FORMAÇÃO DO JORNALISTA
(*)
Nilson Lage (*)
O que é um jornalista?
Quando se discute a formação dos jornalistas, essa é a primeira pergunta a fazer .
Se jornalista é qualquer pessoa que escreve em jornal, então é claro que não se deve nem pode exigir formação específica
** Filósofos, como Marilena Chauí, escrevem em jornal.
** Sujeitos que pretendem ser filósofos, como Olavo de Carvalho, fazem o mesmo.
** Economistas, como Delfim Neto ou Maria da Conceição Tavares, idem.
** Também porta-vozes do mercado.
** Esportistas como Tostão ou Pelé comentam jogos de futebol.
** Empresários defendem, de vez em quando, seus interesses, embora, neste caso, pese sempre a suspeita de que o redator é o assessor de imprensa.
** Até donos de jornal, como Otavio Frias Filho, escrevem em jornal.
** Não sei se Rupert Murdoch, sempre chamado de ?milionário australiano?, ou Moon, sempre chamado de "reverendo", têm o mesmo hábito.
Mas a legislação brasileira diferencia "a pessoa que escreve em jornal" daquela que é "profissional do jornalismo"
E vai adiante, definindo como jornalista o profissional incumbido de apurar, processar e editar textos e imagens, paradas ou em movimento, de interesse e conteúdo jornalístico em veículos de informação. De interesse jornalístico são essencialmente notícias e reportagens, gêneros abarcados pela palavra inglesa news. Mas a profissão inclui também editores de opinião, ilustradores, chargistas e projetistas gráficos; deveria incluir gestores das empresas, principalmente nas áreas de circulação e de gestão de recursos, porque empreendimentos jornalísticos têm muitas peculiaridades gerenciais.
Que jornalistas por profissão devam
ter formação específica, pouca gente será capaz
de questionar.
A incerteza quanto ao nível da formação ?
se ela deve ser universitária ? vem desaparecendo à
medida que o avanço tecnológico acrescenta novos encargos
às velhas competências de andar, perguntar, fotografar
e escrever.
Em parte, isto se deve à mudança dos critérios de organização do trabalho, com a substituição do modelo taylorista, baseado na especialização, pelo modelo toiotista, baseado na participação e domínio global de tarefas pelos trabalhadores.
Em parte, resulta simplesmente do avanço da informática, que eliminou encargos como o cálculo do tamanho dos textos e o mapeamento manual das páginas, e da democratização do ensino superior nas sociedades modernas, nas quais se procura retardar o ingresso das pessoas no mercado de trabalho.
É crescente o número de habilidades que se creditam a um jornalista profissional
No Brasil, o mercado de trabalho é restrito e a especialização pode representar limitação insuportável, submetendo o jornalista às decisões empresariais ou financeiras de um grupo muito restrito de empresas ou instituições de mídia. Aqui, então, em benefício da liberdade de informação, o jornalista deve dominar recursos para a compreensão elementar de várias linguagens especializadas (discursos econômicos, da área de saúde, das ciências exatas etc, incluindo a crítica das falácias) e sua tradução em mensagens compreensíveis para públicos amplos; a produção de textos e de imagens paradas, com seu processamento digital; a editoração gráfica; a captação e edição de som e de vídeo; o provimento de informação e a operação básica com bancos de dados; a integração de diferentes media em páginas e portais da internet.
Habilidades suplementares podem e devem ser adquiridas em pós-graduação ou por autodidatismo. É crescente o número de jornalistas que cursam mestrado e doutorado em áreas como Economia, Ciências Políticas, Relações Internacionais, Filosofia, Engenharia e, mesmo, Comunicação.
Até hoje não foi recomendada pela Capes nenhuma pós-graduação strito senso em Jornalismo, o que representa, na prática, que nenhuma obteve autorização de funcionamento.
Vista por esse ângulo, a formação do jornalista inclui muitos conhecimentos técnicos e instrumentais
Conhecimentos instrumentais são, por exemplo, os de linguagens.
No entanto, é claro, isso não basta.
É necessário dispor de informação ampla e crítica sobre fatos e idéias da história recente (com remissões ao que, no passado, ajuda sua compreensão) e uma visão ética que permita ao profissional lidar com instituições e pessoas, relacionar-se com os valores de diferentes grupos de nossas sociedades plurais.
