TEMPOS MODERNOS
Cláudio Julio Tognolli (*)
Uma das novidades alvissareiras da música, nos anos 60, foi inventada pelo ex-beatle George Harrison: o chamado "backward masking", que consistia em gravar um acorde ou solo de guitarra e, depois, revertendo a bobina do gravador, fazer com que os sons figurassem de trás para a frente. Naturalmente, o som começa alto e vai abaixando. De trás para frente, nesse ardil, o som começa baixo e aumenta em cascata, um efeito emocionado e emocionante. Sobretudo quando aplicado ao piano.
Mas o que isso tem a ver com crítica de mídia? Tudo. Uma das práticas guardadas a sete chaves pelos comandantes de publicações é justamente o mesmo ardil, que na imprensa dos EUA leva nomes facilitários que vão desde "gimmick" até "catch 22". No Brasil não tem ainda nome próprio, tamanho o mistério que gravita entre esses arcanos maravilhosos e bestiais que aqui chamaremos de "jornalismo de trás para a frente". Ou jornalismo fatiota: porque necessariamente requer os rigores dos engravatados que dão ordens editoriais.
Esse jornalismo backward masking é editorializado dos pés à cabeça, embora não pareça.
Caudatário das revistas de maior circulação nos EUA ? Time, Newsweek e US News & World Report ?, esse jornalismo postula que tudo a sair nos jornais "menores" é coisa emblemática do lixo. Portanto, para se desfilar nas páginas das poderosas revistas há que se disparar frases que se conectem com a linha editorial e ideológica dessa mídia grand monde.
A revista Veja, em particular, sempre foi a maior praticante do jornalismo fatiota. Por respeito aos jornalistas envolvidos nos episódios que se seguem, vamos omitir-lhes os nomes. Estamos nos anos 1980, quando a direção de Veja determina que se faça uma capa com o médium Chico Xavier. Entra em ação o jornalismo fatiota: a direção ordena que se apurem frases "de efeito", vindas de "gente importante" e que justificariam uma capa ? com o cuidado de que esta não agredisse aos católicos "xiitas", a quem se endereçam as capas recentes de Veja e suas concorrentes, maiores e menores. Que, como já exposto nesse Observatório nas últimas edições, "entupiram" os leitores com perfis de Jesus Cristo, a configurar uma saturação mais pesada do que carregar uma cruz sem a ajuda de Cirineu.
Frase de efeito
Voltando a Chico Xavier. O repórter, destemido, conseguiu para a revista frases de efeito vindas de Dom Aloísio e Dom Ivo Lorscheider, os então papas do catolicismo autóctone. O jornalista aproxima-se de um dos diretores da revista e dispara, lá pela madrugada de uma quinta-feira. "Consegui que eles dissessem que o Chico Xavier é um fenômeno". A que o diretor devolve: "O Dom Aloísio disse isso?". E o repórter "Dizer, não disse… mas estamos negociando a frase".
Corte para 2003. Na quinta-feira, 1? de maio, o presidente da CUT, João Felício, afirmou que a CUT poderá defender a redução dos prazos oficiais de reajustes dos salários para garantir seu poder aquisitivo. O prazo atual é de 12 meses. Felício disse que correr agora atrás do gatilho salarial (reajuste automático do salário quando a inflação ultrapassa um índice) é ajudar o retorno da inflação.
Um dos episódios do jornalismo fatiota tem a ver justamente com o gatilho salarial. Estamos agora em 1989. CUT e CGT, naquela época, defendiam o gatilho salarial oferecido pelo então ministro da Fazenda Luiz Carlos Bresser Pereira. Eis que surge um brigadeiro, Paulo Roberto Camarinha, ministro-chefe do Emfa, que também passa a defender o gatilho, já que beneficiaria os militares. Não deu outra: virou capa de Veja, já que pela primeira vez na história um brigadeiro se punha lado a lado com o lumpesinato. Mas a dificuldade era achar um sindicalista que, naqueles tempos ainda bicudos, mesmo sob Sarney, defendesse um militar. Era madrugada de sábado. A revista ainda era fechada na base de máquinas de escrever. O repórter telefona para os sindicalistas Antonio Rogério Magri, Luiz Antonio Medeiros e Jair Meneghelli. Os dois últimos, quase que de uma maneira combinada, disparam a mesma frase, inútil para os preceitos e rigores do jornalismo fatiota. "Não sou louco de falar bem de militar", dizem os dois. Mas Magri ajudou um pouquinho "Ele é bom brigadeiro".
Lá pelas 4 da manhã de sábado, a diretoria de Veja, que gostava de longos e lautos jantares tresnoitados no restaurante Massimo, em São Paulo, chega para ler a reportagem de capa. Imprecam contra a frase de Magri. Queriam algo mais forte, mesmo que ad hominem ? no caso do repórter, é claro. O repórter telefona a Magri, que dispara "Olha, eu quero muito continuar dormindo, mas também quero muito sair na Veja. Me põe uma frase na boca, aí você também vai dormir". O repórter bola uma frase de efeito, no estilo do jornalismo fatiota, na boca de Magri. Ele concorda. E ganha o lead da reportagem de capa.
Sem menção
Essa prática tanto se deu tantas vezes que os repórteres elaboraram um dicionário de idéias feitas muito parecido com o que Flaubert pôs ao final de Bouvard et Pécuchet. Era em verdade um dicionário de verbetes, coisa como "sindicalista que fala bem da direita", "direitista que é simpático às esquerdas" etc. Funcionava bem nos fechamentos e chegamos a elaborar pelo menos 70 verbetes.
Obviamente, as páginas dos jornais, dedicada aos articulistas, ainda devem guardar um pouco disso. Volta e meia coordenadores de opinião de jornais trocam figurinhas sobre renovação de quadros de articulistas que falem disso ou daquilo, ainda dentro dos preceitos e dos jogos de linguagem (puro Wittgenstein, puro Paulo Freire) do jornalismo fatiota ou backward masking.
Raramente as leis do jornalismo fatiota vazam para o populacho que consome jornais. Uma dessas raridades é uma carta do jornalista e escritor Renato Pompeu mandou para o Painel do Leitor da Folha de S.Paulo, em 11 de dezembro de 1999, a saber:
"Acho bastante estranho que o sr. Otavio Frias Filho tenha apresentado o livro do sr. Mario Sergio Conti, ?Notícias do Planalto ? A Imprensa e Fernando Collor?, como uma verdadeira ?CPI da Imprensa?. Qualquer jornalista sabe que o sr. Conti omitiu o principal, o artigo que, sob sua direção na ?Veja?, o sr. Roberto Pompeu de Toledo publicou em 9 de outubro de 1991, apresentando como ?loucura? e ?haraquiri? da democracia a tese que a Folha acabara de lançar de que já havia razões para o impeachment do sr. Collor. O artigo, embora tenha sido a participação mais importante do próprio sr. Conti no relacionamento da imprensa com Collor, nem sequer é mencionado no livro." Renato Pompeu, jornalista e escritor (São Paulo, SP)
(*) Repórter especial da Rádio Jovem Pan, professor de jornalismo da ECA-USP e do Unifiam (SP)