Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Renata Cafardo

PROVÃO EM XEQUE

“Provão muda para desmascarar cursos ruins”, copyright O Estado de S. Paulo, 9/05/03

“O Provão deve deixar este ano de classificar cursos pelos conceitos de A a E, como faz desde 1996. O exame, que avalia formandos do ensino superior, será realizado no dia 8 de junho por cerca de 470 mil estudantes.

A intenção do Ministério da Educação é divulgar as notas diretamente, numa escala de 0 a 100. Até agora, o conceito A, B, C, D ou E de cada curso era estipulado a partir de um cálculo com a média geral da área avaliada.

?A impressão que dá é a de quem tirou A é muito bom?, diz o presidente do Instituto Nacional de Pesquisas e Estudos Educacionais do MEC (Inep), Otaviano Helene. Os avaliadores dão o conceito a partir do agrupamento das notas de todos os cursos. Se o conjunto é muito fraco, o resultado passa uma idéia errada do desempenho conseguido. A afirmação do presidente do Inep é mesma de vários críticos do Provão desde a sua criação. ?Os gestores e a população em geral precisam conhecer a realidade desses cursos?, diz Helene.

O sistema atual permite que os conceitos signifiquem desempenhos diferentes, dependendo da área. Em Medicina, por exemplo, o conceito A foi dado em 2002 para os cursos que tiveram nota acima de 52, na escala de 0 a 100, e em Engenharia Civil, acima de 33,7 (ver gráfico). Isso porque a média geral dos alunos do total de cursos de Medicina do País foi superior à dos de Engenharia Civil. Com a divulgação da nota de maneira direta, a média geral não influenciaria em nada.

?Agora, com o amadurecimento do processo de avaliação, não vejo problemas em divulgar as notas (de 0 a 100)?, diz uma das principais responsáveis pela criação do Provão na gestão do ex-ministro Paulo Renato Souza, Maria Helena Guimarães de Castro. Segundo ela, já no ano passado as discussões no Inep e na cúpula do MEC caminhavam para que se mudasse a divulgação das notas do exame. No entanto, Maria Helena afirma que o objetivo do Provão foi sempre o de fazer comparações. ?Ele indica quais são os melhores e quais são os piores. Ele não diz que um curso A é muito bom e todos devem ser iguais a ele.?

?Acho mais justo o critério de 0 a 100. Além disso, professores e alunos estão mais acostumados a entender notas nessa escala?, diz a presidente da Associação Nacional das Faculdades e Institutos Isolados (Anafi), Naira Amaral. Apesar disso, ela acredita que o desempenho dos alunos não vai mudar enquanto eles não tiverem compromisso com a realização da prova. ?É preciso mudar a lei e tornar obrigatória a publicação da nota no diploma.?

Segunda vez – Se a mudança em estudo no Inep se efetivar, não será a primeira vez que a divulgação das notas do Provão será alterada. Até 2001, os conceitos eram distribuídos de maneira pré-fixada: em cada área, 12% deles ficavam com nota A; 18% com B; 40% com C; 18% com D e 12% com E. Reclamações de educadores e representantes de instituições de ensino superior acabaram levando o MEC a adotar o modelo atual, que utiliza o mecanismo de desvio-padrão.

Na opinião de Helene, com a nova alteração, seriam considerados bons os cursos que tivessem notas próximas de 70 ou 80. ?Acho difícil algum conseguir tirar nota 100.?

Na aplicação da prova deste ano, segundo o presidente do Inep, a única novidade será a inclusão de mais perguntas no questionário socioeconômico que o formando preenche. Além das 58 questões sobre a estrutura da instituição, planos de ensino, exigência do curso e condições pessoais do aluno, será abordada a área social. Haverá 11 itens sobre, entre outros temas, o trabalho comunitário dos estudantes e a relação do curso com problemas sociais brasileiros.

O Provão vai avaliar aproximadamente 6.500 cursos em 26 áreas. Os resultados saem no segundo semestre.”

 

COLUNISMO

“Despedida”, copyright O Globo, 11/05/03

“?Não há mal que sempre dure, nem bem que nunca se acabe?, dizia minha avó Leleta, grande cultora da sabedoria popular. Ao longo de quase dez anos escrevi seis colunas por semana aqui nesse espaço. Foram os anos mais fecundos e felizes de minha vida profissional. Creio ter cumprido a proposta que fiz no início ao Evandro Carlos de Andrade, então diretor de jornalismo do GLOBO. Disse-lhe:

– Gostaria de fazer uma coluna política diferente, dando mais atenção às políticas públicas que à vida dos políticos. Em vez de especular como o partido tal ou qual irá votar ou reproduzir o que um líder parlamentar diz de outro, cuidar das políticas que afetam a vida das pessoas ou do Estado: política educacional, de saúde, econômica, de desenvolvimento, de transportes, de ação social, política externa, política militar, enfim, gostaria de cuidar daquilo que os candidatos falam em campanha e que nós cobrimos para, depois que tomam posse, esquecermos. E, porque esquecemos, o índice de leitura cai e o comentário político fica chato.