A dúvida consiste no conhecimento não técnico ou instrumental que os jornalistas devem ter em sua formação básica
** Antropologia, sociologia, ciência política?
** E por que não direito, literatura, retórica?
** Geografia, economia, epistemologia da ciência?
** Semiologia, lingüística, estética?
** Informática, ecologia, estudos culturais?
Essa dúvida é de tal forma inquietante que, em vários países do mundo, admite-se a formação profissional pós-graduada de jornalistas oriundos de diferentes áreas de graduação.
Mas a questão central é outra. Por que jornalismo deve ter seu próprio curso e não permanecer como habilitação de comunicação social?
Ou, ainda, o que, afinal, é comunicação social?
É bom notar que jornalistas, ao contrário de publicitários e relações públicas, são responsáveis legal e moralmente pelo que produzem
Essa é uma das muitas características que diferenciam a profissão de outras a ela agregadas sob o rótulo de "comunicação social" no contexto da guerra fria. Imaginava-se então que a formação conjunta com publicitários e relações públicas, aliada ao discurso estruturalista, contrabalançaria a suposta vocação dos jornalistas profissionais para o apoio a revoluções marxistas.
Na verdade, o que se pensava ser "vocação marxista" é a essência da profissão: a desconfiança do poder, a crítica do senso comum, a busca da verdade. O jornalismo existe há 400 anos como prática e há quase 200 anos como profissão. Essas características já o definiam quando o marxismo se difundiu pelo mundo.
Em nome dessa desconfiança, da crítica e da busca da verdade, a história conta com milhares de mortos em situações de guerra, arbítrio e intolerância. Será que nem o sacrifício desses profissionais ? ainda agora mais 14 morreram no Iraque ? e a vocação de servir que é a alma do ofício não nos rendem o direito a gerir nossas próprias graduações, como fazem os advogados, os padres, os engenheiros, os médicos, os fisioterapeutas, os veterinários, os administradores, os pedagogos, os agrônomos, os músicos, os bibliotecários?
Por que não podemos desenvolver, visando nossos próprios interesses e o bem comum, programas de pós-graduação que contemplem as muitas interfaces da profissão com áreas como a informática, a administração, a lingüística, a psicologia cognitiva e a engenharia do conhecimento?
O que mantém o ensino de jornalismo atrelado a comunicação social é um medo sem sentido e um jogo de poder
** Resumi o ponto de vista central que vimos sustentando.
** Não há argumento apreciável em contrário.
** Jornalistas mordem sanduíches, não comunicólogos.
** Não gostam, em geral, de política acadêmica.
** Aí terminaria meu artigo.
** No entanto, é agora que o inicio realmente.
** Passo a discutir até que ponto tem sentido manter sequer a disciplina de Teoria da Comunicação, da maneira como ela vem sendo ensinada nas escolas brasileiras, em um bom curso de jornalismo.
Numa boa formação, limitada a poucos anos, não há espaço para conhecimentos sem aplicação, discursos fora da realidade ou ideologias que fingem ser ciência
** Refiro-me aqui à Teoria da Comunicação ? repito e reitero, tal como é, em regra, ensinada em nossas escolas. Um conteúdo que se resume, na prática, à crítica do modelo de Shannon e Weaver, certamente injusta, porque esses brilhantes engenheiros queriam modelar instalações telefônicas e de rádio, não diálogos ou monólogos entre pessoas;
** à leitura do texto de Adorno-Horkheimer sobre o iluminismo, onde, no final das contas, a crítica é mais à cultura grega e à ciência do que a qualquer outra coisa;
** aos textos de Walter Benjamim sobre a narrativa e a reprodução da obra de arte;
** a uma conclusão que deságua, para alguns, na psicanálise lacaniana, em Baudrillard, Virilio, Bordieu e assemelhados; para outros, em Jameson ou em alguma outro especialista em estudos culturais, de preferência algum desses que acham a matemática machista e asseguram que todo índio é selvagem.
Essa teoria não se aplica, está fora da realidade e não constitui ciência.
É evidente que, em que pese a imprecisão do conceito, a abrangência insegura e a falta de método próprio ? e até por isso mesmo ?, comunicação social poderia incluir conteúdos interessantes como aqueles que se referem às teorias da conversação de Grice e Gordon Pask, à teoria da relevância, à teoria dos modelos, aos estudos estatísticos de Lazarsfeld, à contradição entre o "direito de informar" e o "direito de ser informado" etc.
