Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A quem interessa a cobrança nas universidades públicas?

PROPOSTA POLÊMICA

Marcos Marques de Oliveira (*)

O mundo dos que se interessam pelas questões educacionais começou quente na terça-feira, 3/6. Às 9h57, a Folha Online noticiava, sob a rubrica do colunista Gilberto Dimenstein, a notícia de que o MEC, especialmente o ministro Cristovam Buarque, estava defendendo cobrança de taxa de alunos das universidades públicas. Para alívio dos defensores do ensino público gratuito, no fim da tarde o mesmo sítio da Folha de S. Paulo publicava o desmentido do ministro que, na verdade, tinha apenas esboçado o interesse de colocar em debate a proposta do ex-deputado Padre Roque (PT-PR), de cobrar dos formados nas instituições federais um adicional no Imposto de Renda, a título de criação de um fundo de recursos para as instituições públicas.

O projeto, que se posta como um mecanismo de combate ao desejo neoliberal de acabar com a gratuidade do ensino público, é, em si, uma forma de acabar com a gratuidade, já que transforma o sistema de financiamento das universidades federais numa espécie de crédito educativo para estas instituições, similar ao Fies (Fundo de Incentivo ao Ensino Superior), sistema de financiamento do ensino privado. Desta forma, o paliativo defendido pelo católico petista não é muito diferente das políticas neo-social-democratas do antigo governo. Paliativo porque não resolve o problema do financiamento e não toca num dos principais problemas da educação brasileira, que é justamente o da alocação de recursos públicos para o ensino privado.

Para além da controversa proposta de "inspiração inglesa" (parece que a "Terceira Via" do "Novo Trabalhismo" britânico continuará modelo das "esquerdas" brasileiras no governo), o jornalista Gilberto Dimenstein publicou, logo a seguir, artigo (com o título "Universidade gratuita é privilégio") no qual fundamentava seu ataque à gratuidade do ensino superior com alguns argumentos que merecem ser debatidos (o que faço a seguir), despertando-me uma pergunta que passa longe de seus comentários e que vai atravessar minhas opiniões: a quem interessa diretamente a cobrança nas universidades públicas?

Empresários choramingam

Gilberto Dimenstein, que além de articulista da Folha de S. Paulo é colaborador e presidente do Conselho Pedagógico da Revista Educação (Editora Segmento), publicação do Sindicato dos Estabelecimentos Particulares de Ensino do Estado de São Paulo (Sieeesp), começa seu ataque com o seguinte comentário: será que é justo o país gastar R$ 500 por ano com um estudante de ensino fundamental e R$ 1.500 com um estudante de universidade pública?

A meu ver, uma falsa questão. Em qualquer lugar do mundo o gasto individual com um estudante do ensino superior será maior se o cálculo levar em conta o investimento em pesquisa e extensão, e não apenas o investimento em ensino. E mesmo se restrito a este aspecto, deve-se considerar que o custo da mão-de-obra, além dos gastos estruturais, é outro diferencial. Mais do que isso, se multiplicarmos os custos per capita pelo total de alunos matriculados veremos que, em termos absolutos, o valor gasto (pelo setor público, e não apenas o federal) no ensino fundamental é maior do que no ensino superior ? ainda que os dois possam estar aquém de nossas necessidades.

Contudo, parece-me também falsa a idéia de que o fim da gratuidade nas públicas significará o término de gastos governamentais com o ensino superior. Isto porque quem conhece a estrutura deste nível de ensino sabe que muito do avanço das instituições privadas, ao contrário do que afirma Cíntia Coelho, no artigo "Paradoxo do ensino superior" (A Gazeta, do Espírito Santo, 1?/6), deve-se ao "estímulo" do crédito educativo (o Fies) e, sobretudo, às isenções tributárias concedidas às instituições ditas filantrópicas.

É justamente essa "ajudinha" estatal que fez com que o ensino superior privado se tornasse uma "mina de ouro" nos últimos anos (termo usado por Renata Cafardo na matéria "Ensino superior vira realidade na periferia", em O Estado de S. Paulo de 1?/6/03), movimentando cerca de R$ 10 bilhões para um universo de 2 milhões de alunos ? o que dá uma renda per capita de R$ 5 mil anuais por aluno, ou seja, 10 vezes mais do que no setor público (segundo os valores citados por Leonardo Attuch, na interessante entrevista "Querem matar a concorrência a pauladas", com Ronald Levinsohn, dono do centro universitário UniverCidade, publicada na revista IstoÉ, n? 300, de 28/5/03).

Ainda com todo esse estofo, a imprensa não cansa de noticiar a choraminga dos empresários educacionais sobre o problema da inadimplência, que se deve, argumentam, pela "caridade" que fazem em abrigar nos seus cursos noturnos ou saturnais os pobres alunos alijados das "elitistas" universidades públicas. Ora, o fato é que o número de brasileiros no ensino superior (cerca de 3 milhões) é ainda baixo, se comparado até mesmo ao de outros países do mesmo nível de desenvolvimento. E se, ainda assim, com este universo tão restrito o ensino superior privado sofre com problemas de caixa, não é desconexo supor que os recursos necessários para a abertura de novas vagas deverá vir dos cofres públicos. Mas, se a defesa do fim da gratuidade nas universidades públicas se baseia, como afirma Dimenstein, num "problema de financiamento", por que teremos dinheiro para financiar as privadas?

