Monday, 25 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo e fundamentalismo

JESUS NA MÍDIA

Daniel Sottomaior (*)

Poucas semanas atrás, escrevi sobre a inamistosa relação que a mídia tem com o ateísmo. Apontei como, da Folha de S. Paulo a canais de TV evangélicos, os jornalistas freqüentemente desprezam a descrença e são incapazes de abordar criticamente a religião. Para que não pairassem dúvidas, um jornalista incapaz de perceber críticas à religião respondeu ao meu artigo atacando o ateísmo [remissão abaixo].

Na última edição deste Observatório, coincidentemente dois jornalistas fizeram o caminho inverso, reclamando sobre o tratamento que Jesus recebe da imprensa: Michelson Borges, editor da Revista Adventista, e Allan Novaes, aluno de jornalismo do Centro Universitário Adventista de São Paulo e colaborador de órgãos adventistas [remissões abaixo].

Os adventistas são evangélicos que têm como crença central o retorno iminente de Jesus. Geralmente são fundamentalistas ? isto é, crêem na inerrância e literalidade da Bíblia ? e como resultado, são também criacionistas. Os criacionistas negam a evolução natural das espécies ? e muitas vezes até a geologia e a cosmologia modernas ? em favor do dilúvio bíblico e da idéia de que a Terra tem somente alguns milhares de anos.

A Igreja Adventista do Sétimo Dia entende que seu surgimento "no tempo do fim" foi especificamente definido pela profecia bíblica. É de se esperar que eles sejam especialmente sensíveis ao tratamento que Jesus recebe da mídia, e talvez até encaixem sua reclamação em um esquema maior de sinal do fim dos tempos.

Seus pontos de vista, portanto, não devem ser representativos do panorama geral da mídia brasileira. Mas os evangélicos são o grupo religioso que mais cresce no país. Assim como os católicos, eles possuem expressiva bancada em todos os níveis do Legislativo e não escondem suas ambições políticas e seu desejo de influir nas eleições. Seguindo a tendência dos canais dedicados exclusivamente a comerciais e infomerciais, o dinheiro dos pobres fiéis tem sustentado uma rica e crescente cadeia de rádios e TVs, além da compra de horário nobre em emissoras tradicionais. Tudo isso sem controle algum do Fisco, já que independentemente do que preguem e como se comportem todos os cultos no país têm direito constitucional a isenção tributária plena.

É preciso reconhecer que os evangélicos estão em ascensão não só na sociedade como na mídia do país. Portanto, por mais extravagantes que possam soar suas afirmações, elas precisam ser conhecidas e analisadas. Sua importância e popularidade não devem ser subestimadas.

Com o 11 de setembro e a última guerra no Iraque, a imprensa tem dado atenção especial ao fundamentalismo dos americanos, de sua mídia e de seu atual presidente. Há consenso sobre a importância decisiva dessa religiosidade nas decisões unilaterais dos EUA. Afinal, não é preciso ouvir ninguém mais se Deus está do seu lado. A história já passou diversas vezes o filme sobre pessoas e nações movidas por sua visão maniqueísta de autoproclamados defensores do bem.

A repetida película é sempre cheia de injustiças e crueldades atrozes regadas a muito sangue. E a boas intenções, boníssimas, divinas. A imprensa brasileira não deixou de notar esse padrão e execrar o fanatismo lá longe, mas parece ignorar completamente o fato de que o Brasil está caminhando na mesma direção. Anthony Garotinho já se sente à vontade o suficiente para afirmar em público que os descrentes são criminosos e violentos. Vejamos o que mais nos espera.

Compromisso prévio

Ambos os adventistas acusaram a mídia de não divulgar livros como The Case for Christ, de Lee Strobel, ex-jornalista investigativo do Chicago Tribune. Borges ainda aproveita o ensejo para dar o clássico testemunho cristão, lembrando que Strobel "era agnóstico, não acreditava na Bíblia nem no cristianismo, mas em certo momento de sua vida resolveu empreender uma pesquisa jornalística (tentando ser o mais neutro possível) em busca das evidências pró e contra as Escrituras. E fez isso por dois anos, até que se convenceu da historicidade do Filho de Deus e tornou-se cristão".

Strobel se descreve como "ex-cético espiritual" e hoje é pastor. No livro, ele se dedicou a "repassar e expandir a jornada espiritual de quase dois anos" aproveitando sua experiência anterior. A obra resume treze entrevistas concedidas ao autor, o que à primeira vista poderia resultar em uma ampla investigação sobre o tema. Mas ambos os adventistas esqueceram de notar, ou de dizer, que todas as treze fontes de Strobel eram apologistas evangélicos.

