FOLHA DE S.PAULO
"Painel deformado", copyright Folha de S.Paulo, 25/5/03
"O Painel do Leitor, publicado na página A3, deveria ser, por definição, um espaço democrático para manifestação de opiniões e queixas de leitores.
É certo que autoridades ou celebridades em geral são também leitores do jornal e que, nesse sentido, a presença de cartas suas naquele espaço pode fazer sentido. Ocorre, porém, uma deformação séria e preocupante.
Tem sido notória a ocupação da maior parte da seção por cartas de pessoas que procuram, ali, contestar reportagens do jornal nas quais elas ou suas instituições foram envolvidas.
Neste mês, até sexta-feira, 51% da centimetragem ocupada por cartas no Painel são de autoridades, com as devidas respostas dos jornalistas. No período de 10/5 a 23/5, essa taxa sobe para 58%.
Não por acaso, cresceu também o número de reclamações dos leitores ?comuns?, que vêem nisso, com razão, um desvirtuamento da seção.
Em tom de brincadeira, surgem em algumas mensagens ao ombudsman sugestões de mudança para o seu nome: Painel das Respostas, Painel dos Consertos, Painel das Reti-ratificações, Painel das Lamentações, Painel das Queixas…
Não é um problema novo. Eu mesmo já o abordei aqui, em 10/3/2002, discutindo, por exemplo, a idéia, que também não é nova, de criar um espaço específico para as contestações das autoridades -idéia que a direção do jornal considera discriminatória, pois criaria, em princípio, duas classes de leitores.
O problema de fundo, na verdade, é outro: a dificuldade do jornal de aplicar até o fim, com regularidade, a sua própria norma de sempre ouvir o ?outro lado?, de fazer desse princípio uma parte orgânica das reportagens que publica.
Se isso de fato acontecesse como deveria, é fácil supor que a procura das celebridades pelo Painel -ao menos como espaço de ?outro lado?- cairia bastante e o jornal não se veria obrigado a reduzir tanto a chance de seus leitores ?comuns? se manifestarem ali democraticamente.
Na situação atual, querendo-se ou não, vigora objetivamente, no Painel do Leitor, a existência de duas categorias: leitores ?mais? e leitores ?menos?.
Check-up no ?Times?
Na esteira do explosivo caso de Jayson Blair, o ex-repórter do ?New York Times? que fraudou inúmeras reportagens com plágios, invenções e mentiras -aqui abordado semana passada-, o mais influente dos diários norte-americanos anunciou na quarta-feira, em duro memorando interno, a criação de uma comissão de mais de 20 jornalistas, incluindo até quatro pessoas de fora do ?Times?, para rever os principais procedimentos usados pela Redação.
Dentre as pessoas de fora estão um ex-presidente da agência Associated Press, um ex-editor de Opinião de um jornal de Seattle e uma ex-ombudsman do diário ?The Washington Post?.
A idéia de integrar à equipe essas pessoas deve servir, diz o texto, para uma verificação rigorosa da própria checagem, de modo a apontar ao jornal se ele não está sendo condescendente demais consigo mesmo.
O grupo rastreará as operações de recrutamento, contratação, promoção, o processo editorial (inclusive apontamento e prevenção de erros), questões éticas, como o uso de fontes não-identificadas (o chamado ?off?), e fará à direção do jornal um parecer sobre se ele não deveria instituir a figura do ombudsman.
Bombardeado por todo lado, inclusive por seus concorrentes, o ?Times?, como se vê, acusou fortemente o golpe do caso Blair.
Essa medida, num dos maiores e mais importantes jornais do mundo, expressa o quanto a credibilidade, ao lado da ética e da transparência, integra o núcleo central de qualquer veículo que se proponha a fazer um bom jornalismo.
Questão de sobrevivência.
Jornalistas vendedores
A imagem de isenção e independência de um jornal e de seus jornalistas implica contínua vigilância. Como tem traços de subjetividade, criam-se, para além dos princípios éticos gerais, normas objetivas de conduta que traduzem na prática o esforço pela sua manutenção.
Tais regras são uma espécie de pacto público -jornal, jornalista, leitor- pela credibilidade e pelo direito à informação, independentemente do que uns e outros pensem de si próprios em determinadas circunstâncias.
Um anúncio de página inteira de um lançamento imobiliário publicado quarta-feira com texto da colunista Erika Palomino (veja ao lado) fere uma regra do jornal e levanta uma questão importante sobre o tema.
A regra, do verbete ?Ética? do ?Manual da Redação?, diz que:
?O jornalista da Folha não deve participar de anúncio comercial. Fica facultada, porém, a possibilidade de atuação em anúncios de campanhas de interesse público, com autorização prévia da Direção de Redação?.
Ao vetar que jornalistas atrelem sua imagem à venda ou divulgação de produtos, esse preceito obriga a que seja explícita, sem margem para nenhuma dúvida, a sua independência em relação a interesses de terceiros que poderiam, em tese, se imiscuir nas páginas do jornal.
Palomino afirma ao ombudsman que, de início, fez um texto como free-lancer apenas para um folheto do lançamento e que, contatada depois sobre a sua inclusão em anúncio, não considerou que isso ofendesse a ética do jornal ou a sua própria.
?Não se tratava de um testemunhal ou de uma recomendação à compra?, afirma a colunista. ?Apenas exponho as características do bairro e do empreendimento?. Caso contrário, diz, teria consultado a direção.
Para ela, o episódio não maculou sua imagem nem a do jornal.
A direção de Redação afirma que não foi consultada previamente sobre o caso e considera que houve um descumprimento de norma clara do ?Manual?, acrescentando que a colunista foi repreendida pelo jornal.
A participação em anúncio, com efeito, dá asas a especulações, abre campo para comprometer a confiança de leitores no jornalista. E pouco importa, aí, objetivamente, o julgamento que ele faça sobre sua atitude.
O veto a essa participação é um escudo em defesa de sua imagem e, indiretamente, da credibilidade do próprio jornal."