Lamentavelmente, não é isso o que acontece, pelo menos por aqui.
O fundamento do jornalismo moderno é o mesmo que o da ciência: a verdade existe e é adequação do enunciado à coisa
É contra esse conceito, veritas est adaequatio intellectus ad rem, formulado por Isaac Israeli no século 9 da era cristã, que se levanta a ira dos (ou da maioria dos) professores de comunicação que lecionam em nossas escolas, cegamente alinhados com a onda pós-moderna.
Retomam a fábula da caverna de Platão para afirmar, diferentemente do que está no texto do fílósofo, que a realidade não existe ou que ela e a ficção são a mesma coisa, ou que a objetividade é impossível. Esse é um ponto fundamental para eles.
A partir da constatação, repetida ao infinito, de que nenhum conhecimento é inteiramente objetivo, concluem que nenhum conhecimento é objetivo. Essa falácia equivale a afirmar que, se esse prédio foi construído com medidas sujeitas a margem de erro, devemos sair todos correndo antes que ele desabe sobre nossas cabeças.
Fiquem tranqüilos: não desabará.
Uma antropóloga muito citada passou anos acompanhando a atividade de jornalistas para concluir que eles fazem tudo direitinho, mas por medo de perder o emprego ou de responder a processo judicial. Essa é certamente uma tese sobre a natureza humana, não sobre o jornalismo.
Os textos básicos de comunicação exemplificam todas as formas imagináveis de falácias. A primeira delas é certamente a "petição de princípio". Parte-se da certeza de que o jornalismo é uma prática nefasta para concluir, inevitavelmente, que ele é uma prática nefasta.
O mais grave é que a rejeição da objetividade pode não ser só um equívoco acadêmico. Pode ser algo muito perigoso
Em seguida tentarei demonstrar que, no terreno das idéias, o século passado não terminou em 1991, com o desmonte da experiência soviética, como supôs Hobsbawm em seu best seller A era dos extremos.
Ele prossegue com seu destino trágico.
E é preciso clareza ao lidar com as contradições e os desafios que nos coloca.
A rejeição da objetividade é caso típico de prestidigitação em que a direita finge ser esquerda. É uma espécie de travesti ideológico.
Comecemos com dois livros: A multidão criminosa (1891), de Scipio Sighele, e Psicologia das Massas (1895), de Gustave Le Bon
São obras de reacionarismo profundo, com raízes ora em puro racismo, ora em textos que tentam explicar a proliferação de criminosos no ambiente social criado pela recessão européia ? a mesma que trouxe para o Brasil muitos de nossos avós.
Ralf Georg Reuth relata, em sua obra sobre Goebbels, a profunda influência do texto de Le Bon, traduzido para o alemão em 1911, sobre o jovem estudante que se doutoraria no final de 1921 na Universidade de Heidelberg para tornar-se, anos depois, militante nacional-socialista e, finalmente, ministro da Informação do governo de Hitler, com ingerência na mídia, no ensino e nas artes.
Mas também na América repercutiram bastante as idéias de Le Bon. Elas estão presentes no destino atribuído aos media por Walter Lippman de "fabricar o consentimento" das massas para o progresso, a produção, o consumo; bem como na tese de Harold Laswell que, em 1927, analisando as técnicas de propaganda utilizadas na Primeira Guerra Mundial, refere-se à "gestão governamental de opiniões".
Não se pode também descartar a influência dessa ideologia sobre a iniciativa de criação da revista Time, em 1922, ano seguinte à instalação do Conselho de Relações Exteriores, que reuniu as maiores empresas americanas objetivando preparar os Estados Unidos para a liderança mundial.
Time, com seu estilo opinativo que organiza informações verdadeiras para substanciar versões convenientes dos fatos, eventualmente falsas ? o chamado Timestyle ? , teve imenso impacto na época porque significou mudança radical no processo de construção no país de um jornalismo objetivo, não sensacionalista, voltado para a verdade e no qual as pessoas pudessem confiar.
O modelo de jornalismo fundado na verdade e na objetividade é talvez a única grande contribuição original dos Estados Unidos para a cultura contemporânea.
A tese de que a mídia injeta nas pessoas veneno para o qual elas não têm defesa é sempre popular. Será isso falso? E como então as pessoas são convencidas de tantas novidades, algumas absurdas?
Essa é uma questão central.
