BAIXARIA NA TV
“Uso da miséria humana passa dos limites”, copyright O Estado de S. Paulo, 25/05/03
“A desgraça de uns faz a alegria de outros. Quinta-feira, a Record distribuiu à imprensa um comunicado festejando o ibope do programa Cidade Alerta do dia anterior que deu à emissora a ?vice-liderança? no horário. No mesmo comunicado, a Record gabava-se da ?exclusividade? de sua equipe que conseguiu colocar no ar, ao vivo, duas mulheres envolvidas em uma história dramática. A mãe de uma adolescente de 16 anos, vítima de estupro, e a esposa de um policial militar, acusado como autor do crime.
Dona Josefa e Roseli passaram por uma ?acareação? promovida pelo juiz Milton Neves, com todos os requintes de crueldade. Pessoas simples, provavelmente um pouco ingênuas, essas mulheres foram estimuladas a prolongar a discussão até não mais poder pelo apresentador. Cada uma imbuída em defender sua causa, Roseli e Josefa foram colocadas em uma arena que não conheciam.
Quando o assunto morria – afinal, eram duas posições inconciliáveis -, Milton Neves colocava lenha na fogueira pedindo a opinião de uma das partes sobre o argumento da outra. O triste é que isso foi feito com o maior entusiasmo. Agradecido pela colaboração (e pela resposta do monitor de audiência), Neves descrevia as protagonistas do seu show como duas ?guerreiras?. Da contenda, nenhuma das guerreiras saiu vitoriosa. Perdeu o telespectador. Venceu o show, como atesta a própria emissora em seu comunicado.
O complicado é que o Cidade Alerta não está sozinho no ramo. Sob o pretexto de fazer jornalismo, outros programas exploram a infelicidade dos humildes, expondo-os a um constrangimento do qual não têm recursos para se defenderem. Assim como o programa da Record, o ?repórter cidadão Marcelo Rezende?, o Brasil Urgente de José Luiz Datena, a Hora da Verdade de Márcia Goldschmidt e o Linha Direta de Domingos Meireles são produtos que utilizam a mesma matéria-prima: a boa-fé dos descamisados.
Todos tentam dar a impressão de prestar um serviço de utilidade pública, recurso perverso que funciona como ímã para atrair pessoas que não conseguem resolver seus dramas pessoais por meio de outras instâncias.
O problema da TV é que, ao conseguir audiência, os programas do gênero se alastram pela grade, contaminando atrações que, em princípio, seriam de variedades. Quando o caso é cabeludo, até as revistas femininas tiram sua lasquinha a título de ?debater a questão?. O grande emblema foi o caso da idosa de São José do Rio Preto, espancada até a morte pela enfermeira, cujo martírio foi exibido em todos os cantos da programação ad nauseaum. O mais recente é o caso Vilma Martins, que conseguiu sua prole à custa de outras famílias.
Domingo, o show de Gugu Liberato no SBT voltou a explorar o assunto e reprisou e repetiu a investida de uma de suas repórteres à casa de dona Vilma, que foi recebida com cuspe e esguicho pela filha da mulher. A ?reportagem? foi feita há meses, mas, como a cena era boa, o Domingo Legal tratou de relembrá-la para o público.
Não vamos ser puristas. Noticiar crimes, mesmo os mais repugnantes, é dever dos meios de comunicação. Mas fazer carnaval em torno deles para garantir a audiência é, no mínimo, inaceitável. O argumento de que o telespectador quer o show da desgraça – uma vez que é o dono do controle remoto – é discutível porque parte da premissa de que ele tem à sua disposição outras opções. Quando tudo é igual, a tese fica meio indefensável.”
SEM CERVEJA NA TV
“Câmara analisa 3.? feira veto a cerveja na TV”, copyright O Estado de S. Paulo, 24/05/03
“O substitutivo do deputado Miguel de Souza (PL-RO) à Medida Provisória 117, que restringe a propaganda de cigarros e bebidas alcoólicas no rádio e na televisão, deverá ser submetido ao plenário da Câmara dos Deputados na terça-feira. Sugerida em uma emenda do deputado Valdemar Costa Neto (PL-SP) e reforçada pelo ministro da Saúde, Humberto Costa, a proibição da publicidade de cerveja e coolers entre 6 e 22 horas foi considerada precipitada pelo governo. Nesta semana, o ministro da Casa Civil, José Dirceu, almoçou com o deputado para tentar convencê-lo de que a proposta deveria ser submetida a um amplo debate antes de ser regulamentada.
?Há no Congresso 126 projetos para regulamentar o assunto. O número, por si só, já reflete o desejo de que alguma medida para reduzir o consumo de álcool no País deva ser tomada?, afirmou Souza. Ele argumentou que a restrição da propaganda de bebidas com graduação alcoólica superior a 1 grau para o período da noite tem como objetivo preservar crianças e adolescentes.
?Hoje muitos comerciais são montados para cativar a simpatia do público mais jovem.?
O substitutivo traz também algumas alterações quanto à propaganda e venda do cigarro. O deputado não acatou a sugestão do ministro de restringir o comércio do produto em rodoviárias, aeroportos, supermercados e padarias.