Medida "inédita"

"O que eu quero saber é por que um aluno do ensino público não consegue acesso à universidade gratuita." A pergunta da deputada Iara Bernardi (PT-SP), do núcleo de educação da bancada petista, publicada na matéria "Idéia de cobrar mensalidade em universidades é mal recebida na Câmara" (Folha Online, 3/6), ilumina nossa reflexão e coloca por terra o argumento ideológico de que a gratuidade no ensino superior público é a grande "barreira" para o acesso de alunos pobres e carentes.

E aqui encontramos um grave problema da imprensa brasileira no que diz respeito ao tratamento das questões educacionais. Os jornalistas noticiam "tudo", expõem todas as nossas mazelas, mas não as relacionam. Ora, é evidente que se a maior parte de nossos alunos não tem acesso à educação infantil, se outra grande parte repete ou evade nas séries iniciais do ensino fundamental e se boa parte do restante freqüenta um ensino público de qualidade ruim, como é que eles vão chegar ao ensino superior, tendo ainda que concorrer com os filhos das elites que estudam em ótimos colégios particulares ? parte deles que fazem supostos trabalhos "filantrópicos", ou seja, com direito aos benefícios fiscais já citados?

Num julgamento preliminar poderíamos dizer que é apenas uma questão de "despreparo", de falta de conhecimento ou, talvez, ingenuidade. Mas a julgar pelas fontes costumeiras utilizadas por nossos repórteres ? geralmente os portadores do interesse privado ?, tenho a sensação de que paira sobre a maioria da imprensa o limite de ser também, mais do que um "aparelho privado de hegemonia", um organismo empresarial cujos interesses estão cada vez mais imbricados com seus financiadores.

Mas engana-se quem pensa que a sanha privatista restringe-se ao ensino superior. Na matéria "Da escola pública para a particular de graça" (O Globo, 1?/6), o jornalista Rubem Berta apresenta a "inédita" medida de César Maia, prefeito do Rio de Janeiro, que bolou um interessante projeto que oferece vagas, de ensino médio, em colégios particulares a alunos que completaram o ensino fundamental na rede pública municipal, em troca, é claro, de isenção fiscal.

Jornalistas-anunciantes

Nesse ínterim, um outro velho "ineditismo" foi noticiado também pelo Estado de S. Paulo (30/5) quando, a partir da manchete "Escolas privadas vão participar de plano para o setor público", ficamos sabendo que, por convite do secretário de Educação, Gabriel Chalita, o Sieeesp (a mesma entidade que patrocina a revista da qual o jornalista Gilberto Dimenstein é colaborador) vai participar com sugestões do novo Plano Estadual de Educação ? o que fez o presidente da entidade patronal afirmar que "essa é a primeira vez que a iniciativa privada é chamada para colaborar na confecção de uma política pública".

Ora, quem conhece um pouquinho da história do sistema educacional brasileiro sabe que a troca de vagas nas particulares por benefícios fiscais ou bolsas de estudo e a elaboração de políticas públicas na área educacional pela iniciativa privada são práticas antigas, que colaboraram em muito para o retardamento do investimento na educação pública.

Durante a última ditadura militar, por exemplo, o ensino privado conseguiu frear o avanço do ensino público em todos os níveis de ensino devido justamente ao escoamento de recursos públicos para os bolsos privados, com medidas muito parecidas como a criada pela prefeitura carioca, assim como pelo controle dos conselhos e secretarias de educação, com as quais, em alguns casos, obtinham poder de veto sobre a construção de escolas públicas em locais que poderiam ameaçar seus interesses.

Na semana passada, o jornalista Alberto Dines nos alertava sobre o perigo dos "jornalistas-anunciantes". Foi no mesmo sentido de resguardar o exercício profissional do jornalismo que fiz este artigo, tentando mostrar que, no que se refere ao tratamento da área educacional, temos, cada vez mais, o instituto dos "jornais-agências", que vendem "pruridos ideológicos" e "conveniências corporativas" (obrigado pelos termos, Sr. Dimenstein) dos interesses privados na educação como se fossem informações substantivas e neutras para o debate sobre o futuro do ensino no Brasil.

Nova clientela

Não poderia ser diferente num país em que a defesa do caráter público da atividade educacional, pressuposto respaldado por inúmeros representantes do ideário liberal-burguês (de Adam Smith a Robert Dahl), é visto, por alguns, como um mero lobby (sobre o assunto, conferir o artigo "Pressões", de Antônio Góis, publicado em 29/5, no Portal Aprendiz).

Lobby, bem feito, só pode fazer quem tem "privilégios", principalmente o privilégio de fazer parte do oligopólio midiático que há no Brasil.

E, finalmente, a quem interessa diretamente o fim da gratuidade na universidade pública? Bem, o que se pode dizer é que, depois de semanas de brigas intestinais entre representantes dos centros universitários e universidades privadas, nada melhor que unir os interesses da iniciativa particular educacional em torno de um tema que pode colocar em risco o patrimônio das instituições federais de ensino.

Com o fim destas, reinaria a paz no setor privado, que assim ficaria livre para acessar a uma nova clientela e uma boa quantidade de recursos.

(*) Jornalista, mestre em Ciência Política, doutorando em Educação Brasileira e pesquisador do Coletivo de Estudos de Política Educacional do Programa de Pós-graduação em Educação da UFF

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