RELIGIÃO NA TV
“A culpa é do ?encosto?”, copyright no mínimo (www.nominimo.com.br), 24/05/03
“Talvez você não ligue o nome à pessoa, mas ?encosto? na CNT é o nome que se dá ao baixo astral, ao fim de um casamento, ao desemprego, à dor nos rins, ao cara que bateu na traseira do nosso carro e à maré de lances infelizes nos negócios. Todas as pessoas que aparecem se queixando de alguma dessas ziquiziras no Viva a Vida (CNT, segunda à sexta, 18h30), recebe um único diagnóstico. Tá com encosto, minha filha.
Quem dá o veredicto é o comandante do programa, o bispo Clodomir Santos, sempre corroborado, entretanto, pela palavra de uma superespecialista na matéria. Clodomir é assessorado por uma senhora de nome Norma Leal, já entrada nos seus 60 anos, e que tem seu crédito dado na tela como ?ex-bruxa?. Não é qualquer programa que tem uma ex-bruxa palpitando na frente do cenário, o pôster de uma mulher levando um soco na cara ao lado de outro pôster de um pulso sangrando sendo rasgado por uma faca. Totalmente trash, totalmente cult – e a atração está apenas começando.
Ao telefone, uma sofredora, ?amiga de Del Castilho?. Ela diz que uma vez já estava com o copo de água pronto para mandar goela abaixo o veneno chubinho que lhe iria dar fim a tanto sofrimento e humilhação – o marido tinha se mandado com a amante – quando foi salva por uma vizinha que tocou o interfone. Foi salva daquela vez, mas, o marido voltou, pior do que nunca, e ela continua pensando besteira.
?Só a fé no senhor Jesus pode tirar esse encosto, minha filha?, vaticinou Dona Norma, a bruxa que mudou de time e hoje palpita, contra as manhas do Demo, com os evangélicos da Universal do Reino de Deus na CNT. Programa prestador de serviço é isso aí.
Viva a vida aparece como a resposta da emissora à guerra pelo horário que calça a faixa nobre da televisão, um dos nichos mais concorridos da televisão no momento e com estrelas como Datena, na Bandeirantes, e Milton Neves, na Record. O bispo Clodomir recolheu todos os vícios dos seus colegas de horário – ?está no ponto??, pergunta ao operador se pode pedir a reportagem – e fez do Viva a vida uma atração religiosa-policial.
Ao telefone, dos subúrbios do Rio, vão surgindo vozes aflitas, todas femininas, reclamando que perderam tudo por causa da inveja de uma vizinha, dos requebros de uma amante e do alcoolismo do marido. É tudo encosto, como já se viu, mas você sabia que há encostos que foram colocados já em outra geração, passam de mãe para filha? Pois, então. É o encosto hereditário. Existe ainda o encosto proferido – você, em casa, no meio de uma briga com o marido, ele lança uma maldição. E o encosto mandado – alguém vai para a encruzilhada e põe seu nome lá.
Bispo Clodomir, um show-man cheio de bordões – ?tá na fé, tá ligado?? – vai mantendo a platéia em tensão com as imagens de seus exorcismos. Arranca encostos de pessoas que aparecem em seus cultos, todas com vozes clonadas da Linda Blair, a garota-atriz de O Exorcista, e com a imagem distorcida para impedir a identificação do sofredor. Na terça-feira, Clodomir mostrou que é fera em enfrentar a besta-fera. Na impossibilidade da ?amiga? ir ao seu culto logo mais, mandou que ela abraçasse a televisão, como ele estava fazendo com o monitor do estúdio naquele momento. E, dali, aos gritos, Clodomir mandou que o encosto se retirasse do corpo da sofredora.
Minutos antes, Marcelo Rezende, o âncora do Repórter Cidadão, da Rede TV!, tinha exibido uma rinha de cachorros pitbull. A luta que Clodomir usa para congelar seu público na frente da tela é a do encosto contra os evangélicos. O encosto se apossa do corpo da fiel e fica gritando, lá de dentro, coisas do tipo ?ela vai sentir nojo do marido, nojo?. Clodomir entrevista o encosto. O encosto responde, com aquela voz engraçada de encosto da CNT, enfezadão, as perguntas de Clodomir. ?Eu estou com ela desde o ventre?, admitiu um deles na terça-feira.
Todas essas performances são comentadas pela ex-bruxa e mais dois bispos, como se fosse uma espécie de mesa-redonda do jogo Pai das Luzes contra o Senhor das Trevas.
?O encosto é obstinado, ele quer ficar no corpo da pessoa?, disse um dos analistas.
