Quem não leu precisa ler. E rápido. Em artigo publicado no jornal Meio & Mensagem , o jornalista Thomaz Souto Corrêa (um Yoda para fazer revistas, hoje membro do Conselho de Administração e do Conselho Editorial do Grupo Abril) manda um recado claro aos profissionais de comunicação: arrebentar a fronteira entre propaganda e jornalismo é um erro.
Desde que se agravou a crise de receita do mercado editorial, em meados do ano 2000, surgiram nas redações e nas agências de publicidade os adeptos do product placement. Outros chamam de merchandising. E daqui a cinco minutos certamente alguém vai aparecer com novo eufemismo – em inglês, para dar mais brilho ao verniz de ‘negócio sério’ – para uma prática que não é outra senão a de enfiar o interesse do anunciante no conteúdo jornalístico.
Nada muito ostensivo. Um pouquinho aqui, outro ali, e só de vez em quando. Os arautos dessa solução de emergência, como lembra Thomaz, acreditam que alguns leitores ‘não percebem’. E daí?, pergunta ele. Devemos escrever apenas para os que não percebem? Afastar das bancas e das assinaturas todos aqueles ‘que percebem’? Esfarelar a credibilidade de jornais e revistas, construída ao longo de anos, numa rápida virada de página? ‘Não dá’, responde Thomaz Souto Corrêa. Para ele, romper a ética do relacionamento de três partes interessadas (veículo, leitor e anunciante) é trapacear com uma delas: justamente a parte mais disputada, a que paga para ter informação, o leitor. É abuso de confiança, nas palavras de Thomaz.
O alerta feito no M&M, vindo de pessoa tão experiente, já seria suficiente para aqueles que reconhecem a importância do leitor/consumidor, e o respeitam. No entanto, se para alguns esse mercado se tornou tão selvagem, a ponto de esvaziar de sentido palavras como ética, credibilidade e confiança, OK, tudo bem – façamos só as contas. Mas preparem seus palm tops, senhores, porque vem aí uma má notícia: ferir a ética também é um péssimo negócio. Todo mundo sai perdendo.
O cliente assiste
Quem deveria, em primeiro lugar, desconfiar da eficiência dessa prática são os profissionais de planejamento, atendimento e mídia das agências de publicidade. Basta acompanhar, passo a passo, um raciocínio simples:
**
Agentes publicitários querem penetrar no conteúdo editorial de jornais e revistas para que seu cliente, o anunciante, ‘chegue mais perto do leitor’.**
Subitamente (eureka!), administradores de empresas jornalísticas descobrem que podem, eles mesmos, oferecer esse serviço ao anunciante.**
O anunciante gosta da idéia de cortar os custos que a agência publicitária cobra para criar merchandising, product placement ou seja lá o nome que quiserem dar. E elimina o intermediário.**
O mercado publicitário reage: ora, ora, ora… e o que é que essa turma da imprensa, afinal, sabe de propaganda?**
As empresas jornalísticas contra-atacam: ‘chegar mais perto do leitor’ é a especialidade delas. Algumas também têm bons profissionais de marketing e publicidade. E as que não têm podem contratar. Não sai tão caro.**
O cliente, assistindo à disputa como quem vê uma final em Roland Garros, só se manifesta quando é chamado, e ainda assim para lembrar: o menor preço leva.**
E agora?Folhear com prazer
Do ponto de vista de quem administra a produção e a veiculação de jornalismo, o vale-quase-tudo pode até funcionar no curto prazo. Dinheiro em caixa agora, dinheiro hoje, quem sabe amanhã, talvez até depois de amanhã. Mas essa é outra aritmética enganosa, pelo menos para quem pretende permanecer no mercado. De novo, vamos seguir um passo a passo básico:
**
Revistas e jornais publicam reportagens com o chamado product placement.**
Os leitores ‘que percebem’ a mistura de propaganda e jornalismo sentem-se enganados, rejeitam esse tipo de conteúdo, se arrependem de ter comprado a publicação (e ainda saem falando mal dela por aí).**
O arco de abrangência do público-alvo diminui: sobram apenas os leitores que ‘não percebem’ a diferença entre informação jornalística e ação publicitária.**
Como todo público que ‘não percebe’, esses leitores não prestam muita atenção. Resultado: mantêm-se distantes, não se envolvem com o veículo, não prometem fidelidade à marca (a nenhuma marca) e nada garante que, de uma hora para outra, deixem de comprar aquela publicação.**
As vendas em bancas e de assinaturas oscilam, tornam-se instáveis, e o anunciante reclama. Primeiro reclama, depois pára de investir.**
Os agentes publicitários reagem: bem que nós avisamos que essa turma da imprensa não sabe fazer…**
E agora?E agora, o que podemos fazer é um terceiro cálculo hipotético, sem dúvida menos apocalíptico: olhar para a história da imprensa e da propaganda brasileiras. Que tal analisar a época das grandes tiragens e das grandes campanhas publicitárias, ali entre os anos 1950 e 1970? Que tal ouvir aqueles profissionais que, com menos tecnologia, souberam enfrentar crises? Que tal tirar desse exercício lições que nos levem à retomada de uma relação mais equilibrada e produtiva para todos os interessados?
Thomaz Souto Corrêa diz, em seu artigo, que é do tempo em que ambas as artes – sim, podemos chamar de arte algumas reportagens e alguns anúncios – viviam separadas, mas sem conflito. Também sou do tempo em que folhear uma revista era um prazer da primeira à última página. Havia uma cadência agradável na alternância de reportagens interessantes (ou seja, impactantes e/ou comoventes e/ou divertidas e/ou úteis para a minha vida) com espaços ocupados por publicidade criativa, surpreendente, sedutora. Até por não se confundir com a parte editorial, graças a uma unidade de design e mensagem marcantes, era impossível não prestar atenção na propaganda, e gostar dela.
Da propaganda bem-feita, é claro.
******
Jornalista, consultora em comunicação e professora de Jornalismo Básico III da Faculdade Cásper Líbero