Um clima de julgamento sumário parece ter se formado em torno do projeto dos Conselhos de Jornalismo – reproduzindo, por sinal, a condenação automática à proposta que pretende punir a publicação de documentos (no caso, transcrição de grampos autorizados) protegidos pelo segredo de Justiça.
Sejam quais forem os defeitos do projeto, as unânimes críticas instantâneas de que é alvo tendem a ‘engavetar’ o que decerto é a questão essencial: a relutância da mídia em se submeter à fiscalização ética que ela exerce – e deve exercer – sobre pessoas e instituições.
A imprensa brasileira, que tantas vezes atira primeiro e pergunta depois (quando o faz), se concede uma espécie de atestado de inimputabilidade. Desse pacto participam desde patrões a peões do ofício, todos se imaginando sacerdotes da verdade.
Nem editorias de mídia, à maneira americana, têm os jornais e revistas nacionais, para criticar também, sempre que for o caso, os desvios éticos de que se possam acusar os produtos da atividade informativa.
Por que um Eduardo Jorge Caldas Pereira, para citar um caso de livro de texto, não teve um organismo corporativo, com poderes similares aos dos conselhos das profissões liberais, ao qual pudesse recorrer para pedir algum tipo de punição àqueles que o acusaram de quase tudo e não provaram nada?
Por que um jornalista não tem uma instância profissional à qual possa expor – quanto mais não seja para proteger a própria reputação – quem quer que, no emprego, tente induzi-lo a praticar atos de linchamento moral contra terceiros?
É inútil invocar o argumento de que as vítimas sempre podem apelar para a Justiça. Sendo o que ela é no Brasil, é forte a possibilidade de que os linchados morram com a honra no esgoto antes de conseguir a reparação dos malfeitos cometidos contra a sua imagem pública.
Sem falar que muitas vezes os malfeitos são irreparáveis, porque denúncia sai em manchete e a admissão do erro, em letra miúda (salvo exceções tão… excepcionais que se tornaram, elas próprias, notícia).
‘Boas’ e ‘ruins’
Desancar o projeto dos conselhos sem tomar a iniciativa de propor uma alternativa de auto-regulamentação profissional capaz de reduzir a incidência de injustiças cometidas por má pontaria jornalística ou de caso pensado é perpetuar a dívida moral que a mídia brasileira tem com a sociedade.
No Brasil há bastante corrupção para justificar o zelo investigativo da imprensa em relação às autoridades públicas de todos os níveis e instâncias – e aos seus ‘interlocutores’ no mundo do dinheiro.
Mas custa crer que esse zelo será tolhido – cerceado, como se diz – pela existência de um conselho formado por jornalistas com legitimidade plena para dizer à corporação ‘por aqui não pode’, para castigar quem enveredou pela contramão da ética e para dar aos queixosos da mídia o ressarcimento, ainda que simbólico, a que tiverem direito comprovado.
Para os jornalistas que tenham a coragem de reter uma informação potencialmente destruidora enquanto não se sentirem seguros o suficiente para bancá-la — mesmo ao preço de serem furados por concorrentes menos escrupulosos —, lutar contra os controles do Estado e do mercado nunca será sinônimo de lutar contra quaisquer controles, por definição.
P.S. – A leitura do texto exclamatório da Veja desta semana ‘Censores, uni-vos!!’ (por que só dois pontos de exclamação?) dá vontade de ir à rua com um cartaz em defesa do projeto.
Trata-se, define a revista, de ‘uma idéia cubana, já que reafirma a impressão de que o governo acha que deve – e pode – comandar todos os processos da sociedade…’
À parte o delírio da analogia, a Veja atribui ao ‘mercado consumidor’ a capacidade de produzir uma seleção darwiniana que elimine as publicações ruins e prestigie as boas. É uma rematada asneira, com cheiro de desonestidade intelectual.
Primeiro, parafraseando, porque o mercado não deve, não pode e nem consegue (ainda) comandar todos os processos da sociedade.
Segundo, porque no capitalismo de concentração e de oligopolização da mídia, o pobre do consumidor é tão capaz de eliminar as ‘publicações ruins’ – não falta quem diga que a Veja é uma delas – como de fazer prosperar ‘as boas’ que sejam periféricas ao sistema e não se enquadrem na indústria do infotenimento, pródiga em violação dos padrões éticos mínimos que é preciso defender na imprensa com unhas e dentes.
Terceiro, porque não cabe nem ao Estado nem ao mercado, mas às instituições que o ofício puder organizar e fazer funcionar com autonomia, a tarefa indispensável e intransferível de se policiar. O que já não será sem tempo.
[Texto fechado às 16h09 de 7/8]