É possível, até certo ponto, determinar comportamentos, sim, mas para isso não bastam mensagens sugestivas. Controlar a opinião pública significa, sobretudo, controlar a realidade que faz parte do contexto a que as pessoas recorrem para a compreensão das mensagens.
A partir de um exemplo de agora, mostro como:
** Parte-se de um atentado terrorista espetacular e conveniente, que é amplificado ao máximo.
** Faz-se que a repercussão do evento coincida com alguns escândalos.
** Com isso, infundem-se doses crescentes de medo a uma sociedade viciada em consumo e na qual as pessoas têm relativamente poucas garantias sociais ? razão pela qual temem, antes de tudo, a recessão.
** Recorre-se a leis de exceção, medidas policiais e de saúde pública, dispositivos de alerta e pânico, restrições ostensivas e radicais.
** Promove-se o patriotismo exaltado e sem risco para as pessoas comuns, porque as forças armadas são profissionais.
** Escolhe-se um inimigo único de cada vez, e joga-se a culpa nele.
** Mostram-se os músculos, os cérebros se entorpecem. É tempo de Rambo, não das Vinhas da Ira, do Velho e o Mar, do Apanhador no Campo de Centeio.
Está pronta a receita. Os meios de comunicação tendem a ser compelidos a concordar, tanto quanto o Congresso, a Suprema Corte ou a Academia.
Ainda assim, mobilizam-se os amigos à direita, põe-se pressão sobre jornais não comprometidos, por mais cuidadosos que sejam no esforço de preservar algum jornalismo decente mantendo, ao mesmo tempo, a saúde financeira.
Se há um Washington Post, estimula-se um Washington Times, de Moon; a um New York Times, contrapõe-se um New York Post, de Murdoch. Trocam-se tempos e postas.
É claro que, para que isso funcione assim, é preciso analisar o contexto em que os fatos transcorrem
O contexto, no caso, envolve o surgimento do euro, que pode ser uma ameaça séria à hegemonia do dólar e, portanto, à preservação do modelo desenhado em Bretton Woods ? a conferência econômica que, ao fim da Segunda Guerra, atribuiu à moeda americana circulação mundial e proteção relativa contra a inflação.
A exportação de fábricas e o protecionismo, por motivos políticos, de setores não competitivos são talvez os principais fatores recessivos.
Outro aspecto é o controle da informação, não pela mídia em si, mas no nível das fontes e das teorias econômicas que permitiram a atribuição de valores absurdamente altos às chamadas "empresas de alta tecnologia". O estouro dessa bolha de supervalorização, em 2000, criou grande insegurança em um país onde o investimento em bolsa é bastante difundido.
Mas há também fatores culturais que vão da qualidade técnica dos efeitos especiais ao extremo realismo de personagens de ficção, a tal ponto que, para muitos, a distinção entre fantasia e realidade não é clara. Assim, o horror fictício proposto pelo governo Bush parece menos exagerado ou ridículo do que realmente é. Ele recupera estereótipos e estéticas que vão do dadaísmo dos cenários que envolvem os subversivos democratas em Robocop até a Metrópolis, de Batman, recriada com sombras e formas do expressionismo alemão da década de 1920.
Em suma, a mídia, como o nome está dizendo, é intermediária, não criadora.
A tese da agulha de injeção foi negada em décadas e pesquisa estatística. Mas, apesar disso, nunca foi posta de lado
Ela sobrevive tanto na Escola de Frankfurt, que supostamente fica à esquerda, quanto, à direita, no pensamento de personagens como Zbignew Brzesinski, que em 1971 propôs a "engenharia social".
No caso de Frankfurt, a tentativa de "entender"? o crescimento do nazismo e, depois, de sobreviver na realidade da guerra fria levou os filósofos a renegarem coisas fundamentais no marxismo, como a luta de classes e o papel dominante do capitalismo.
Em Adorno e, principalmente, em Marcuse, o capitalismo é substituído pela "indústria cultural" e a classe operária passa a ser "massa", isto é, algo que se conforma com as mãos, como queria Scipio Sighele.
Com isso, o discurso filosoficamente sofisticado de Frankfurt parece às vezes um Frankenstein político.
Para sustentá-lo é necessário, então, rejeitar provas empíricas e desacreditar a pesquisa liderada por Lazarsfeld durante décadas, com base em métodos estatísticos.
