Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Sobre a ética olímpica

Há muito se sabe que o espírito olímpico foi substituído pelo irresistível apelo da ‘fatura do evento’. De um modo geral, qualquer competição esportiva, desde os já distanciados anos inauguradores da economia globalizada, audiência e anunciantes são os reais protagonistas ‘invisíveis’ que fazem do ‘acontecimento esportivo’ a fonte multiplicadora dos lucros. Até aí, portanto, nada há de novo, apesar de milhões de telespectadores, em razão do fuso horário, cederem suas horas de sono.


A questão que realmente causa desconforto ao observador diz respeito ao fato de, a cada Olimpíada, em função de mudanças de regra ou de aprimoramento de ordem tecnológica, novas situações se ofereçam para atletas, nas mais diversas modalidades, poderem superar as marcas de seus antecessores.


A mídia, empenhada, pelo quanto fatura, em manter (ou até multiplicar) audiência, finge não reconhecer uma certa fraude ética. Ao contrário, o que interessa é noticiar que ‘novos heróis’, por seus méritos, suplantaram o recorde de marcas anteriores. A título de simples ilustração, observe-se uma manchete do portal da UOL: ‘Por um centésimo, Phelps conquista sétima medalha de ouro’. Sim, ‘um centésimo’ permitiu que Phelps igualasse o feito olímpico de Mark Spitz nas Olimpíadas de 1972. Ok! Parabéns! Em outra prova, o ‘fenômeno Phelps’, finalmente, conseguiu a oitava medalha! Viva! A mídia vibrou!


Sucessão de ‘fraudes’


Todavia, em 1972 não havia roupas que, por seu tecido e ajustadas ao corpo, favoreciam a velocidade. Em 1972 também não havia nenhum engenheiro australiano que, por pesquisa, deduzisse que, incluindo mais duas alas na piscina, sem serem utilizadas como raias, contribuiriam para igual aceleração, sem falar no aumento de dois para três metros de profundidade na piscina olímpica – o que colabora, enormemente, para diminuir a resistência do movimento da água contra o corpo dos nadadores, afora a depilação de todo o corpo.


Então, quando a notícia dá conta de ‘um centésimo’ haver assegurado o feito de Phelps, a mesma notícia deveria recordar, para o leitor, que, à época de Spitz, novos recursos inexistiam. Contudo, esse lembrete, em nome da justiça, não interessa a quem apenas pretende gerar excitação para assegurar receitas publicitárias, casadas com índices de audiência.


Igualmente, à mídia, não convém destacar que o ginasta Diego Hypólito caiu de modo pouco elegante, por conta de haverem substituído, dois meses antes da competição, o piso. O que, pois, causa espanto é a cumplicidade das redes que transmitem a competição em não denunciarem esse tipo de ‘armadilha’, típica de ‘cérebros mafiosos’ cujo propósito único mira a multiplicação dos lucros. Em tal contexto, ‘espírito olímpico’ não passa de uma expressão anacrônica, em nome da qual não vale a perda de horas de sono. A maior parte do ‘espetáculo’ é apenas a sucessão de ‘fraudes’ que servem para interesses de anunciantes, concorrentes em audiência e glorificação das recentes inovações tecnológicas.


Viva Caymmi


Daiane dos Santos também caiu e ficou em sexto lugar. Que coisa, não é? Em nenhuma narração, houve discurso indignado. Claro! Interessa à mídia lançar a seu público fiel qualquer insinuação quanto a métodos de manipulação de resultados? Alguém, em qualquer veículo de comunicação, seria capaz de denunciar o fato de que atletas chineses e europeus, em competições de ginástica, já estavam, bem antes, treinando com as novas modificações, em detrimento dos ginastas brasileiros? Não. Quem, porventura, no ar, dissesse tal coisa, não retornaria ao microfone.


Por favor, vendam eventos… Se puderem, mintam menos! Por fim, como ilustração da nova ‘lição olímpica’, fica aquele ato de banimento da virtuosa voz da menina de sete anos que, por ser considerada ‘feia’, foi dublada pela ‘graciosa e bela menina’ sem talento vocal algum. Enfim, o canto belo e o encanto natural estão banidos pela voracidade de lucros que não reconhecem o talento natural de quem, na lógica perversa, entenda que, em algum nível, ‘puro talento’ seja incompatível com ampliação de receitas.


Atenção, telespectadores! Ainda é tempo para a ‘cair a ficha’… Em meio a tantas fraudes, mais um ser, absolutamente autêntico, nos deixa: Caymmi. Entretanto, apesar de já ausente, ainda ouço aquela voz grave e límpida entoando as notas de ‘O mar,/ quando quebra na praia/ é bonito… é bonito /…/’.


Obrigado por tudo, querido Caymmi. Você nunca foi uma fraude. Sem precisar do ‘Olimpo’, sua presença sempre foi limpa.

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Ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA (RJ)