ECOS DO IRAQUE
Michael Massing é jornalista, editor-colaborador da Columbia Journalism
Review <http://www.cjr.org/>,
publicação de debates sobre mídia da Columbia University,
em Nova York, e articulista bissexto em The New York Review of Books <http://www.nybooks.com/>.
Enviado ao Catar durante o conflito no Iraque como representante do Comitê
para Proteção de Jornalistas (CPJ <http://www.cpj.org/>),
do qual é diretor, viu-se de camarote para avaliar as condições
de trabalho e o desempenho dos correspondentes. Ele publicou essa avaliação
em longo artigo na edição de maio da New York Review of Books.
Para Massing, o Centro de Mídia da Coalizão na Base Saliyah, em Doha, capital do Catar, parece ter sido desenhado à prova de repórteres. Ele descreve em longos parágrafos a aborrecida burocracia para a entrada no Comando Central da coalizão anglo-americana, a arquitetura de bunker dos prédios e a parede interposta pelos militares entre a informação e a imprensa. Considerou praticamente inúteis os briefings do general Vincent Brooks, "alto, ereto, impecavelmente polido, imperturbável", marcadamente nulo em informação e às vezes dedicado à desinformação, como no episódio da morte de dois jornalistas no Hotel Palestine: ele afirmou que o tanque americano respondera a fogo vindo do hotel. Ou os do coordenador Jim Wilkinson, oficial naval da reserva que tirou a farda do armário para comandar um centro de mídia que fez parecer comitê de campanha ? não por acaso trabalhara na máquina eleitoral de George W. Bush em 2000, informa Massing.
Com uma semana de guerra, conta o autor, os jornalistas começaram a escrever suas próprias media pieces, como as chamavam, comparando os briefings de Doha às infames Five O?Clock Follies ["Loucuras das Cinco Horas", entrevistas coletivas diárias em Saigon que nada informavam] da Guerra do Vietnã. As matérias, entretanto, raramente falavam da própria mídia. "Com mais de 700 credenciados, o Coalition Media Center oferecia uma soberba oportunidade para observar como os repórteres de diferentes nações viam a guerra".
Encantados pela guerra
Tão avaro em informações era o Centcom que nos briefings diários as perguntas feitas eram freqüentemente mais reveladoras do que as respostas dadas. As perguntas de europeus e árabes eram mais incisivas do que as dos americanos. Os primeiros queriam saber da precisão dos mísseis, do uso de armas contendo urânio empobrecido, das vítimas civis. Os americanos faziam perguntas como: "Por que as transmissões dos iraquianos não foram interrompidas?"; "O Iraque está usando armas proibidas pela ONU?"; "Poderia dar mais detalhes do resgate de Jessica Lynch?". "Uma repórter de TV americana me disse que tinha medo de pressionar demais, ou não seria convidada para os briefings", conta Massing. "Wilkinson era conhecido por repreender repórteres que considerava pouco favoráveis à guerra; ele advertiu um deles dizendo que estava numa ?lista? com dois colegas."
Após cada informe, os correspondentes de TV entravam ao vivo, conta Massing. "Eu me sentei perto algumas vezes para escutar". Os britânicos invariavelmente incluíam alguma análise nas matérias. Por exemplo, James Forlong, da Sky News britânica, observou que o general Tommy Franks deixara o briefing a um subordinado em "quarto lugar no comando" (isto é, Brooks), e que "muito pouco detalhe foi divulgado". Perguntado sobre um incidente de fogo amigo, Forlong respondeu que Brooks teve pouco a dizer, exceto que o incidente estava "sob investigação". Já Tom Mintier, da CNN, repetiu fielmente os pontos abordados por Brooks, e com sinais de aprovação. "Eles mostraram espantosas imagens de um ataque aéreo a um palácio", Mintier disse, quando descreveu um vídeo exibido no briefing.
Tais diferenças de estilo eram visíveis nas transmissões. "No hotel, freqüentemente me vi atraído para a BBC", diz Massing. "Com 200 repórteres, produtores e técnicos em campo, a maior mobilização de sua história, a rede exibiu âncoras centrados, correspondentes tenazes, matérias perceptivas, e um naipe de especialistas em Oriente Médio, em contraste com os generais aposentados que víamos na TV americana". Os repórteres não temiam desafiar a coalizão, comenta. Quando um âncora perguntou a Paul Adams, correspondente de defesa da BBC, se os combatentes iraquianos estavam usando "táticas semiterroristas", ele rebateu que era mais apropriado dizer "guerra assimétrica", isto é, o uso de táticas não-convencionais por forças mal-armadas.