Evandro era um jornalista muito inteligente, que não temia inovação ou talento. Disse-me que achava que não daria certo porque jamais alguém fizera isso. Por ele, podia experimentar. Se desse errado, me mandaria embora.

Acordo fechado, vim para Brasília em 1993, cobrir a revisão da Constituição, que acabou não acontecendo, e comecei a abrir um caminho novo, que não combinara com o Evandro, mas teve o seu apoio : buscar o Brasil que dá certo.

Tenho um apaixonado caso de amor com o Brasil, com a criatividade de nosso povo e com a sua diversidade regional. Em 1980, ao voltar do exílio, já buscara esse rumo, escrevendo um livro sobre a inovadora administração municipal do arquiteto Dirceu Carneiro, em Lages, Santa Catarina. Esse livro, ?A força do povo?, teve um sucesso inesperado, tirou oito edições e foi adotado em vários cursos de planejamento urbano pelo país afora. A boa acolhida do livro ensinou-me que existe no Brasil um interesse intenso por ler sobre experiências novas e bem-sucedidas que acontecem por toda parte, em administrações municipais, em programas estaduais, no trabalho de ONGs, no movimento de voluntariado. Ao contrário do que muitos dizem, a mídia não se interessa apenas pelas notícias ruins. Acolhe também as boas. O que acontece é que as notícias ruins são evidentes, pautam-se por si mesmas, não exigem esforço para se tornarem conhecidas. Encontrar as boas notícias dá muito mais trabalho. O jornalista precisa estar ligado no que de bom acontece no país, ter curiosidade para conhecer e deixar a preguiça na redação.

Desenvolvi esse trabalho, andando pelo país todo, até transformá-lo numa marca própria, ?sábados azuis?, publicando aos sábados as histórias que descobria. Já reuni esses trabalhos em dois livros, poderia ter publicado outros dois e certamente publicarei mais um, tornando permanentes as reportagens das últimas semanas sobre experiências notáveis em lugares tão difíceis de se alcançar que não aparecem na mídia nacional, como Roraima, Acre, o oeste do Par&aacuaacute; e da Bahia.

Não desdenhei a política dos políticos. Acompanhei semana a semana o governo Fernando Henrique e o progressivo desalento que causou, frustrando expectativas e esperanças, mas registrando os muitos aspectos positivos que teve. Lembro-me que, às vésperas da votação da emenda que permitiu a reeleição, um editor ingênuo mandou seus repórteres fazerem uma pesquisa sobre o resultado da votação. Publicou uma manchete anunciando a derrota do governo. Ora, o Congresso se transformara num mercado persa, no qual as cotações dos parlamentares subiam com o mistério de seus votos. Nessas circunstâncias, deputados e senadores tinham mais interesse em mentir. Publiquei uma coluna na qual dizia que era mais fácil um burro voar que a reeleição não passar. Não deu outra.

Ao longo desses anos, recebi muitos e-mails de leitores que diziam só assinar O GLOBO para ler minha coluna. Agradeço terem afagado o meu ego. Mas outros, possivelmente mais verazes, diziam comprar o jornal para me ler e, ainda, os demais colunistas. Mantivemos intensa correspondência eletrônica, que espero continuar. Espero que esses leitores e outros mais me acompanhem para a página 7, onde, a exemplo do bem-amado Verissimo, que também publicava seis crônicas por semana, escreverei duas vezes por semana, a partir de 1 de junho, dia de São Justo.

Aos sábados continuarei a contar as histórias do Brasil que dá certo. No outro dia, possivelmente às quintas-feiras, continuarei a exercer o ofício de comentarista político, analisando a conjuntura imediata e transmitindo opiniões, planos e realização dos que estão em posições de mando, bem como as críticas aos seus atos. Até a página 7.”

 

OBJETIVIDADE & JORNALISMO

“De volta à questão da objetividade”, copyright Comunique-se, 12/5/03

“O XIS DA QUESTÃO – Não há como relatar ou comentar fatos sem a escolha de uma perspectiva valorativa, da qual, inevitavelmente, o repórter e o comentarista farão parte. Porque não está na materialidade dos fatos a importância dos acontecimentos noticiáveis. Os acontecimentos valem pelo que podem significar.

1. Questão de perspectiva

No passado fim de semana fui ao Rio de Janeiro. De alma leve, livre de compromissos profissionais, desfrutei belezas e emoções, a 400 quilômetros do computador pessoal deixado em São Paulo, para o qual convergem as tão malditas quanto indispensáveis pressões do dia-a-dia. Bem assessorado, descobri recantos e encantos de uma certa arte de viver, sabiamente cultivada pelos cariocas da zona sul, aquela que integra a orla das praias famosas. No sábado, em Copacabana, almocei na ?Modern Sound?, loja quase indefinível, onde, em área que calculei de 200 m2, se harmonizavam as possibilidades de comer bem, ouvir, ao vivo, música da melhor qualidade e percorrer (para comprar ou conhecer clássicos e novidades) um enorme acervo de CDs, DVDs e fitas de vídeo, espalhado por pelo menos 50 metros de prateleiras circundantes.

