OPINIÃO PÚBLICA
Antonio Fernando Beraldo (*)
No final do ano passado, quem lida com a chamada "ciência triste" ? a Economia ? ou quem estava razoavelmente informado sobre as péssimas condições financeiras do país, sabia que a situação era tão delicada que seria uma insanidade, ou muita burrice, mexer no time que estava perdendo ? o risco de uma goleada pior era imenso. Dólar e juros nas alturas, inflação dando seus saltos, desemprego crescente nos grandes e médios centros, retração nas vendas do comércio, quedas acumuladas na produção industrial e a banca internacional fazendo as chantagens e a farra de sempre. Mas, nada de "fazer marola". Afinal, Lula estava eleito, a esperança tinha vencido o medo.
Enquanto o ano novo não chegava, o homem comum juntava os últimos tostões ou entrava fundo no cheque especial para tentar fazer um Natal mais decente. Apesar da "esperança", o homem comum, desconfiado, sacou tudo que tinha na poupança ? afinal, alguém lhe falou que os bancos iam falir porque o Lula confiscaria todo o dinheiro, e não convinha facilitar.
O homem comum não sabe, e nem quer saber, o que vem a ser balança comercial, risco-país, C-bonds, IPCA, hedge, capital especulativo, superávit primário ou remessa de lucros. Isso tudo é muito chato e "não tem nada a ver comigo". Não faz a menor idéia de quanto o país deve "lá fora" ? se soubesse, entrava em pânico ? e nem quanto deve "aqui dentro". Quando compra jornal, nos domingos, a primeira coisa que faz é jogar fora os cadernos de economia. O homem comum quer mais é prever quantos dias ainda vão faltar no seu salário, este mês.
A coisa "tá braba" e o homem comum não está desempregado, mas conhece um monte de gente que há meses não sabe o que é um trabalho fixo, e tem uns dois ou três parentes que estão "se virando" para botar comida dentro de casa. Um amigo lá da firma vendeu o carro, e até o chefe da seção tirou o menino da escola particular, não agüentou pagar a mensalidade ? mesmo ganhando bem e com a mulher trabalhando.
"Tentativa de fuga"
Lula tomou posse e o homem comum viu a cerimônia pela TV. Estava feliz, a mulher de vestido novo e a parentada toda acompanhando a festa, alguns vestindo camiseta do PT. Não se preocupava com a grana que ficou devendo, nem com as prestações da roupa nova da mulher ou com os pré-datados do supermercado. Lula falou bonito, falou em mudanças, e, nos meses seguintes, os ministros e as novas caras do governo apareciam na TV dia sim, dia também, para deitar falação. Acabariam com o analfabetismo, ia ter emprego e hospital para todo mundo, todo brasileiro ia comer três vezes ao dia, essas coisas.
Passou o carnaval, veio uma guerra para distrair a atenção e o homem comum ia dormir bem tarde, tentando adivinhar o que eram aquelas coisinhas brilhando na tela toda verde da TV. No dia seguinte, o jornal da TV explicava tudo direitinho. Os americanos ganharam a guerra, a paz voltou a reinar no mundo, tem essa gripe lá fora, e vida que segue, mas cadê os "zeros" prometidos? Vieram, sim, mais zeros à direita, nos aumentos nas tarifas da luz e do telefone, do condomínio, nos preços do supermercado…
O ano já está quase na metade, e continua não acontecendo nada de bom. Mataram a sobrinha de um colega do trabalho, uma moça de 14 anos, "bala perdida" no meio de um assalto na padaria do bairro ? coisa de marginais "lá do morro". Uma coisa horrorosa, a menina foi morta às 5 da tarde, ficou sangrando na calçada, todo mundo correndo apavorado com o tiroteio. A notícia saiu no jornal da cidade, na página dos crimes, com retrato do enterro da menina ? foi enterrada com o uniforme da escola ?, mas não deu na TV. No Jornal Nacional não saiu, mas algum figurão falou que "era inadmissível mais esta ousadia dos marginais". É que tinham matado um juiz, vê se pode?
O homem comum não prestava muita atenção nessas coisas, antes da morte da menina, e agora pensa que tudo está ligado ao tráfico de drogas, esta praga que "a polícia não tem competência nem condição de segurar". Bandido, traficante, estuprador, só matando, igual àquele que amarrou a filha do rival na cama do barraco da boca-de-fumo. Todo mundo que ia comprar droga podia bolinar a moça. Veio a PM, entrou atirando e matou quase todo mundo que estava por ali. O resto foi morto "durante a tentativa de fuga". Bem feito. Esse tal de Fernandinho Beira-Mar, que compra a polícia e os políticos, está vivo e todo gostosão, mas não dura muito. O pai falava no "Esquadrão da Morte", falava num tal de "Cara-de-Cavalo", e num outro, como é que chamava, mesmo? Ah, era o "Tião Medonho". Acabaram com a boca cheia de formiga, como o pai gostava de dizer, e isso é muito justo.
A sua opinião
Voltando da feira, no domingo de manhã da semana passada, duas moças o abordaram na rua. Bem vestidas e maquiadas, muito educadas, com crachá e tudo, disseram que trabalhavam para um instituto de pesquisa. Pensou que era "pegadinha", imaginou o que seria a gozação dos colegas lá do trabalho. Olhou para o lado tentando descobrir onde estava a câmara, mas a coisa parecia séria. Ele se acalmou e respondeu direitinho às perguntas, ainda mais quando a moça loura começava a pergunta com "na sua opinião…". Sentiu-se tão importante! Poucas vezes na vida alguém tinha lhe pedido a opinião sobre qualquer coisa. Então, declarou-se católico, embora não se lembrasse da última vez que tinha assistido à missa. Faixa de renda entre R$ 750,00 e R$ 1.000,00 ? mais para os R$ 750,00. Imóvel alugado, segundo grau completo, casado, duas filhas, sem plano de saúde, natural daqui mesmo. É a favor do aborto ("um direito da mulher") , mas só em alguns casos. É contra a pena de morte, também, mas é a favor, no caso de assassinato, tráfico de drogas e estupro. Pensa que o homossexualismo não é doença, e que a pessoa tem o direito de fazer o que bem entender, desde que não perturbe a vida dos outros.