O programa de terça-feira foi especialmente bom porque os encostos, como se não bastasse o serem e estarem dando entrevista na televisão, tinham sotaque baiano, pois haviam sido registrados na turnê de Clodomir por Salvador. Outra atração do programa é a novela ?Velas de Sangue, baseada em fatos reais?. No capítulo daquele dia, uma senhora em camisola sensual, pretinha, tentava seduzir o marido que, no entanto, não queria encostar nela de jeito nenhum. O cara parecia estar precisando de um Viagra. Mas não. Era encosto. A mulher, humilhada, começou a quebrar o quarto todo. Claro, também tava com o encosto.
Bety, a feia, não faria tão feio. O Casseta e Planeta não faria tão engraçado.
Em Viva a Vida é tudo tão evidentemente ruim e explorador da miséria alheia que não vai se perder tempo gastando alho e cruz com encosto de tamanho mau gosto. Dá pra rir, dá pra chorar, mas a grande maioria mesmo parece acreditar. Clodomir passa os intervalos anunciando cultos de exorcismo, chamados de Quera da Maldição, em filmetes de estética kitsch-mexicana, com letras verde e amarelas. A igreja de Del Castilho enche com 20 mil pessoas e as cenas mostram que todas elas batem nas cabeças e nos peitos exigindo que os demônios se mandem dali.
Não sei se é o Brasil Legal, de que falava a Regina Casé. Mas Garotinho, Rosinha e a imensa bancada de políticos evangélicos viram primeiro e concordam. É Brasil em estado bruto, esse imenso país que, cá entre nós, cobrando imposto de inativo, atirando em universitário, só pode estar carregando um tremendo de um encosto.”
TELEJORNALISMO
Antônio Brasil
“TV Matrix e o futuro dos telejornais”, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 26/05/03
“A TV é uma janela aberta para o mundo, para uma outra realidade. Em tempos de Matrix e novas tecnologias, a própria noção de realidade está sendo colocada em dúvida. Nossas vidas podem ser uma mera simulação cibernética e o real, uma simulação virtual. Essas novas tecnologias não só influenciam a nossa forma de viver o presente, mas elas também modificam a nossa capacidade de prever o futuro.
Agora, imagine um cenário para esse futuro na TV onde o público não mais simplesmente assista à realidade. Tente visualizar um telejornal que ofereça aos telespectadores a oportunidade de testemunhar in loco as notícias e os eventos importantes do dia. Ao invés de estar em casa na frente da telinha assistindo passivamente ao relato de um terremoto na Argélia, você seria convidado pelo jornalista de TV a visitar o local do desastre. Você poderia ver, ouvir, sentir o cheiro, tudo exatamente como se você estivesse lá. Teria o privilégio de confirmar, ou não, o relato do profissional de TV com o acesso às mesmas referências. Caso o telespectador do telejornal do futuro queira experimentar uma ?simulação? do próprio terremoto, ele deveria teclar uma tecla e pagar uma quantia adicional para sentir durante alguns segundos a incrível experiência de estar no meio de um grande desastre. Esqueça as promessas consumistas de uma TV digital. Estamos falando de uma TV Matrix.
Ficção científica? Cenário de filme futurista? Pode ser. Mas alguns pesquisadores como o Prof. John Pavlik em importantes centros de pesquisa de jornalismo como o Media Center da Universidade de Columbia e da Universidade Rutgers de Nova Jersey nos Estados Unidos já estão de olho nas incríveis possibilidades da realidade virtual para o jornalismo. Eles desenvolvem diversos projetos como o ?situated documentaries? e as câmeras de vídeo de 360 graus que procuram introduzir os conceitos e a tecnologia de realidade virtual. O objetivo é modificar a percepção dos fatos pelos jornalistas e a recepção da notícia pelos telespectadores. Eles desenvolvem a tecnologia que será utilizada pelo jornalismo de um futuro que não só apresenta diversas versões dos fatos, mas que possibilita vivenciá-los em diversas formas de realidade.
A idéia principal é estimular a participação e a interação do telespectador dentro da própria notícia e aumentar a qualidade dos noticiários, resgatando alguns dos valores fundamentais da mediação presencial do jornalista. Nesta nova proposta, o jornalismo se inspira no passado em busca de um maior rigor com uma qualidade que foi perdida numa longa trajetória de erros e acertos, mas que hoje se confunde com as promessas da ficção científica.
Escolas de jornalismo também deveriam ser centros de pesquisa. Não deveriam se restringir a formatar estudantes, cultuar o passado, criticar o presente e ignorar ou temer o futuro. Indicar ao mercado as opções para novos produtos, tecnologias ou linguagens comunicacionais também deveriam ser função da universidade. A TV brasileira não investe em experimentação laboratorial e pesquisa para criar seu próprio futuro. É sempre mais fácil ir a Miami assistir à programação das TVs americanas, voltar com idéias ?brilhantes? ou simplesmente pagar fortunas aos criadores de ?jogos? de shows de realidade.
