PROPRIEDADE CRUZADA
Nelson Hoineff (*)
A decisão tomada na segunda-feira (2/6) pelo Federal Communications Comission (FCC) cristaliza a nova ordem segundo a qual a propriedade de veículos de comunicação capazes de ter alguma abrangência massiva nos EUA é privilégio de grandes grupos. Hoje estes grupos são cinco: News Corp, Viacom, Disney, AOL Time Warner e General Eletric.
É a mais radical decisão de toda a história do FCC e vai provocar enormes mudanças no quadro da propriedade dos veículos nos EUA. As mais importantes decorrem evidentemente do fim das restrições à propriedade cruzada (a mesma empresa poderá ser dona de jornais e redes de televisão em grandes cidades, o que era vedado há 30 anos) e da ampliação da abrangência das redes ? uma empresa poderá de agora em diante ter mais de uma emissora na mesma cidade e as redes poderão passar a atingir 45% dos domicílios, contra 35% até então, e continuarão pressionando para que esse percentual se amplie até a liberação total.
Uma vitória pessoal do presidente da FCC, Michael Powell, filho do secretário de Estado Colin Powell, para quem a estrutura que se criou após a sedimentação dos sistemas de distribuição de sinais de TV por assinatura põe em risco a sobrevivência das redes abertas.
Entre as milhares de vozes que se opuseram à medida, nenhuma é tão forte quanto a de Ted Turner, hoje paradoxalmente um dos principais acionistas da AOL Time Warner, uma das maiores interessadas na mudança. Turner diz simplesmente que não teria conseguido montar a CNN se as regras estabelecidas nesta segunda-feira estivessem valendo 15 anos atrás.
Tráfego multiplicado
A aventura de Turner é o mais eloqüente case study para se entender a maneira pela qual as redes de TV por assinatura foram criadas e se desenvolveram num ambiente semi-regulado. No início dos anos 1980, quando as plataformas de distribuição de sinais por cabo e MMDS começaram a se formar, ele era dono de uma pequena rede em UHF em Atlanta ? o canal 27, WTBS. Essas plataformas estavam sendo montadas em todos os EUA em torno das pequenas operadoras, que estabeleciam sistemas locais de cabo para distribuir com maior qualidades os sinais da televisão aberta, inclusive as emissoras locais.
Turner saiu pelo país contatando cada um desses operadores. Jogou sua pequena emissora num satélite doméstico, disponibilizou o sinal para os operadores e criou assim a primeira rede de TV por assinatura do mundo.
Os passos que se seguiram foram na mesma direção: com a CNN, que Turner montou logo em seguida, e com redes segmentadas (ESPN, Discovery, Cartoon e daí em diante) que iam sendo montadas em oposição às grandes redes abertas genéricas.
Todas essas redes foram absorvidas em cerca de dez anos pelas grandes corporações, mas todas nasceram de forma independente, fruto da visão de alguns empreendedores, da demanda natural de um mercado atrelado há 40 anos a um modelo generalista de televisão, assim como das possibilidades regulatórias e financeiras. O importante é que o desenvolvimento tecnológico que permitiu que o trafego de sinais de televisão se multiplicasse promoveu o aparecimento de algumas centenas de novas redes e de um novo modelo de produção e exploração de serviços de televisão.
Velhos modelos
Essa chance foi criminosamente desperdiçada no Brasil. Desde que as plataformas de TV por assinatura foram implantadas ? há cerca de 12 anos ?, nenhuma rede independente de TV foi criada. Nem uma sequer, que pudesse ter o gostinho de ser absorvida por algum gigante. Somos hoje os maiores importadores de programação do mundo. Associamos o ambiente de TV por assinatura justamente às grandes marcas internacionais ? precisamente os ESPN, Cartoon e Discovery, por exemplo, que hoje se tornaram ou fazem parte de grandes corporações.
Em outras palavras: a liberdade para se desenvolver independentemente não funcionou no Brasil. No tocante à televisão aberta isso é visível: Globo e SBT têm, juntas, 45,6% dos 61,9% dos televisores que estão ligados no horário nobre (a fonte é o Ibope publicado na Folha de S.Paulo em 28/5/03). Todas as outras redes patinam em fatias de mercado ínfimas o suficiente para não garantir a subsistência de ninguém (e, o que é um fenômeno psicológico, relutam em mudar).
São dados como esses que servem de argumento à política concentracionista de Powell. Melhor do que ter cinco redes definhando é ter duas fortes. Melhor do que ter a ausência de sinais (e de mercado de trabalho) nas plataformas de TV por assinatura pelas quais transitam centenas de canais é ter quatro conglomerados que façam toda a programação ? inclusive nacionalmente.
Vemos com justificado horror a legislação americana abrir as portas a esse nível de concentração da mídia. Não podemos ficar menos horrorizados ao observar o que a acomodação aos velhos modelos de produção e de mercado, aliados à incapacidade de lidar com novas idéias, fez com o quadro da televisão aberta e fechada ? e sem que o Estado tivesse qualquer responsabilidade nisso.
(*) Jornalista e diretor de TV