Não, não sabe quem é o presidente do STF (nem sabe o que é STF, mas ficou quieto). Não sabe quem é o atual presidente do Senado, "era o ACM, não era?; mas foi cassado, não é mais". Aprova o governo do Lula, sim, e aprova as reformas Tributária e da Previdência, apesar do cunhado, que é funcionário público (e ex-petista), ter dito que era uma "traição" do Lula, e que vem mais greve por aí. Afinal, teve aquela propaganda na TV que comparava a reforma da Previdência com a Abolição da Escravatura (ele não entendeu a relação de uma coisa com a outra, mas o filme era muito bonito. Pena que algum juiz proibiu de passar).
Não confia nos políticos, muito menos na imprensa ? que "só conta mentiras e coisas que interessam ao governo". Todo dia quando vai para o trabalho, perde uns minutos lendo os jornais esticados na banca. De política "não entende muita coisa". Sabe que "o governador não pode fazer nada porque o governo não manda dinheiro para o estado". O prefeito, no começo, reclamou que "a prefeitura estava quebrada e que tinha que acertar as dívidas deixadas pela administração anterior". Agora, depois de botar todos os parentes e os amigos (e os parentes dos amigos) "lá dentro", armou uma enorme maracutaia com os donos das empresas de ônibus (que bancaram sua campanha) e aumentou as passagens em mais de 50%.
Lê revistas, sim, a Isto É, defasada, que um colega assina e leva para o escritório. Antes (há muito tempo) lia a Veja, mas ficou muito caro. Agora, brinca, só no barbeiro. A mulher lê Caras, lá no cabeleireiro, essas coisas da vida dos artistas, e, às vezes, traz para casa para "tirar idéia" das roupas. Livros, leu um no ano passado, do Paulo Coelho, que a filha mais nova adora e até copia "os pensamentos".
Tinha votado no Collor, mas disse que votara no Lula; não se lembrava daquela eleição de 1994, mas votou no FHC, e em 1998, também. Desde que se dá por gente sempre ouviu dizer que o "país está em crise", exceto na época do Plano Cruzado (a mulher virou "sacoleira" por uns tempos e ele fez uma viagem ao Paraguai) e no começo do Plano Real (comprou microondas e aparelho de CD).
Lazer? Lembra que no final da tarde de domingo, depois da sesta, assistiu no Fantástico alguém (homem? mulher?) cantando (?) uma música (?) que tinha algo parecido com "…carente, dependente, vou ser traficante do amor". Depois assistiu a um "número" com um cachorrinho engraçadinho pulando corda, e um sujeito descascar laranjas numa velocidade incrível. Legal.
Mau cheiro
O homem comum não é um idiota. Acostumou-se a viver na defensiva em um mundo onde tem que matar um leão por dia, e neste mundo de nada servem as toneladas de desinformação despejadas pela mídia. Se o caso é a reforma da Previdência, por exemplo, não tem acesso ao que diz quem mais entende do assunto: os auditores fiscais e os técnicos de atuária da própria Previdência. Se contar apenas com as "informações" dos jornais e da TV, será devidamente desinformado que a Previdência está falida por causa das aposentadorias e pensões milionárias pagas ao funcionalismo público.
Se é a reforma Tributária, não lhe darão chance de saber que, do jeito que está a proposta, vai fazer com que ele entregue ao governo, limpinhos, quase 5 meses de seu salário (atualmente são só 4 meses), mas ele vai continuar a depender do "atendimento" do SUS, e ainda não será desta vez que suas filhas conseguirão estudar na universidade. Se o caso é dos recentes "sucessos do governo junto à comunidade financeira internacional", não será dito que essa grana toda que entrou e continua entrando é quase tudo capital-motel, que não adianta em nada, pelo contrário.
O homem comum, pelo menos, será poupado de saber das incautas(?) derrapadas do ministro José Dirceu, ou da cândida súplica aos bancos para que diminuam as taxas de juros bancários e do cartão de crédito cobradas (ao homem comum) feita pelo ministro Guido Mantega. Ou da bravata inconseqüente do presidente Lula em "querer saber" por que este mesmos juros são tão altos.
O homem comum não perderá a paciência com a eterna, digamos, fluidez dos políticos que acomodam os partidos e acomodam-se à custa dos votos que vêm lhe pedir de tempos em tempos. Enfim, é preciso que tudo mude para que tudo continue como está, como nos ensina o Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957).
O homem comum não ficará irritado com o súbito desaquecimento das informações sobre o operosíssimo setor de engavetamento de CPI?s do Congresso, agora sob a nova direção de ex-moralizadores da vida pública, cuja competente prudência evitou o mau cheiro da privatização das teles, dos 30 bilhões de reais do Banestado e do furor grampeador do ACM.
O homem comum irá dormir esta noite, preocupado apenas com seus próprios problemas. Quanto aos casos "daquela cachorrada lá de Brasília", a grande mídia segue não fazendo marola.
(*) Engenheiro, professor do Departamento de Estatística da Universidade Federal de Juiz de Fora