A descrição que Borges faz do livro dá a entender que este mostraria os dois lados da questão, e concluiria pela força dos argumentos cristãos. Mas na verdade a obra de Strobel é puramente apologética. Se é que em algum momento realmente buscou pontos de vista contrários, ele os omitiu completamente. Nenhum dos peritos cujas visões são criticadas foi procurado. Não é de se espantar que o texto tenha sido ignorado pela mídia.

O que me chama a atenção é que dois jornalistas tenham escolhido um livro apologético para defender, que tenham reclamado por ele não ter recebido atenção na mídia e ainda que enfatizem que seu autor também é jornalista, apesar de sua "pesquisa" desprezar os preceitos mais básicos da profissão. O que deveria assustar e deixar apreensivo qualquer profissional de imprensa é essa curiosa visão do que seria o bom jornalismo. Parece que boas fontes são aquelas que confirmam o que o jornalista pensa.

Na mesma linha, Borges também lamenta "o peso maior dado às declarações dos especialistas (quase sempre de orientação humanista) e aos livros escritos sobre Jesus, em detrimento das próprias palavras de Jesus, registradas nos evangelhos ? estes sim, geralmente questionados quanto à veracidade histórica". Ora, enfatizar palavras cuja autoria é incerta não leva a nada ? a não ser que você seja religioso. Quem prefere concluir a acreditar exige mais do que isso.

Aqueles que preferem seguir o conselho de Borges só precisam ligar a TV ou andar uma ou duas quadras até a igreja mais próxima. Mas essa atitude nos diria muito pouco sobre Jesus. Quando se quer descobrir a verdade, independentemente da tradição, é necessário ouvir os especialistas. De preferência, aqueles que não tenham compromisso prévio, pessoal, profissional, emocional e financeiro com um dos lados.

Novaes segue a mesma linha de seu colega, e afirma que "a mídia deveria preocupar-se em contextualizar sua figura e seus ensinamentos e aplicá-las à realidade do homem moderno". Ou seja, ele defende sem pudores que a imprensa precisa mesmo é propagar idéias cristãs.

Cruzada pelo dogmatismo

Há outros sinais preocupantes sobre essa concepção jornalística. Borges desqualifica as interpretações discordantes da tradição cristã chamando-as de "moda contestatória". E nem é de se admirar. A religião é intrinsecamente oposta à contestação. Não existe conciliação possível entre opostos: a única saída é a dissidência. O próprio cristianismo é uma dissidência (do judaísmo), que por sua vez se dividiu em centenas de outros grupos, inclusive os adventistas, bem recentes na história cristã.

No entanto, a confrontação de opostos é a essência da busca da verdade, e também do jornalismo. Só podemos imaginar que tipo de jornalismo Borges espera ter sem essa "moda". Espero que eles não desprezem também qualquer contestação a suas visões políticas e desejem uma teocracia, como muitos dizem abertamente não só no Iraque como nos EUA.

Novaes é mais explícito e lembra que "é um incômodo danado para cidadãos comuns verem sua fé e valores desafiados". É verdade, embora isso se aplique mais aos fundamentalistas comuns do que aos cidadãos médios comuns. No entanto, não é papel da mídia preservar as vacas sagradas de ninguém. Todas as crenças religiosas têm um enorme potencial de parecerem absurdas a quem não as compartilha.

O estudante caracteriza como "truculenta" a abordagem das matérias sobre Jesus, mas acho muito difícil que ele também reclame da forma truculenta com que hoje tratamos as religiosas com as quais ele não simpatiza. A concepção de que é preciso embalsamar o corpo dos mortos para que eles o utilizem no futuro, por exemplo, durou muito mais milhares de anos do que tem hoje o cristianismo, mas isso não seria suficiente para que o jornalista a levasse a sério, por mais cara que seja ou tenha sido a alguém.

Se ficássemos cheios de dedos para não deixar a realidade se intrometer nas crenças de ninguém, seria impossível fazer qualquer tipo de jornalismo. Os jornalistas científicos, por exemplo, precisariam de muito cuidado para reportar avanços na medicina, pois muitos acreditam que só demônios e espíritos são responsáveis por doenças e curas. Quando se fala dos birutas que acham que os ETs dominam o mundo, os editores ficariam cheios de dedos porque muitos crêem que os deuses são astronautas. Seria impraticável. Na verdade, como todo religioso, Novaes só se opõe à dessacralização das crenças que lhe são sagradas. Mesmo porque, para ele, todas as demais são falsas.

Não tenho a menor intenção de defender a revista Superinteressante. Há vários anos que ela tem dado mais importância à vendagem do que à qualidade de suas matérias, mesmo que isso ponha em risco a saúde e até a vida de seus leitores. Essa postura ficou clara quando a revista deu crédito em matérias de capa às teses de que vacinas fazem mal e de que o HIV não causa AIDS. O assunto já foi tratado em matérias anteriores neste Observatório.