Contra esses estudos e a ciência em geral, as acusações mais comuns são as de "positivismo" e "funcionalismo".
Em regra, quando se pede que expliquem o sentido dessas palavras e a pertinência das categorias, acontece uma perplexidade constrangedora.
Se toda essa compreensão distorcida da realidade, hoje, viesse de pessoas desinformadas ou simplórias, talvez pudéssemos convencê-las
** Associamos homens-bomba a crenças religiosas arcaicas, que pregam a ablação do clitóris das mulheres e as proíbem de escolher o caminho do trabalho e da vida pública. Imaginamos que elas sobrevivem graças aos imperialismos que sempre cuidam de preservar oligarquias locais em benefício próprio.
** Associamos a ortodoxia judaica a povos isolados, submetidos ao horror dos progroms e para os quais a fé enrijeceu como instrumento de resistência.
** Associamos o fundamentalismo texano à Ku Klux Klan e ao criacionismo que repudia Darwin e o big-bang .
** Associamos selvageria a selvagens, civilização a civilizados.
Mas não é bem assim.
A questão central, a razão do espanto, é que a ameaça vem hoje de seres inteligentes, de elementos da elite pensante do país mais poderoso do mundo
Descobri isso ao estudar o pensamento de Paul Wolfowitz, secretário-adjunto de Defesa, ex-decano da Escola de Altos Estudos de Ciência Política da Universidade Johns Hopkins e ex-embaixador na Indonésia. Ele não é apenas a inteligência que fechou, na história da Mesopotâmia, o parênteses aberto por Lawrence da Arábia há oito décadas.
É considerado, também, o inspirador dessa estranha política que arrasa um território do tamanho do Afeganistão procurando um homem, não o encontra e canta vitória. A mesma que afirma que o Iraque tinha armas de destruição em massa, embora não as tivesse e, por via das dúvidas, invade e ocupa o país acusando seu presidente, que não captura, e, é claro, toma posse de seu petróleo. Ou que agora acusa o Irã de ter armas nucleares, embora a nação muçulmana seja signatária do Tratado de Não Proliferação e esteja sob permanente monitoramento da ONU.
Se tudo correr como se espera, a ocupação do Irã ocorrerá provavelmente antes da reeleição de Bush.
O que descobri é espantoso. Tal como nossos comunicólogos, Wolfowitz acha que é impossível ser objetivo.
Daí ele conclui que a máquina de informação da inteligência militar deve estar aliada à política e que, em caso de dúvida, devem confiar na intuição ? insight assumption ? ou na opinião baseada na experiência ? a expertise.
É a mesma coisa que ouço há décadas nas escolas brasileiras de comunicação. A tese do indispensável engajamento, da identidade entre anúncio e notícia, entre informação militar e justificativa fabricada, entre gestão empresarial e arrogância a serviço do lucro.
Antigas mentiras nos aprisionam: a associação entre fascismo e loucura; a suposição de que ele é mero produto de insensatez e preconceitos
O fascismo foi e é movimento intelectual sério, que teve e tem muitas faces, espalhou-se por toda a Europa, teve e tem ramificações importantes nos Estados Unidos e na América do Sul.
Um dos braços do pensamento fascista, temperado com o descrédito na condição humana herdado do pessimismo de Hobbes, estende-se até nosso tempo.
Traz lições de Martin Heidegger, filósofo brilhante, a quem se deve uma releitura do princípio da verdade de Isaac Israeli. A lado de conformar o discurso à realidade, ele propôs conformar a realidade ao discurso, adaequatio rei ad intellectum.
O mundo seria conforme a vontade da potência.
Enfim, o clima sombrio e devasso da República de Weimar está presente agora, neste sécul 20 que se recusa a terminar.
Quem nos mostra isso é Leo Strauss, filósofo que, como os teóricos de Frankfurt, adaptou-se nos EUA e lá recriou a mística dos anos 20
Leo Strauss, filho de judeus ortodoxos, nasceu em 1899.
Na juventude, foi liberal. Acreditava que não havia contradição entre ser alemão e ser judeu. Foi isso que lhe ensinou Herman Cohem, seu professor na Universidade de Malburg, ao aproximar a ética de Kant e a moralidade bíblica.