A BBC competiu fortemente com a Sky News, canal de Londres que pertence em parte a Rupert Murdoch. Com equipe bem menor, eles eram muito ágeis. O correspondente Geoff Meade ficou conhecido no centro de mídia por suas perguntas agudas, até grandiloqüentes. Quando Bagdá estava prestes a cair, sem que se descobrisse nenhuma arma de destruição em massa, ele perguntou: "Esta guerra vai fazer história por ser a primeira que termina antes que se encontre o que a causou?"
Depois de ver os britânicos, achei os americanos estridentes, diz. "Em meu hotel, a MSNBC parecia estar sempre ligada, e fiquei chocado com sua pieguice e sua ofegante torcida; seus âncoras contavam histórias da bravura americana". Após os ataques ao Hotel Palestine e ao escritório da al-Jazira, convocou seu especialista em terrorismo, Steve Emerson, que antes de qualquer apuração dos fatos garantiu que os tiros foram acidentais.
Os repórteres embedded pareciam encantados pela guerra. Num informe tendencioso, o médico Bob Arnot ? normalmente da área de saúde ? seguiu excitado seu cameraman num prédio escuro onde estavam presos dois iraquianos. Mulheres e crianças podiam ser vistas ao fundo. "Estão lutando lá fora", disse, indignado. "Aqui na frente há RPGs [granadas lançadas por foguetes], usadas para matar fuzileiros, e nos fundos estão esses reféns civis, aterrorizados." Mas aterrorizados por quê? Os homens presos no cômodo da frente? A luta lá fora? Arnot não perguntou.
Dirigidos pelo mercado
Ainda em casa, vendo a CNN, Paula Zahn falava como uma líder de torcida dos americanos; Aaron Brown buscava a observação profunda, sem jamais encontrá-la; Wolf Blitzer polidamente entrevistava os grandes e poderosos de Washington, sem uma pergunta incisiva. Nenhum deles, entretanto, aparecia nas transmissões em Doha. Em seu lugar, Jim Clancy, correspondente americano veterano e centrado, Michael Holmes, australiano de fala macia, e Becky Anderson, inquisitiva âncora britânica. Era a CNN Internacional, que transmitia para o mundo, mais séria e informada que a versão americana.
A diferença não é casual, diz Massing. Seis meses antes da guerra, executivos da CNN em Atlanta decidiram separar as edições. Eles sabiam que o jeitão de vizinha de Paula Zahn e os monólogos de Brown não cairiam bem entre britânicos, franceses ou alemães, menos ainda entre egípcios e turcos. Assim, com grandes gastos, enviaram duas equipes, paralelas mas separadas, para cobrir a guerra. Apesar da sobreposição, especialmente nos informes de campo e no uso de jornalistas conhecidos como Christiane Amanpour, a edição internacional não tinha o tom autocongratulatória da doméstica. Num dado momento, Becky Anderson, ouvindo um excitado Walter Rodgers reportar o avanço dos EUA, admoestou-o: "Não vamos dar a impressão de que não há resistência." Rodgers concordou.
A CNN International se parecia mais com a BBC do que com a CNN doméstica ? uma diferença que mostrou o quanto eram dirigidos pelo mercado o tom e o conteúdo das transmissões. A maior parte das empresas de mídia dos EUA deu aos americanos a guerra que, achavam, os americanos queriam ver.
Massing lamenta que a maioria dos jornalistas não ousou sair do trajeto hotel cinco estrelas/Centcom. "Se tivessem olhado em volta testemunhariam uma fascinante experiência política", diz, contando que, embora ligeiramente menor do que Connecticut, o Catar está plantado sobre gás natural suficiente para aquecer cada lar americano por mais de 100 anos, e durante o conflito promoveu eleições municipais. Entre os vitoriosos estava uma mulher. Em Doha, homens em vestes brancas, shoppings iluminados e conhecidas redes americanas, mostrando a convivência da austeridade wahhabi [dos islâmicos sunitas] e o consumismo ocidental, atraíram a atenção de poucos.