Concordo, por exemplo, com a afirmação de que a Super dá como certezas o que não passa de especulações. Esse é um mal de que padece todo mau jornalismo, inclusive o científico. No entanto, parece uma acusação do roto contra o esfarrapado, já que a religião se baseia não só em especulações como em afirmações que contrariam frontalmente as evidências. Novamente, fica parecendo que só as especulações dos outros é que não podem ser tomadas como certezas.

Concordo também que intenção de uma boa matéria não é ofender, mas informar. O problema é que, para grande parcela de religiosos, qualquer questionamento já é ofensivo em si.

Esse parece ser o caso de Novaes, já que aponta a "disposição antidogmática" da Super em tom de acusação. É compreensível, embora não deixe de ser condenável, que nos meios religiosos o antidogmatismo seja execrado. Mas o aluno estende essa prática a um mundo em que se considera exatamente o oposto. Não preciso nem me dar ao trabalho de elencar as razões para tanto.

É difícil não se perguntar se essa inversão de valores também não foi fomentada pelo Centro Universitário Adventista onde Novaes estuda. De um jeito ou de outro, o que importa é que estão chegando ao mercado jornalistas que não se dão ao luxo de rejeitar o dogmatismo em suas investigações. Sim, sempre houve maus profissionais em todas as áreas, mas temo que esse caso possa representar não uma exceção, mas uma tendência.

Novaes reforça sua cruzada pelo dogmatismo ao acusar a mídia de montar "um verdadeiro mosaico de informações e teorias que antes trazem descrédito a crenças e dogmas religiosos do que estabelecem informações claras ao leitor sobre quem é Jesus" e de "despejar informações incomuns sobre Jesus ao leitor comum". Caso se estivesse tratando de temas consensuais e simples, uma boa matéria deveria estabelecer informações claras e seguras. Mas não é o caso.

Curas milagrosas

O Jesus histórico é um tema extremamente complexo que gerou um mosaico de opiniões diversas com variadas consistências. O julgamento da matéria é em grande parte abstrato, e depende do conhecimento das línguas, costumes e geografia da época, além do panorama completo de diversas fontes primárias com graus diferentes de confiabilidade.

Até há bem pouco tempo, tudo que o leitor médio tinha disponível era a visão da própria igreja. Eram "informações" bastante claras, sim, mas não necessariamente muito apegadas à verdade. O público só conhecia a tradição cristã. As "informações incomuns" são análises históricas que não têm compromisso nenhum com a pregação cristã e só podemos louvar os meios de comunicação por fazê-las disponíveis. Se dependesse dos cristãos tradicionais, elas não existiriam.

O jornalista também condena a "disposição cética" de muitos colegas. Quando ele afirma que "o jornalista é treinado para duvidar de tudo e essa insistência em querer cavar fundo faz com que ele nunca se satisfaça com o que já foi descoberto", isso é uma recriminação, não um elogio! O ceticismo o tornaria "menos preso a convenções sociais ou religiosas e ao mesmo tempo o torna mais propenso a errar". É óbvio que a dúvida dá mobilidade às crenças, mas isso só aumentaria a propensão ao erro se essas convenções estivessem costumeiramente certas.

Esse é um sintoma clássico de fundamentalismo. Os fundamentalistas sabem estar certos sem nenhuma sombra de dúvida ou possibilidade de erro, portanto nenhuma revelação ou descoberta científica pode negar suas crenças. Segundo Novaes, "quando [a imprensa] acerta, ela faz com que o verdadeiro Jesus se torne mais conhecido e que a religião se aproxime mais da ciência". Para ele, é impensável a ciência mostre que as crenças religiosas são falsas. Quando houver alguma contradição, o religioso sabe que o erro não está na religião.

A pergunta é como se pode fazer jornalismo assim.

O que Novaes teme? A promoção de "uma legítima confusão de informações", a criação de "um mosaico de estereótipos indefinidos na mente do leitor", e que o leitor fique "cada vez mais confuso em relação à pessoa de Jesus", sem saber "quem é Jesus de fato". O que assusta é que o mundo real é cheio de informações contraditórias que podem deixar tanto jornalistas como leitores confusos e em dúvida. A dúvida baseada na aquisição de novas informações é extremamente saudável, porque obriga a reflexão. As certezas só se justificam caso surjam do confronto entre diferentes idéias.

Mas não é isso que pensa o dogmático. É óbvio que a preferência do apologista, assim como a do ditador e a do manipulador, é apresentar de uma versão única e simples, que convença todo mundo e que não deixe ninguém com pensamentos ociosos. Dúvida é coisa do demônio ou de subversivos. Não por acaso, diversas passagens bíblicas condenam explicitamente a dúvida.