No Brasil, os nossos telejornais tradicionalmente preferem repetir as fórmulas bem e mal sucedidas das TVs americanas. Até mesmo os cenários, formatos, linguagens e títulos são simplesmente ?copiados? dos americanos. O Good morning América da rede ABC, por exemplo, se tornou o nosso… Bom dia Brasil. É idêntico aos programas de notícia matinais produzidos na América. Deve ser mera coincidência! Pelo jeito, é mais fácil, cômodo e seguro copiar os modelos importados do que criar uma programação alternativa. De qualquer maneira, no mundo matrix da TV brasileira, o grande público não percebe nada ou não se importa mais. Afinal a programação pode ser ainda pior e ainda mais clonada na outra realidade de uma TV concorrente.
As experiências sobre o futuro dos telejornais nos EUA não se limitam a especular sobre questões éticas ou sobre formatos. Essas pesquisas também tendem a criar novas tecnologias na forma de softwares e produtos ainda mais específicos para a prática do jornalismo. Através da história, a introdução de novas tecnologias mudam nossos próprios conceitos de realidade, jornalismo, notícia, narrativa, mediação e, principalmente, a nossa própria noção de público. Nesse futuro, o telespectador passaria a ter acesso e vivenciar as informações e impressões que até hoje seriam privilégio dos nossos enviados especiais. A simulação da realidade pelas palavras e imagens produzidas pelos jornalistas ultrapassa seus limites e se torna uma nova realidade. A TV ao vivo modificou a nossa forma de ?ver? o mundo. A ?realidade virtual? nos nossos futuros telejornais modificaria a nossa forma de ?viver? esse mesmo mundo.
Confesso que não vejo a hora de ver esse futuro. Espero participar em breve dos grupos de pesquisas sobre esses novos formatos da TV e dos telejornais. Para isso, após muitos e muitos anos de pesquisa, defendo uma tese de doutorado sobre a imagem, os telejornais e as novas tecnologias pelo programa de Ciência da Informação da UFRJ na próxima segunda-feira, 2 de junho. Finalmente! Com certeza, conto com o apoio dos amigos e a indiferença dos inimigos.
Continuo acreditando que a melhor maneira de evitar os erros do passado é pesquisar as nossas alternativas para o futuro. A partir de setembro, vou tentar dar uma ?espiada? nessas alternativas trabalhando durante um ano com a equipe do Prof. Pavlik na Rutgers University. Além de contribuir para a criação de novos formatos de telejornais, vamos tentar aprimorar um projeto brasileiro de ensino de telejornalismo universitárion com transmissão diária e ao vivo via Internet. Uma idéia simples que tem dado bons resultados, apesar das enormes dificuldades para se trabalhar com tecnologia de ponta em universidade pública brasileira. Estamos exportando um conceito e uma prática que se transformaram em ferramenta poderosa para o aprimoramento profissional dos nossos futuros jornalistas de TV. Os americanos têm vários defeitos, mas reconhecem sempre uma boa oportunidade para ganhar dinheiro. Por incrível que pareça até hoje não existe sequer um manual audiovisual de telejornalismo. A idéia é desenvolver uma realidade virtual que ofereça aos estudantes a oportunidade de vivenciar o jornalismo de TV da mesma forma que um piloto de aviões recebe seus primeiros treinamentos em um simulador de vôo. Um programa de computador educativo que tenha todas as vantagens de um videogame de realidade virtual para o ensino de telejornalismo. Discussões sobre conceitos de realidade no cinema ou na TV podem não ser pura perda de tempo ou masturbação intelectual. Apesar das opiniões pessimistas, pesquisa acadêmica séria gera produtos importantes para a sociedade.
Mas enquanto o futuro não chega, você pode conferir diversos projetos de realidade virtual para jornalistas desenvolvidas pela equipe do Prof. Pavlik aqui ou, simplesmente, assistir ao trailer de Matrix Reloaded aqui.
Aqui entre nós, o filme é o máximo! Para quem gosta de cinema, ficção científica, videogame e filosofia, mesmo que seja ?filosofia de banheiro?, o filme é imperdível. Não sei se realmente vivemos em uma ?irrealidade virtual?, mas concordo que a maior conquista do homem foi adquirir o direito de perguntar o ?porquê??
Por último, uma dica importante para os cinéfilos apressados: assista aos longos créditos finais, ouça uma seleção ?irada? de rock pesado e veja um trailer ?surpresa? do próximo Matrix Revolutions. Vale a pena ter paciência, esperar e conferir o futuro!”