MISÉRIA E MUDANÇA
Ivo Lucchesi (*)
Tão logo O Globo (27/5/03) estampou, em primeira página, a frase do presidente Lula ("Eu não mudei, a vida é que muda"), decidi que escreveria um artigo centrado nas implicações semânticas e conjunturais suscitadas pela afirmação. Eis que Alberto Dines, sempre atento e observador, involuntariamente, ameaçou, por momentos, demover-me da intenção, ao publicar, no Jornal do Brasil, o artigo "Metáfora e realidade" (31/05/03). A habitual destreza e competência com a qual Dines aborda os acontecimentos da vida, entretanto, deixou-me, pelo menos, um atalho, o que me reconduziu ao propósito inicial.
A frase em si não mereceria destaque maior se o autor não representasse o cargo que exerce, e se a ela não estivesse atrelado um contexto a sustentar o vigor de uma campanha eleitoral na qual à palavra "esperança" se somava, como fiel parceira, a palavra "mudança". Ao propor-se, no fervor de uma campanha, um projeto de mudança, pelo menos está implícita a idéia de que a vida pode ser imutável. Admitindo, portanto, a imutabilidade da vida, o candidato, hoje presidente, faria mudá-la. Por outro lado, ninguém há de se espantar com o fato de a vida mudar. Afinal, ela sempre esteve em mutação. Vida, desde os pré-socráticos, é movimento. Por extensão, quem não muda fica fora da vida. Analisada por esse ângulo, a frase revela certo grau de incongruência semântica. Das diferentes implicações, muito bem delas tratou Dines. Assim, vou incumbir-me de distinto enfoque.
A rigor, a sentença parece insinuar outra mensagem: "Eu quero, mas não posso". Aí vem à tona a real natureza do conflito do qual o Brasil, há três décadas, se faz refém. E esta é a questão efetivamente a justificar o presente artigo. Sob a inspiração do regime militar, de perfil eminentemente tecnocrático, instalou-se a hegemonia da razão econômica. Esta, perpetuada no regime democrático, fez (e faz) do político mero serviçal do economista. Como conseqüência, há 30 anos o Brasil não pratica exercício político, no sentido profundo que tal experiência representaria. Também outros debates decisivos para a emancipação da nação ficam absolutamente neutralizados (ou contaminados) pelo "raciocínio economicista".
Por incompetência ou por acomodação, o fato é que o discurso econômico dita os (des)caminhos do país, década após década. Tal avaliação, por conseguinte, não se dirige ao governo atual, e sim, literalmente, a todos os dirigentes, cuja missão era (e é) a de conduzir o país à condição de Estado autônomo. Entre "políticas monetárias" e "fórmulas financeiras", o Brasil se afigura um corpo amputado e assolado por flagelos sociais crescentes, disseminando-se por todos os segmentos populacionais.
Pobreza econômica e miséria intelectual
Da elite econômica aos bolsões de excluídos, tem-se um tecido societário degradado pela dominante indigência cultural. A ditadura a reinar no Brasil foi a mais perversa da América Latina porque torturou e triturou a inteligência nacional, condenando gerações. A democracia que sucedeu ao regime militar, por sua vez, fez do restabelecimento da liberdade de expressão seu bastião e, para o restante, deu as costas sem o menor cuidado de promover mínimos reparos à qualidade cultural e, em certos aspectos, tem colaborado para o agravamento.
"Políticas econômicas" serviram para assegurar ganhos de capital a alguns setores e, para segmentos populacionais, quando muito, inserção no consumo para gastarem em quinquilharias e subprodutos de tudo. O resultado é deplorável: pobreza econômica e miséria intelectual. É nesse modelo gangrenado (e com alta taxa de riqueza concentrada) que proliferam o consumo de droga, a violência indiscriminada, a deformação do caráter, a diluição dos afetos, a competição destituída de critérios éticos e tudo, enfim, que torna a vida asfixiante.
O grande horizonte desenhado como meta, segundo repetidas mensagens, é a criação de um "mercado de massa". Ótimo, vamos consumir o quê? O que isto culturalmente significa? Poder comprar o livro inútil? O CD mais indigente? Ver o filme mais medíocre? Não há sociedade com vida menos penosa, sem realinhamento radical na formação dos indivíduos.
Ignacio Ramonet, jornalista e diretor do Le Monde Diplomatique, no ensaio "O poder midiático", publicado na coletânea organizada por Dênis de Moraes [Por outra comunicação: mídia, mundialização cultural e poder, Record, 2003], afirma: "(…) enquanto o nível educacional sobe, o nível midiático desce" (p. 220). É bom frisar que o jornalista sentencia com base na observação crítica quanto à realidade européia. No caso brasileiro, ignorando esparsas exceções, a frase deve ser outra: "Enquanto o nível educacional (e cultural) despenca, o nível midiático desaba".
Não menos necessária se faz a menção ao desfecho do artigo "A questão da cultura", do teórico e ensaísta Luiz Costa Lima, publicado no suplemento Mais!, da Folha de S.Paulo (18/5/03):
"(…), para o governo atual ser de fato outro, precisa reconhecer que, ao lado do combate à fome, ao analfabetismo e à violência do crime organizado, a questão da cultura faz parte de nossas carências elementares. Considerar a cultura escrita coisa das ?elites? é um absurdo sem comentários. O cuidado com a cultura talvez não dê muitos votos. Mas significará um país menos desarvorado".
Registre-se que o clamor presente é apenas eco de um brado já manifestado, entre outros, ainda ao longo dos anos 1970, pelas palavras do escritor Osman Lins, no livro Do ideal e da glória: problemas inculturais brasileiros (Ed. Summus, 1977). O autor chamava à reflexão e a uma atitude reativa contra a adoção de um "modelito educacional" que ele batizou de "Disneylândia pedagógica" (p. 138), voltado para estimular a "infantilização" da cultura, aspecto hoje mais que identificável em todos os níveis.
Não se trata, pois, de "alarmismo". É fato e reconhecível por qualquer profissional de ensino comprometido com a seriedade acerca do que faz. Há profunda deformação cultural na esmagadora maioria dos estudantes brasileiros: da educação fundamental à universidade. A situação é calamitosa e representa grave ameaça a qualquer projeto de aspiração à autonomia. Gerações têm sido "formadas" com claros sinais de deficiência cognitiva.
O país não está interessado em saber quem mudou ou não mudou. Isto fica para o círculo da "cultura da fofoca". O que de efetivo deve preocupar a todos é se a vida ? que sempre muda ? pode mudar para melhor, ou ainda, para pior. Outros aspectos ficam para o próximo artigo.
(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor-titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV/RJ