Segundo o pensamento religioso, só a certeza é um resultado admissível. Mas somente a religião tem certezas ? e sem evidências. Geralmente, temos muitas evidências e nenhuma certeza. O pensamento religioso é sem dúvida uma maneira de dar forma e segurança a um mundo confuso e incerto. Mas não é assim que o jornalismo funciona.

Novaes não se acanha em dizer que tem medo que o leitor acabe por abandonar "a crença antiga". Essa deve ser sua preocupação ao escrever nas colunas de criacionismo, mas causa grande apreensão a naturalidade com que ele deseja aplicar os mesmos critérios ao restante da prática jornalística. As iniciativas evangelizadoras dos adventistas também podem fazer os leitores abandonar suas crenças antigas, mas creio nesse caso ele não vê mal algum.

Concordo quando ele diz que "provocar a desinformação é o cúmulo no ofício". Mas ele considera desinformação tudo que não for sua própria visão do assunto. Instilar a dúvida também não é aceitável. Segundo Novaes, "jornalistas são preparados para responder, e não criar perguntas na mente dos leitores. Jornalistas são preparados para darem respostas". Acho ótimo quando os jornalistas dão respostas, mas nem sempre elas existem.

Também é difícil de concordar com a posição de que os jornalistas não devem criar perguntas, só respostas. Talvez isso represente a formação do próprio autor. Essa é a posição clássica de quem não deseja provocar nem permitir o pensamento e a busca da verdade. É claro que ninguém exalta a dúvida causada pela investigação pobre ou pelo texto deficiente. A dúvida a que Novaes se opõe, necessária à liberdade de pensamento, é aquela proveniente da abundância, não da falta de informações.

Sem essa dúvida, seria impossível questionar suas afirmações sobre os "rios de dinheiro" que correm para os autores de livros polêmicos sobre a Bíblia. "Jesus vende. E muito." É verdade, mas o articulista se esquece de dizer que as igrejas ganham muitas e muitas vezes mais coletando doações, vendendo bíblias, esperanças e curas milagrosas. Não conheço nenhum crítico da Bíblia que tenha criado instituições milionárias em torno disso, capazes de comprar emissoras de rádio e TV.

Prosa e verso

Por fim, não posso deixar de comentar a apologética mais explícita. Para Novaes, os autores dos evangelhos canônicos foram discípulos de Jesus ou testemunhas da época. Essa é a visão tradicional cristã conservadora, mas o jornalista não menciona que todos os evangelhos são originalmente anônimos. Muitos cristãos admitem que Marcos é posterior ao ano 70, e Mateus e Lucas foram escritos depois dos anos 90 e 95, respectivamente. No ano 90, quem tivesse somente 15 anos à época da morte de Jesus já contaria com 72 anos, uma idade extremamente improvável para a época.

Borges fala da "uniformidade e coerência observadas nos 66 livros canônicos", mas até fontes conservadoras como a Enciclopédia Católica reconhecem existir muitas contradições. Em Mateus, por exemplo, lê-se que Judas se enforcou. Em Atos, ele "caiu prostrado e arrebentou pelo meio, e todas as suas entranhas se derramaram". Geralmente essas passagens são "harmonizadas" dizendo-se que primeiro Judas se enforcou, e a seguir a corda arrebentou, abrindo-o ao meio. Às vezes duas passagens atribuem números diferentes à mesma quantidade. Mesmo assim os fundamentalistas acham razões que lhes parecem perfeitamente razoáveis para declarar que n&aatilde;o existe contradição alguma.

O editor da Revista Adventista se espanta com afirmações bizarras dos livros apócrifos, como a de que órgãos de peixes podem espantar demônios. Mas ele não estranha alegações bíblicas igualmente bizarras, como a de que os demônios não só existem como atormentam pessoas causando-lhes doenças. Ele certamente se esquece que para qualquer descrente do cristianismo, que é o caso de dois terços da população mundial, qualquer uma dessas afirmações é igualmente improvável.

Ele também desqualifica os textos apócrifos baseado no fato de que eles apresentam diversas discrepâncias com relação aos canônicos. Ora, isso só é demérito quando já se tem como certo que os textos canônicos estão corretos. E tem mais. A escolha dos livros que compõem a Bíblia foi feita pela própria igreja. Até evangelistas como Bruze Metzger, citados no livro de Strobel, admitem que só os documentos escritos por cristãos e em conformidade com as crenças cristãs da época eram admitidos.

Ou seja, mesmo a suposta harmonia dos textos bíblicos não resulta de uma uniformidade generalizada de visões de fontes diferentes. É resultado somente de uma seleção parcial de fontes que disseram o que os pais da igreja queriam ouvir. É o princípio de supressão da dúvida e de discordância em ação, que alguns jornalistas de hoje cantam em prosa e verso e pretendem implantar.

Que Zeus nos proteja.

(*) Engenheiro, membro da Sociedade da Terra Redonda

Leia também