Pelo texto de Souza, a venda não poderá ser feita em estabelecimentos de ensino e saúde. ?A redução drástica dos postos de venda acabaria incentivando a venda em camelôs?, justificou. ?Se isso acontecesse haveria uma dificuldade de controle da qualidade do cigarro. O contrabando seria beneficiado.? A proposta impede a venda de cigarros a menores de 18 anos. Argumentos – Souza informou ter recebido esta semana representantes de vários setores, tanto das indústrias de tabaco e álcool quanto associações de combate ao fumo. Entre os argumentos ouvidos por ele esteve o de que a restrição da propaganda acarretaria uma diminuição de impostos e provocaria desemprego. ?Temos de ver também os gastos no sistema de saúde provocados pelo atendimento de pacientes com doenças provocadas pelo fumo?, disse.”
CARGA PESADA
“Na boléia, com Pedro e Bino”, copyright Folha de S. Paulo, 25/05/03
“SEMPRE me impressionou a longevidade de Pedro e Bino, os caminhoneiros que protagonizam ?Carga Pesada?. Conheci-os no início da adolescência, em 1979, quando a Globo lançou o seriado. À ocasião, um time de peso assinava o roteiro: Dias Gomes, Gianfrancesco Guarnieri, Walter George Durst, Carlos Queiroz Telles.
Eram narrativas que me soavam perfeitas. Tinham muita aventura, mas também um tom humanista, quixotesco, de indignação com as mazelas sociais do país. E tudo sob roupagem francamente brasileira, que tentava responder à invasão dos enlatados norte-americanos.
Houve um episódio em que seis ou sete bandidos fugiram a nado de uma ilha-presídio. Logo que chegaram à praia, avistaram uma Kombi e, claro, a sequestraram. O carro estava abarrotado de cebola e cerveja. Quentes. Os criminosos, porém, refestelaram-se. Beberam e comeram feito reis. À exceção de um, que, cabisbaixo, lamentava: ?Não gosto de cebola. Não gosto de cebola?. Nunca o esqueci, símbolo involuntário da televisão coloquial, não raro irreverente, quea década de 70 se empenhavaem produzir.
O facínora que detestava cebola… Talvez não detestasse tanto assim. Olhos de meninos, agora aprendi, costumam trair as lembranças dos adultos. Imprecisões à parte, o fato é que o moleque não perdia um capítulo.
Numa noite de 1981, ?Carga Pesada? simplesmente saiu de cena -como, em breve, sairia o menino. Morreu o seriado, mas a dupla de heróis persistiu. Quantas vezes, nos anos seguintes, Pedro e Bino ressurgiriam, risonhos, em botecos e oficinas mecânicas, ilustrando propagandas de autopeças. Quantas vezes saudosistas de plantão evocariam os carreteiros para rebater um desavisado que se punha a elogiar estréias da TV: ?Você diz isso, mané, porque não viu aquele outro programa, o de Pedro e Bino?.
Qual o motivo de tamanha resistência? Que elixir garantiu aos personagens o dom de sobreviver, se frequentavam uma mídia tão fugaz, tão volúvel? Procurei as respostas na versão atual da série, que a Globo exibiu até terça-feira. Ali, Pedro (Antonio Fagundes) e Bino (Stênio Garcia) continuavam soltos como antes. Senhores das horas e do espaço. Livres.
Embora estivessem trabalhando, jamais se deixavam oprimir pelo dever. Faziam o que lhes dava na telha. Traçavam uma rota -e a alteravam caso o caminho sugerisse opção melhor. Ouviam a voz da estrada, à moda dos velhos beatniks.
Eis, quem sabe, uma das iscas que fisgaram para sempre os telespectadores daquele tempo. Pedro e Bino incorporavam, de um jeito bastante particular, o espírito ?easy rider? que tanto marcou a geração da contracultura e que ainda ressoava no começo dos anos 80. A própria música-tema do programa -interpretada, primeiro, por Renato Teixeira (o autor) e regravada, hoje, por Chitãozinho & Xororó- não cansava de exaltar a divisa quase anárquica: ?Eu conheço as minhas liberdades/ Pois a vida não me cobra o frete?. Note-se que tal elogio ocorria num instante em que o regime militar baixava a guarda, o que potencializava o caráter sedutor da mensagem libertária.
A canção de Teixeira, aliás, mexia em outro ponto caro à década de 70: ?Eu conheço todos os sotaques/ Desse povo todas as paisagens/ Dessa terra todas as cidades?. Ecoando os versos, Pedro e Bino se gabavam de percorrer o país inteiro: as metrópoles e as vilas, o litoral e os sertões. Com simplicidade, concretizavam a utopia grandiosa da integração nacional. Um sonho que a ditadura alimentou, uma parcela razoável da população acolheu, e a Globo, de certa maneira, realizou (sobretudo quando se transformou em rede). Novamente, portanto, os dois caminhoneiros transportavam não apenas grãos ou minérios. Carregavam também a alma de uma época.”