VIOLÊNCIA SEM LIMITE
“Dar nome aos bois”, copyright Jornal do Brasil, 10/05/03
“Não adianta, ilusão tem limites: em algum momento a econometria vai esbarrar na realidade. Economia não é abstração. Os C-Bonds, o risco país, a taxa de câmbio e as demais medições estão sendo aplicadas num processo artificial – como nos laboratórios onde as experiências ocorrem em condições ideais, sem as interferências do ambiente.
Era inevitável a contaminação do noticiário político pelo noticiário policial e a conjugação das estatísticas de crimes com as cotações das páginas econômicas. Os manuais e ritos corporativos não permitiram. Mas isso acaba de acontecer no âmbito da imprensa internacional, obrigada a enxergar o país como um fenômeno integrado, sem segmentações aleatórias. Não é coincidência que, nos últimos dias, o New York Times, a BBC-World, o Wall Street Journal e o Economist – os dois últimos com influência mundial na esfera da economia e dos negócios – tenham dedicado bom espaço e bom tempo para tratar da escalada de violência que grassa no país.
Incorremos em outro perigoso engano quando evitamos dar o nome aos bois e nos refugiamos em classificações minimalistas e fictícias. Estamos diante de uma insurreição generalizada, pré-guerra civil. Crime organizado é conversa fiada. Balela. O nome correto é narcoterrorismo.
Os horrores dos anos de chumbo excluíram do vocabulário jurídico os atentados à segurança nacional e agora estamos pagando um preço altíssimo pelos eufemismos e maneirismos lingüísticos que nos impedem de enxergar os problemas nas suas verdadeiras dimensões. A violência federalizou-se e o combate à violência, com ou sem intervenção formal, com ou sem as Forças Armadas nas ruas, deve federalizar-se. Aberta e ostensivamente. Em todas as esferas, inclusive das relações internacionais. As Farc já não podem ser tratadas com punhos de renda, o Complexo da Maré começa no fundo da Baía de Guanabara e termina nas selvas da Colômbia.
Cada vítima, cada violência, cada susto, cada insulto cívico e cada agressão ao Estado de Direito infligido pelo poder-bandido nos lembra que estamos diante de uma emergência federal. Na última terça-feira, o eixo rodoviário Norte-Sul foi seccionado pelas incursões na Linha Vermelha, Linha Amarela e o controle da Avenida Brasil, no Rio. Não são ocorrências paroquiais, metropolitanas ou estaduais; são situações de risco nacional. Esta é uma verdade que precisa ser encarada de frente, com a designação apropriada.
As reconciliações entre dona Rosinha e dona Benedita, as festinhas entre o coronel Bolinha e seus desafetos, além de ridículas, são um ultraje à memória dos caídos e dos humilhados pela Confederação da Violência. Os sorrisinhos cínicos e os tapinhas nas costas na véspera dos funerais de uma sociedade livre flagram a falta de compostura e escancaram a impostura.
O Morro do Turano não é distrito urbano, é agora distrito federal. O atentado (premeditado, conforme evidenciou-se) contra a Universidade Estácio de Sá não cabe num B.O., Boletim de Ocorrências. Merece uma C.R.I, Constatação de Ruptura Institucional.
Quando o governador de fato, Anthony Garotinho, reconhece que perdeu o controle da situação e o ministro da Justiça, no Observatório da Imprensa (terça ultima, pela TV E), diante de uma pergunta da jornalista Dora Kramer, admite constrangido que daria nota cinco ao desempenho das autoridades do Estado do Rio em matéria de segurança, já não há como disfarçar a etiquetagem e a dimensão do desastre.
Essa dimensão não é apenas factual, é conceitual. Quando alguns senadores decentes, como Pedro Simon e Jefferson Peres, propõem que se rasgue o Código de Ética e se dissolva a Comissão de Ética diante da decisão do presidente do Senado de arquivar o processo contra ACM, o Rei do Grampo, percebe-se a imantação moral entre a degradação da lei e da ordem no Rio de Janeiro e a degradação dos costumes políticos nas altas esferas da República.
Quando o PT majoritário – o partido da esperança e da mudança – capitula diante desse ultraje, preocupado com a maioria para aprovar reformas que sempre combateu, delineia-se um vale-tudo político-partidário que explica inclusive a complacência federal com o Casal Governador do Rio de Janeiro que tantas lágrimas e estragos tem custado.
Quando o pseudo-oposicionista PSDB permite que o senador Tasso Jereissati articule abertamente o apoio para proteger os amigos-parceiros ACM e Sarney, numa das manobras mais sórdidas da recente crônica parlamentar, evidencia-se que o partido precisa trocar de nome. Deve deixar de lado o SD (da Social-Democracia) e denominar-se apenas PB, Partido Banana – desfibrado, desossado e emasculado.
Esta é a hora de dar nome aos bois. Antes que os bois irmanados, saneados, risonhos e politicamente corretos, pisoteiem o que sobrou em matéria de decência e coragem.”