Experimentei entender onde estava – e, dependendo da perspectiva escolhida, ora me sentia num restaurante agradável, aconchegante, propício a um bom pedaço de conversa, ora me sentia a vaguear por etéreas sensações musicais, devaneio em que os prazeres do almoço e do prosear ficavam reduzidos a insignificantes detalhes. Mas… e aquele formigueiro de pessoas que nem almoçavam nem ouviam música, movendo-se em marcha paciente, na geometria das prateleiras, apenas entregues ao doce consumo de produtos audiovisuais? Em certo momento, também eu fiz parte do formigueiro.

Agora, 60 horas depois, quando tento descrever a experiência, descubro que poderia fazer pelo menos três relatos diferentes, dependendo da perspectiva preponderante. E chego à evidência, ou melhor, à obviedade de que, quando muda a perspectiva, muda o olhar do observador.

Ou seja: a perspectiva contém o observador.

A frase não é minha, pois pertence às definições da filosofia da ciência, mais precisamente, aos conceitos metodológicos. E serve para negar o discurso da objetividade – com aplicações tanto na ciência quanto no jornalismo, campos em que esse discurso, embora em crise, ainda circula como ?verdade? secular.

2. Lições da arte

No domingo, o programa foi mais profundamente cultural. Por cerca de duas horas, percorri uma exposição de 83 gravuras de Rembrandt, o mestre holandês que viveu entre 1606 e 1669. As peças expostas, trazidas ao Rio de Janeiro pela Fundação Banco do Brasil, são obras originais e fazem parte do acervo do Museu Het Rembrandthuis, de Amsterdã. A exposição completava-se com mais 40 gravuras de outros artistas, na maioria, gente de épocas posteriores que imitou Rembrandt ou nele se inspirou.

Trata-se de uma exposição impressionante que, vista à lupa (como se recomenda ver a arte da gravura), revela, na riqueza dos detalhes, o domínio surpreendente que Rembrandt tinha das técnicas de sulcar imagens e idéias em matrizes metálicas, para a reprodução gráfica.

Faltaram lupas para boa parte dos visitantes. Acabei integrando esse grupo de excluídos. Mas, com discretos atrevimentos, pude também espreitar, em lupas alheias, no detalhe dos traços, requintes técnicos de percepção impossível a olho nu.

As lupas não me revelaram o artista, apenas indícios dele. Já sem lupa, na apreensão visual da totalidade de cada peça, lá estava ele, o artista inventor que, no traço, é capaz de tocar a beleza – ou talvez ficasse melhor dizer, capaz de realizar o belo.

E onde estava o artista, tão escondido que a lupa não o alcançava?

Estava na perspectiva, fazendo parte dela, e nela expressando a sua visão do mundo ali manifestado.

A exposição tinha também uma vertente de objetividade, nas legendas de cada obra exposta: a data, exata ou provável; as técnicas utilizadas; e elementos de descrição que por vezes incomodavam pela obviedade – coisas do tipo ?homem observa a vaca no pasto?, ?mulher no banho?, ?criança com boné?. Meros rótulos, que não faziam jus à inteligência e à sensibilidade dos milhares de visitantes interessados na arte de Rembrandt.

Depois, ainda percorri três ou quatro salões com obras da ceramista Celeida Tostes, falecida em 1995, nome importante na cultura brasileira por ter conceituado e experimentado a cerâmica como exercício de pesquisa na arte contemporânea.

Para mim, foi uma exposição de leitura mais difícil, talvez pela propensão que imagino todos temos, de, ao olhar obras de cerâmica, valorizarmos preferencialmente a sua funcionalidade. Mas, mais do que nas particularidades objetivas de cada peça, a ceramista Celeida Tostes mostra-se na coerência subjetiva dos conjuntos, propondo perspectivas críticas ao entendimento da vida que simbolicamente brota do barro e ao barro retorna.

3. Da arte ao jornalismo

E o que o jornalismo tem a ver com a arte, se dele se espera – na argumentação dos defensores da objetividade – relatos e comentários baseados em fatos, dos quais o observador não deve fazer parte?

Pois me parece estar aí um formato inviável de narração e argumentação jornalística. Não há como relatar fatos, nem como comentá-los, sem a escolha de uma perspectiva valorativa, da qual, inevitavelmente, o repórter e o comentarista farão parte. E isso, porque não está na materialidade dos fatos a importância dos acontecimentos noticiáveis. Os acontecimentos valem pelo que podem significar.

(*) Professor de jornalismo na Universidade de São Paulo.”