MÍDIA NO IRAQUE
Ricardo Veiga (*)
Depois da chuva de bombas, parece que os Estados Unidos vêm perdendo a guerra no Iraque, num front em que são especialistas: o da mídia. Numa reportagem, do dia 4 de maio, o Globo mostrou que os xiitas iranianos, filhos da revolução do aiatolá Khomeini, estão saindo na frente no que diz respeito a esse aspecto do pós-guerra. "No Iraque, a única TV que pode ser sintonizada sem ajuda de satélite é a iraniana, que criou um canal em árabe com uma atraente programação que inclui partidas de futebol de times europeus. Toda sexta-feira, dia santo mulçumano, os xiitas assistem ao aiatolá Ali Khamenei, que semana passada acusou os soldados americanos de tocar em mulheres iraquianas durante registros, o que causou grandes manifestações contra os americanos", dizia a reportagem.
A mídia ocidental vem enfatizando o crescente poder dos xiitas sobre o povo iraquiano. A reportagem do Globo diz que o mulá al-Salami, porta-voz de uma das organizações islâmicas no Iraque, acredita que 60% da população do país hoje seja de xiitas.
Ainda não se sabe se os planos de "democratização" da aliança anglo-americana abrangem uma investida sobre a mídia local ou se se restringem ao controle dos poços de petróleo. Mas, levando-se em conta que as demonstrações do agressor, até o momento, foram de que pretendem permanecer no comando do país, seja num governo-fantoche, seja com seus próprios indicados, este será um campo que não poderá ser desprezado.
No entanto, que ninguém pense que essa nova mídia levará algum tipo de liberdade ao povo iraquiano. Cabe lembrar as palavras do lingüista Noam Chomsky, um dos maiores críticos do sistema midiático: "A mídia americana é hoje uma das maiores inimigas da democracia."
Visto que vivemos em meio a estes mesmos mecanismos de controle do pensamento, muitas vezes fica difícil acreditar ou mesmo medir até que ponto eles nos manipulam tanto quanto a TV iraniana ou as vozes dos aiatolás com suas profecias. Essas técnicas de conquista de corações e mentes não se dão apenas em tempos de guerra, mas principalmente em tempos de "paz", o que, por sua vez, as torna mais eficazes. Chomsky expõe outros exemplos de como a propaganda através dos meios de comunicação é usada para garantir o poder (neste caso, não só em países conquistados, mas principalmente em seu próprio país). No livro Novas e velhas ordens sociais, ele cita, como um dos inúmeros exemplos, o caso do estudioso da propaganda Harold Lasswell que advogava "o uso mais sofisticado dessa nova técnica de controle do povo em geral, que é uma ameaça à ordem por causa da ignorância e da superstição das massas."
Outro exemplo é uma máxima formulada pelo filósofo David Hume como um dos Primeiros Princípios do Governo: "Para assegurar que a maioria seja governada pela minoria e para garantir a submissão implícita com a qual os homens renunciam a seus próprios sentimentos e paixões em favor daqueles de seus governantes, estes devem controlar o pensamento."
Povo de muitas vozes
É bom salientar que as melhores propagandas não são feitas no intervalo comercial das TVs, boxes de jornais ou páginas específicas de revistas, mas sim no conteúdo de suas reportagens, quando têm seus efeitos potencializados e mais eficazes, já que é neste momento que as defesas psíquicas dos "cidadãos" estão menos atentas e, muitas vezes, acreditando piamente na veracidade dos fatos. Do mesmo modo, esses efeitos são melhores em atmosferas de democracia, e não de ditadura.
Em recente entrevista ao programa Roda-Viva, da TV Cultura, o repórter português Carlos Fino, do canal RTP, deu uma dimensão do que pode estar por vir no Iraque. "As restrições eram muito fortes no império de Saddam, mas até aí havia uma certa empatia e podíamos alargar a capacidade de ação, mesmo dentro de certas regras. Mesmo com elas, chegamos a filmar coisas proibidas, enquanto os soldados fingiam que não viam e olhavam para o lado", declarou o repórter, para logo em seguida complementar: "Foi mais difícil a convivência com os americanos do que com os iraquianos". Fino explicou que tal fato pode ser decorrência de uma prática maior dos americanos com os meios de comunicação. "Depois que os americanos tomaram o poder no Iraque, fomos impedidos de entrar em muitos lugares em que gostaríamos de estar. Eles nos impediam dizendo que nós não éramos embedded (incorporados aos comboios americanos)".
Uma das frases do jornalista português dá o tom do que é a democracia hoje, seja a que será implantada no Iraque, seja a do próprio povo americano: "Qualquer coisa que saia da linha oficial hoje no discurso jornalístico na América já é condenada. Criou-se essa psicose."
A idéia utópica da democracia, que gerou a própria palavra, era a do povo no poder. O problema é que esse povo é feito de muitas vozes. A propaganda, sem dúvida, é um meio de se persuadir o maior número dessas vozes em torno de um objetivo. O grande problema é quando um tipo apenas de propaganda se impõe, não pela persuasão, mas pela força. Nesse momento, a democracia se esvazia, criando-se assim o paradoxo entre democracia e propaganda, que se pode resumir nas palavras de um poeta inglês: "Toda propaganda não procura um diálogo, mas sim um eco."
(*) Formando em Jornalismo