A fragilidade da República de Weimar e a ascensão do nazismo levaram-no, na década de 1920, a rejeitar as teses liberais por incapazes de conter explosões de fanatismo. Nessa época, freqüentou os cursos oferecidos por Martin Heidegger na Universidade de Freiburg, nos quais se produzia a crítica mais radical ao racionalismo.
Era um homem dividido. Um alemão que se inspirava em um filósofo pró-nazista, um judeu atuante nos círculos de revisionismo sionista liderados por Vladimir Jabotinsky e um amigo de Carl Schmitt, jurista que validou o golpe ditatorial dado por Adolf Hitler após o incêndio do Reichstag.
Quando esse fato ocorreu, Strauss, com a ajuda de Schmitt, já havia deixado a Alemanha para estudar em Londres e Paris, de onde se transferiu para Nova York e Chicago com uma bolsa da Fundação Rockfeller ? caminho que seguiriam outros filósofos alemães, em particular os da Escola de Frankfurt.
É difícil resumir as idéias de Strauss. Elas vão de Heidegger, com sua crítica da razão, a Hobbes, que estudou longamente, com sua descrença na natureza humana
Para Leo Strauss, o homem moderno é estruturado pelas leis que regulam sua vida civil. A crise de nosso tempo é moral e política, não existencial ou econômica. Como Heidegger, ele retorna ao pensamento clássico, mas, ao contrário de Heidegger, prefere reinterpretar Platão a fazê-lo com os pré-socráticos. Recorre a analistas medievais e conclui com algumas proposições que nos permitem entender a realidade contemporânea, dominantemente moldada por seus discípulos:
** Para Strauss, há sempre uma elite que governa;
** a história deve ser suprimida (Francis Fukuyama, que propôs "o fim da História", é seu discípulo) em busca da natureza intocada, a que se reportaria a filosofia platônica;
** a cidade, a polis, as instituições civis apóiam-se no engajamento dos cidadãos, fundado na convicção inabalável deles de que suas leis são legítimas. benevolentes e justas;
** a mobilização dos cidadãos, o convencimento deles, justifica a força e a persuasão, mesmo a mentira;
** os filósofos, a elite a que cabe orientar o Estado, devem preservar seus segredos, em um conjunto de valores a que a maioria não tem acesso;
** entre esses segredos está a certeza de que Deus não existe (Strauss concorda com Marx que a religião é ópio do povo, mas a considera necessária), a ciência é instrumento da paixão, a política é a dimensão real da existência;
** O relativismo, sugere ele, é mais um de tais segredos.
Strauss aposentou-se no final da década de 1960 na Universidade de Chicago e morreu em 1973.
O avanço dos straussianos nos mostra uma dimensão do poder insuspeitada: aquela que brota da especulação acadêmica
O rápido avanço dos straussianos sobre as instituições dos Estados Unidos deve-se a alguns fatores próprios do país.
Em primeiro lugar, a imensa concentração de poder, riqueza e conhecimentos em um única nação e, nesta, em um segmento relativamente pequeno.
Em segundo, a tradição conservadora, assentada em bases morais e religiosas e ameaçada sempre pela superestrutura da modernidade, desde a homossexualidade até o bebê de proveta, da Teoria de Darwin ao anúncio da Benneton.
Em terceiro, a pobreza das ciências sociais após a liquidação, pelo macartismo, na década de 1950, da bela tradição sociológica a que se deve a divisão do proletariado em grupos culturais distintos, os homens de colarinho azul, nas fábricas, e os de colarinho branco, nos escritórios.
Em quarto, o tradicional fechamento do país em si mesmo, sua rejeição do diferente, seja latino, negro ou asiático; a certeza de que a América está sempre certa, de que suas instituições são as melhores do mundo, de que sua riqueza não se assenta no valor do dólar ou em qualquer outra circunstância histórica, mas numa mística de trabalho que planta raízes na tradição calvinista.
A ciência política dominante nos EUA é straussiana. Sua formulação ocorre(u) principalmente na Escola de Altos Estudos Internacionais da Universidade Johns Hopkins
A figura mais visível do grupo de straussianos é Paul Wolfowitz. Mas há outros, com destaque para Allan Bloom, autor de The Closing of American Mind, de 1987; e Francis Fukuyama, que sucedeu a Wolfowitz no decanato em Johns Hopkins, vindo da Universidade George Mason.