Trabalhando até tarde para atender editores distantes sete fusos horários, eles obtinham a maior parte das informações na TV, na internet e de colegas de campo. "Conversando com eles no Sheraton e no Ritz-Carlton, descobri que estavam mais interessados em questões militares, como deslocamento de tropas, formação de tanques e o comprimento dos comboios de abastecimento", diz Massing. Como estavam em Doha para cobrir o Comando Central, eram preocupações naturais, mas a maioria não se importava com os aspectos políticos da campanha militar.
Pergunte ao taxista
Parte da dificuldade advinha do fato de que a maioria pouco sabia sobre o Oriente Médio, vinda de redações em Washington, Cidade do México, Roma, Bruxelas, Nairóbi, Bancoc, Hong Kong. Não estavam familiarizados com a história árabe, as raízes do fundamentalismo islâmico, o ressurgimento do nacionalismo árabe, as mudanças no equilíbrio de poder na região desde o 11/9. Grave era o desconhecimento do árabe. Não podiam conversar com os árabes, nem ler seus jornais ou assistir seus canais de TV.
Para as TVs americanas, a falta de experiência no Oriente Médio é sintoma do abandono da cobertura internacional. Tom Fenton, da CBS, contou a Massing: "Em 1970, quando entrei na rede, eu era um dos três correspondentes no escritório de Roma. Tínhamos escritório em Paris, Bonn, Varsóvia, Cairo e Nairóbi. Hoje pode-se contar o número de correspondentes estrangeiros nas duas mãos, e sobram três dedos. Antes, tínhamos stringers [free-lancers fixos] em todo o mundo. Agora, ninguém pode se permitir isso." Até The Washington Post tem apenas um punhado de profissionais fluentes em árabe, e apenas um deles, Anthony Shadid, estava no Iraque. Foi dos poucos americanos capazes de ir além da superfície.
Muitos repórteres ignoravam os mais rudimentares fatos da história e da geografia iraquianas. Uma correspondente do Los Angeles Times contou a Massing sobre um colega entusiasmado que, incorporado a uma unidade de fuzileiros que corria para Bagdá, reportou pelo telefone: "Estamos prestes a atravessar o Ganges!" Avisado de que se tratava do Tigre, ele disse: "É, um desses rios bíblicos." Massing conta mais: "Quando comentei com uma repórter do USA Today a dificuldade de cobrir o Oriente Médio sem muita experiência da região ela disse: ?Você pode ler um livro, como Deus tem 99 nomes, e entender como são as coisas por aqui?, disse, referindo-se ao livro de 1996 de Judith Miller [do New York Times]. ?Qualquer motorista de táxi conta tudo o que se precisa saber.? Detalhe: a maioria dos taxistas de Doha é da Índia ou do Paquistão".
No vácuo da URSS
O maior problema para o jornalista é a impossibilidade de sintonizar os canais árabes. Agora eles já são cinco, mas o mais importante continua sendo a al-Jazira, fundamental para a definição do modo pelo qual os árabes viram a guerra.
Para os ocidentais, al-Jazira é um enigma. De um lado, exibiu longas entrevistas com autoridades americanas; durante a guerra, mostrou os briefings do Pentágono muito tempo depois que outras redes, entediadas, haviam desistido. Al-Jazira ofendeu muitos governos árabes com a cobertura franca de suas políticas repressivas. Durante a guerra, o ministro da Informação iraquiano, Mohamed Saeed al-Sahaf, denunciou-a como "marketing da América". Mostrou tapes de Osama bin Laden e, na Guerra do Afeganistão, um tom decididamente pró-talibã. Cobre as baixas palestinas na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, e se refere aos homens-bomba como mártires. Na guerra, mostrou prisioneiros americanos sendo interrogados e soldados britânicos mortos, pelo que foi advertida.
Uma visita aos estúdios da emissora é instrutiva. Montada com US$ 140 milhões do emir do Catar, é tão avançada quanto as redes ocidentais, com uma redação arejada na qual uma parede de monitores mostra imagens por satélite do mundo inteiro. Em sua equipe há gente de 18 nacionalidades, inclusive refugiados palestinos e cristãos libaneses. Homens vestem roupas esportivas, mulheres, jeans e sandálias. O porta-voz, Jihad Ballout, surge em jaqueta de couro, fumando Gitanes, e dirige um BMW conversível. Mas também há mulheres em roupas pretas tradicionais e homens em roupas brancas tradicionais. Entre eles, o presidente do canal, o xeque Hamad bin Thamer al-Thani, da família real do Catar.
