ARAÚJO NETTO
(1929-2003)
Armando Nogueira
“Uma luminosa aventura”, copyright O Estado de S. Paulo,
8/06/03
“Araújo Neto é mais um aliado da minha vida que se
vai. Um dos mais impiedosos desígnios da morte é nos
privar de um amigo. Araújo é mais uma testemunha que
já não posso invocar. Mas, se Araújo não
poderá mais falar de mim, nem por mim, resta-me, por consolo,
recordar tantos anos em que compartíamos a dupla paixão
pelo jornalismo e pelo futebol. Bons e saudosos anos.
Ao lado de Araújo, vivi minha primeira aventura livresca.
Escrevemos Drama e Glória dos Bicampeões, sobre o
mundial de 60, no Chile. Rubem Braga e Fernando Sabino tinham criado
a Editora do Autor e queriam que contássemos a história
da Copa, a toque de caixa. O livro tinha que estar nas livrarias,
o mais tardar, uma semana depois da conquista brasileira.
Em matéria de futebol, os dois escritores-editores não
eram lá muito católicos. Não conheciam um palmo
da velha estrada que Araújo e eu, há tanto tempo,
sempre soubemos cheia de sortilégios. Os dois mal ouviram
as nossas ponderações. Queriam o livro – e ponto final.
Um sabiá teria cantado, ao pé do ouvido deles, que
o Brasil seria campeão. E, agora: quem éramos nós
pra ousar contrariar dois papas da literatura e do jornalismo no
Brasil? Rubem e Fernando eram por nós dois tão idolatrados
quanto os próprios craques da seleção.
Dividimos a missão, irmãmente: cada um escreveria
metade do livro. Depois de cada treino, finda cada partida, nos
trancávamos no hotel, em Viña del Mar e metíamos
mãos à obra, noite a dentro, madrugada a fora. Dormíamos
em módicas prestações, fosse pela angústia
de tempo, fosse pela algazarra, dentro e fora do hotel. Viña
del Mar estava superpovoada de brasileiros a cantar e a batucar
a ruidosa melopéia de cada triunfo brasileiro.
Os dois últimos capítulos, que correspondiam justamente
à semifinal e à final, não deu pra escrever
no hotel. O saguão, os corredores, os quartos, a própria
praça, em frente, tudo, enfim, era um manicômio só.
Por sorte, havia em Santiago um santo amigo. O poeta Thiago de
Mello, então, adido cultural à embaixada do Brasil,
nos transportou, com armas e bagagens, pra casa do poeta e seu amigo
Pablo Neruda.
Foi no afetuoso silêncio da lendária casa da Isla
Negra, em Santiago, que concluímos nossa missão. O
cenário poético em que o livro viria à luz,
de todo, pode não ter contribuído pra enriquecer a
obra, mas, certamente, encheu de orgulho os dois autores, um dos
quais, neste momento, já livre dos infortúnios do
corpo, deve estar contando, numa roda de bem-aventurados, como foi
luminosa aquela aventura de escrever, a quatro mãos, o livro
Drama e Glória dos Bicampeões.”
“A Paixão Pelo Futebol”, copyright O Globo, 4/06/03
“Araújo Netto era um jornalista completo. Mas é possível
que em nenhuma outra especialidade o seu texto tenha brilhado tanto
quanto no esporte. Os mais jovens não sabem disso: há
muito anos as obrigações de correspondente o levaram
a fazer do esporte mais uma atividade entre muitas outras. Seus
textos – ou o modo como combinava neles o tino do repórter,
o estilo do cronista e o equilíbrio do editor – são
exemplares.
Ele era um apaixonado. Não pelo clube, mas pelo futebol.
Se sofreu tanto, como repórter, ao cobrir a final da Copa
do Mundo de 1950, é porque via ali não a derrota do
Brasil, mas do futebol. Ou de craques que ele admirava por tornarem,
com arte, sua vida melhor.
Recomenda-se, ou melhor, cita-se como obrigatórios dois
dos livros que escreveu: ?Drama e glória dos bicampeões?,
com Armando Nogueira, e ?Brasil futebol-rei?, este uma obra clássica
sobre como entender o jogo por dentro e por trás, do ponto
de vista humano, com uma sabedoria e qualidade literária
que os cientistas sociais que escrevem sobre o tema não conseguem
igualar.
Araújo esteve em todas as Copas, de 1962 a 1990. É
de lamentar que seu último texto sobre Copa do Mundo tenha
sido sobre a morte de seu amigo João Saldanha, logo após
a final de 1990. Desta vez, um brilho triste, mas ainda assim exemplar.”