às forças americanas e se submetessem à censura militar, correriam todo tipo de risco, as tropas dos Estados Unidos envolveram-se em incidentes como o bombardeio do Hotel Palestine, ajudando a criar uma situação em que as baixas entre os repórteres foram proporcionalmente muitíssimo maiores do que as entre qualquer outro segmento envolvido na guerra do Iraque, incluindo-se os combatentes.
(*) Jornalista, professor-titular da Universidade Federal de Santa Catarina