Mas a importância do grupo é maior na medida em que domina espaços acadêmicos, o que lhe atribui respeitabilidade científica para impor e exportar a doutrina em sua forma mais pura. Confusa e em pedaços, não se confessando como tal, ela já chegou aqui ? e isso explica vários aspectos de nossa realidade; fica ao leitor a incumbência de localizá-los.
Só posso acrescentar, para os menos afeitos à vida universitária, que nela a luta pelo poder é intensa e insensata, mesmo quando se luta por pouco ? o que não é o caso.
Pode-se chamar de neoconservadorismo ou dar qualquer outro nome educado. O que importa é o quanto disso está em nossas escolas e o quanto nos ameaça
A semelhança entre pontos da doutrina straussiana e as versões didáticas que predominam nas ciências humanas e sociais de escolas brasileiras, particularmente nas de comunicação, é mais do que coincidência.
A mentira a serviço da ambição permite que destruam países, dizendo salvá-los. E é isso que está acontecendo.
Ao agregar aos conceitos de Frankfurt (abordados com superficialidade e fora de seu contexto) a retalhos da vulgata psicanalítica; ao rejeitar a objetividade como instrumento da ciência e da informação pública; ao sobrepor a natureza ao homem ? esse discurso é, em nosso país, uma aberração reacionária.
As restrições que faço à Teoria da Comunicação, tal como é ensinada no Brasil, têm, assim, duas vertentes: uma é sua pertinência; outra, o risco político
Objetividade, verdade e ciência são coisas de que precisamos muito, no momento.
Devemos, pelo contrário, exportar soja, pisos de cerâmica, novelas de televisão ou qualquer outra coisa rotulando todos os produtos com a alegria, o carnaval, o esporte e a tolerância que o mundo espera de nós.
Contra o exibicionismo que marca as políticas imperiais, o que temos de melhor é exatamente nosso perfil discreto, nossa falta de armas e de apetite para ameaçar os outros.
Sabemos que o bom jornalismo é aquele que interroga o mundo e, diante das certezas, levanta sua dúvida.
O medo contagiante ? conduzindo à paranóia ? pode não estar ainda muito visível, mas se espalha pelo mundo
Wolfowitz é tão preocupado com a China que mandou jogar fora 600 mil quepes das forças armadas americanas porque foram fabricados lá.
Se qualquer arma vale, desde a mentira até "artefatos nucleares estratégicos" (a tese é dele), se os Estados Unidos podem o que podem, quem nos garante que a pneumonia asiática é efetivamente a mutação ou evolução do vírus do resfriado ao transitar por animais domésticos?
Provavelmente os chineses ficaram em dúvida. Afinal, parar uma cidade como Beijing, fechar shoppings, lojas e escolas (substituindo as aulas por lições via internet) por causa de uma epidemia que matou menos de 500 pessoas numa população de um bilhão e 300 milhões; construir um hospital de mil leitos em 48 horas ? não serão formas de deixar clara a capacidade de mobilização do país?
Mais do que o perigo real, existe o virtual, isto é, tudo que se possa imaginar.
Para terem uma idéia de até onde isso pode chegar, a Folha de S.Paulo publicou, há poucos dias, uma página inteira baseada numa nota lida nos quartéis. O título e o lead, não sei se de propósito, tratavam de uma bobagem qualquer ? algo ligado à criminalidade urbana.
O principal da matéria estava nos dois últimos parágrafos: transcreviam o trecho da nota em que o comando do exército brasileiro propunha ou decidia (não estava claro) investir em tropas de selva, de caatinga, de cerrado e de guerrilha urbana, argumentando que, contra adversários infinitamente mais poderosos, a única forma de luta possível é a resistência.
Na verdade, não temos provavelmente tanto petróleo quanto o Iraque ou o Irã, mas não custa nada a uma ensandecida aliança entre caubóis e straussianos alegar que estamos destruindo a floresta amazônica para, então, a destruírem (o que talvez lhes garanta algumas décadas de prosperidade); ou misturar contrabando e terrorismo para intervir em nossas fronteiras.
A pergunta deixou de ser "por que sim?" para ser "por que não?"
É claro que todas as idéias devem ser respeitadas, mas só se pode aceitar algo se se conhecem suas conseqüências. E é bom tomar cuidado quando não se sabe a que interesses servem os interlocutores.
(*) Texto baseado em palestra proferida no V Seminário Internacional de Jornalismo da Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, 27/5/2003
(**) Jornalista, professor-titular da Universidade Federal de Santa Catarina