“De hipocrisias e outros subterfúgios”, copyright O Globo in Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 9/05/03
“É sempre assim. Um crime bárbaro acontece, a mídia faz grandes manchetes nos dias próximos ao fato e, depois, um novo crime bárbaro nos amortece para todos os outros já ocorridos, transformando a nossa indignação em acomodação, a nossa cidadania em um sonho distante e as cidades brasileiras em palco de uma guerra civil não apenas anunciada, mas plenamente instalada.
Agora, estudante é baleada dentro de universidade, num crime premeditado há pelo menos oito meses sem que as autoridades (impossível usar esta palavra sem um ranço de sarcasmo…) sequer imaginassem que isso seria possível.
O governador do estado – ops! – ou melhor, o secretário de Segurança do Estado do Rio toma as medidas de sempre. Fecha uma avenida aqui, bota policial subindo morro, diz que vai prender e arrebentar ali, e pede que os viciados parem de consumir drogas em casa para ajudar a diminuir a violência. Seria cômico se não fosse trágico.
Lucianas, Gabrielas, Franciscos, Gilbertos, joões-ninguém há muito estão morrendo sem que providências severas e eficientes sejam tomadas. Além de algumas iniciativas isoladas do ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, impressiona também a passividade do governo Lula com o que vem ocorrendo nas duas principais cidades do país: sistema carcerário ineficiente até em manter seus traficantes sem comunicação com os seus ?negócios?, balas perdidas, seqüestros, comércio e escolas fechados a mando de traficantes, inocentes pagando com a vida o descaso generalizado dos poderes instituídos deste país.
Vamos fazer um mea-culpa generalizado, pois temos todos a nossa cota de responsabilidade para chegarmos a esse estado social pré-colombiano, não no sentido antropológico do termo, mas no seu sentido policial.
Armas e drogas só cruzam as fronteiras com a conivência ou a ineficiência da Polícia Federal. Traficantes só movimentam somas fabulosas porque o consumo é realmente alto.
Não são as pequenas porções vendidas no asfalto ou nos morros que fazem a fortuna dos traficantes, mas o alto consumo das classes média e alta. O moleque não vai deixar de ganhar um dinheiro razoável com o tráfico para se inserir em programa social que lhe dê, no máximo, um salário-mínimo por mês. E não ajudam em nada os inúmeros exemplos de corrupção generalizada à solta no país.
Chegamos, então, aos pontos cruciais da questão. Primeiro, porque se consome ou se vende droga em busca de valores que são ditados de forma muito eficiente por toda uma sociedade (e sua mídia) imediatista, uma sociedade cuja expressão máxima é a cultura do entretenimento, que transforma até notícias de importância em discursos vazios de significado: o mundo é do outro lado da tela. Enquanto a bala perdida não atinge o meu quintal, não existe no meu mundo. Fala-se tudo ou qualquer coisa para todos, ou para ninguém especificamente.
Segundo: a satisfação procurada (nas drogas, na violência ou no
entretenimento) é impossível de ser satisfeita, não apenas porque seus efeitos têm tempo determinado para se esgotar, mas principalmente porque ?somos todos um vazio em torno do qual a imagem corporal se compõe?, para usar as palavras de Jacques Lacan, e porque ?nenhum objeto da pulsão poderá, jamais, satisfazê-la?. Em outros termos, o buraco é mesmo mais embaixo.
Temos instintos anti-sociais agressivos, existentes em nossa mais íntima constituição, como mostrou Freud em ?Totem e tabu? e em tantos outros textos. A civilização ergueu-se através de repressões violentas desses instintos agressivos inerentes à estrutura humana. E é também daqui que se pode observar o consumo de drogas, para Freud um dos paliativos para que o homem moderno possa libertar-se de uma parte considerável de seu sofrimento.
O mercado global vende, sob todas as formas, a urgência do bem-estar e se define, numa perspectiva social, como um mercado absolutista. O mercado e suas formas de fazer sonhar substituem aqui o poder atribuído por Hobbes aos monarcas absolutistas do século XVI, tidos como única alternativa para a organização da sociedade e a busca da felicidade humana. Só que esta repaginada versão do Leviatã apenas perpetua o mal-estar da civilização. Como lutar contra o que nos é estrutural?
A satisfação prometida, além de ilusória, quebra com facilidade, e os produtos e os valores vendidos como forma de aplacar esse desejo são cada vez mais descartáveis e perecíveis. Em contraste, tais produtos alimentam apenas a boa fortuna de uns poucos, enquanto a massa consumidora é composta por hordas cada vez maiores de excluídos e seus sonhos não realizados de fama, fortuna e poder. Está dado o pano de fundo para o impasse da violência e do mal-estar contemporâneos.
E ?na moda da nova Idade Média, na mídia da novidade média? de Cazuza, constatamos com Lacan, no seminário V, que o discurso continuará mesmo a não dizer nada além de que somos animais falantes. ?Esse é o discurso comum, feito de palavras para não dizer nada, graças ao qual nos certificamos de não lidarmos frente a frente com o que o homem é em estado natural, ou seja, um animal feroz.?”