"Aprendi em Doha que a equipe da Jazira se divide em duas facções: a islâmica, religiosa, defensora do nacionalismo árabe, que se opõe vigorosamente à cultura e ao poder político ocidental; a outra, secular, atraída pelo liberalismo e o modernismo, com vínculos europeus", conta Massing. As duas lutam pelo poder.
Riad Kahwaji, chefe do escritório local de Defense News, disse a Massing que a disputa interna na Jazira reflete "a própria luta no mundo árabe". Antes do colapso soviético, o mundo árabe, em termos simples, dividia-se entre a "esquerda tradicional", em geral secular, e a "direita tradicional", em geral religiosa. Com a queda da URSS, a esquerda desapareceu, como no Egito, e o vácuo foi ocupado pelos islâmicos linha-dura. Os governos, forçados a reagir, aderiram à rigidez islâmica. E a política na região ficou saturada de religião, com reflexos em tudo, inclusive na mídia. A Jazira não é exceção.
Um choque necessário
Os islâmicos antiocidentais têm mais poder na Jazira. Ocasionalmente um moderado expressa o desejo de um Iraque democrático. São mais freqüentes, contudo, as manifestações do nacionalismo árabe antiocidental. Na Jazira, a guerra foi vista principalmente pelo ângulo das vítimas, e os outros canais árabes não diferem muito. A novata al-Arabiya, criada pouco antes da guerra, que se apresenta como alternativa moderada à Jazira, também explorou as baixas civis, reflexo do sentimento popular. "A esmagadora maioria do mundo árabe não vê legitimidade na invasão", disse Riad Kahwaji.
"Para mim, a guerra vista na Jazira pareceu unilateral; sua cobertura teria sido beneficiada com mais informações sobre os crimes de Saddam e a oposição da maioria xiita", opina Massing. "Mas a TV ocidental falhou na direção oposta, mostrando uma guerra de libertação sem vítimas." Os mais de 500 repórteres embedded, acrescenta, fracassaram em mostrar os efeitos reais da guerra, como gente morta e mutilada. Por exemplo, na tomada de Bagdá. Três mil soldados iraquianos teriam morrido. "Na TV, não vi um deles sequer", diz Massing. Na CNN, a única baixa mostrada foi a de um soldado iraquiano ferido, que Walter Rodgers encontrou na beira da estrada. Um segurança ajudou o homem, enquanto os médicos americanos eram chamados. Tudo muito dramático, e sintomático do tipo de vítima que a CNN julga apropriado mostrar ? as socorridas por americanos caridosos.
No Catar, o International Herald Tribune publica um suplemento local, The Daily Star, e é revelador comparar os dois. As manchetes do Herald em 7 de abril: "Reconhecendo a vitória: como saberemos quando vencermos a guerra no Iraque?"; "Para soltados americanos, terapia ajuda a reduzir estresse da batalha"; "Esperança dá lugar à tristeza sobre fuzileiros desaparecidos"; "Soldado resgatada reencontra a família". No mesmo dia, The Daily Star publicou matéria de capa intitulada "Hospitais do Iraque oferecem retrato do horror". "Tais diferenças, me contaram em Doha, refletem não apenas a ampla oposição à guerra, mas também o fato de que as pessoas têm muito maior tolerância em relação a imagens do que nos EUA", diz Massing.
Os filmes americanos mostram gente explodida em pedaços, mulheres retalhadas. Mas os executivos de TV acham que nas guerras de verdade os americanos não suportam ver corpos empilhados e cadáveres decapitados. Pior, se essas imagens fossem mostradas o efeito poderia ser uma redução do apoio à guerra. No caso do Iraque, o conflito que os americanos viram era esterilizado, com armas a laser atingindo seus alvos com grande precisão. Poupados das vítimas, os americanos têm pálida idéia dos custos humanos.
Para o ano que vem, a Jazira planeja transmissões em inglês. As imagens que costuma exibir podem chocar os americanos. Em vista do que lhes é habitualmente mostrado, tal choque parece necessário.