CPI DO PROPINODUTO
“Não chegaram ao andar de cima”, copyright O Globo, 12/5/03
“A CPI do Propinoduto, infelizmente, reforçou o senso comum de que, no Brasil, os poderosos nunca são punidos. Em 90 dias de trabalho, a comissão instalada na Assembléia Legislativa não avançou nas investigações para desvendar possíveis conexões políticas no esquema dos fiscais que desviaram US$ 33,5 milhões dos cofres públicos para um banco suíço. O bom senso e os indícios colhidos nestes meses levam a crer que um esquema de tal vulto não pode ter operado sem apadrinhamentos em escalões superiores.
Mesmo assim, a maioria governista derrotou a proposta de prorrogar os trabalhos da CPI para que as investigações continuassem. Os deputados aliados do governo preferiram apresentar já nos próximos dias o relatório da CPI, que, no entanto, não traz novidades para os procuradores da República que conseguiram manter os acusados em prisão preventiva.
É bem verdade que a CPI ajudou em alguns momentos decisivos no trabalho dos procuradores. O principal exemplo é a carta rogatória encaminhada ao Ministério Público suíço com o pedido de informações sobre as contas dos fiscais. A resposta trouxe o nome da ex-mulher de Carlos Eduardo Pereira Ramos, que, encontrada por agentes da Polícia Federal, concordou em colaborar com um depoimento decisivo para a prisão dos fiscais. Os deputados também ouviram relatos que ajudaram a compreender detalhes do funcionamento do esquema. Mas isso é pouco.
A CPI, como instrumento de uma casa política, tinha a obrigação de investigar se os fiscais contavam com a proteção de autoridades e políticos. Se não o fez, foi por ter sucumbido à má política. Nos 90 dias de trabalho da comissão, a maioria ignorou qualquer indício que pudesse levar as investigações para fora do círculo dos fiscais.
O principal deles foi oferecido por Carlos Sasse, o primeiro secretário de Fazenda do governo Anthony Garotinho. Em depoimento à própria CPI, Sasse acusou o ex-governador de ter tentado fazê-lo distribuir chefias de inspetorias do ICMS para deputados da própria Casa. Além disso, o ex-secretário disse que Garotinho teria protegido em sua administração sonegadores em Campos, sua base eleitoral. A denúncia, que implicaria improbidade administrativa, não foi considerada, naquele momento, suficiente pela CPI para aprovar a convocação do ex-governador.
Impedir que Garotinho viesse depor foi, por todo o tempo, um objetivo da maioria governista. O jogo do ex-governador e seus aliados nem sempre foi fácil de ser compreendido. Em 21 de março ele pediu, com todas as letras, em anúncios nos jornais, para ser convocado a depor na CPI. O porta-voz de seu pedido à Alerj – o líder do governo Rosinha – foi o mesmo que, dias depois, atropelou a CPI e fez uma consulta à Casa, o que levou à anulação da convocação de Garotinho.
A análise do sigilo telefônico poderia ter sido um importante instrumento para avançar nas possíveis conexões políticas do esquema, e levar a outros fiscais que possam estar hoje protegidos pelo anonimato. A tradição das CPIs no Brasil mostra que os dados do sigilo telefônico guardam as melhores informações sobre os esquemas de corrupção. A CPI da Alerj parece ter ignorado este fato, e ter deixado a análise do sigilo em segundo plano.
Os agentes da Polícia Federal, que têm reconhecidamente a melhor técnica para a análise dos dados, foram afastados, e as listagens entregues a técnicos do Tribunal de Contas do Estado, que jamais haviam trabalhado nisto.
Afastar os policiais foi um erro que pode ter mudado o curso da CPI. Três dias depois do afastamento, os mesmos agentes que tinham sido cedidos à comissão ganharam destaque por terem conseguido o testemunho da ex-mulher de Carlos Eduardo. Nesse meio tempo, a CPI não conseguiu nenhum dado fundamental por intermédio da análise do sigilo telefônico dos envolvidos.
Desvendar o esquema de corrupção supostamente comandado por Rodrigo Silveirinha, ex-subsecretário adjunto de Administração Tributária, era uma obrigação da CPI que passou às mãos da Polícia Federal, que mantém aberto o inquérito sobre o caso. Buscar, por meio da legislação, formas de impedir que no futuro apareçam esquemas de corrupção semelhantes ao desvendado pelo Ministério Público suíço será, a partir de agora, a principal obrigação dos deputados.
O escândalo do Propinoduto revelou uma extrema fragilidade da máquina da Fazenda estadual, que, não por acaso, foi uma das últimas secretarias do estado a começar a ser informatizada, o que está longe de terminar.
Um estado falido, como o Rio de Janeiro, que tem entre suas dívidas o 13 salário de 2002, não pode permitir ralos como este. Nem tampouco permitir que postos da importância das inspetorias do ICMS sejam ocupados com critérios meramente políticos, como denunciou o ex-secretário Sasse.
Depois de 90 dias, a única certeza é que a CPI do Propinoduto ficou pelo meio do caminho e não chegou ao andar de cima. A bola agora está com a Polícia Federal e o Ministério Público federal.”