PAREM AS MÁQUINAS!
Luciano Martins Costa (*)
A Folha de S.Paulo decretou no domingo (8/6/03), e vem tentando nos convencer ao longo das semanas seguintes: o ano de 2003 está perdido para o Brasil, do ponto de vista da retomada do crescimento econômico. No mesmo período, o jornal definiria, ainda, que no Brasil também "não há mais uma grande força organizada de esquerda aspirando ao poder central", já que, segundo a interpretação do jornal, o PT é um partido em migração para a direita.
A análise é tão precisa que chega a definir em que grau do espectro ideológico se encontra o partido do governo. Além disso, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva está definitivamente declarado traidor da causa de todas as esquerdas. Essas afirmações vêm numa seqüência de editoriais, artigos e numa reportagem que deveria se transformar em material didático, de consulta obrigatória em todos os cursos de jornalismo do país, como exemplo de editorialização do noticiário: aquele texto creditado a Rafael Cariello, publicado no domingo (8/6), no qual ficamos sabendo que alguns dos "mais importantes intelectuais simpatizantes do PT" haviam decretado publicamente o fim de suas esperanças, na quinta-feira anterior, durante debate na USP.
O processo de satanização do presidente da República começou com uma campanha aberta em favor da redução da taxa de juros do Copom, passou pela ampliação, com amplas repercussões, das recentes querelas do vice-presidente José Alencar, e se cristaliza numa série de artigos do colunista Clóvis Rossi, o mais lustroso porta-voz da casa.
Não é nada, não é nada, trata-se de um velho truque da imprensa nacional. Primeiro, "recomenda-se" a adoção de medidas que, de certo modo, conduzem a política econômica na direção que melhor atende aos interesses do grupo que o jornal representa. Depois, passa-se à formação de uma "base teórica" juntada com a contribuição de velhos totens da universidade, manifestada em "amplos debates" para os quais o repórter, orientado com um cuidado que infelizmente falta em todas as outras pautas, se prepara como quem vai cobrir uma Copa do Mundo.
Detalhe: "debate" sem contraditório, uma vez que todos os personagens citados são, declaradamente, intelectuais descontentes com a condução da política econômica pelo governo. Outro detalhe: na reportagem, de página inteira, apenas os porta-vozes do "fim da esperança" têm direito à palavra. Aqueles que ainda não se frustraram completamente são apenas citados como coadjuvantes, têm seu espaço reduzido, um holofote menos poderoso e, certamente, menos chance de figurar em futuros artigos na seção "Tendências/Debates", da nobilíssima página 3 da Folha.
"Esmagadora maioria"
Para consolidar a presença em cena dos novos personagens ? que devem ser qualificados de "simpatizantes dissidentes" ? e passam a se alinhar nas tropas de reserva para futuras repercussões de temas variados, a coluna de Clóvis Rossi dá de barato que a opinião pública já absorveu que "é difícil encontrar argumentos racionais para rebater a desesperança exposta pelo filósofo Paulo Arantes" ("A lógica da desesperança", 10/6/03, pág. 2). E por aí vai, cristalizando-se na consciência do leitor a idéia de que o presidente da República o traiu.
A tentativa de encurralar o presidente prosseguiu até a segunda-feira (9/6), com a manjadíssima tática de mandar um repórter descolar respostas de perguntas dirigidas a personagens bem escolhidos, depois um editorial redirecionando as interpretações e o colunista fechando com um olhar definitivo. Antes, já havia ficado claro: a Folha apostava numa redução de um ponto percentual na taxa de juros. Segundo Rossi ("O bode e os juros", sábado, 14/6), reduzir apenas 0,5 ponto seria deixar meio bode na sala. Ah, claro, o debate "democrático" prosseguia na página 3 do mesmo sábado, com a diferença de que o artigo do economista Ricardo Carneiro, a favor do corte imediato dos juros, tinha 40% mais espaço que o do empresário Sérgio Haberfeld, contra o corte imediato.
No domingo (15/6), dia de muitos leitores, Rossi já havia "homenageado" nossa inteligência ao expor em sua coluna a opinião de um leitor chamado Manoel Jimenez ? evidentemente, corroborando seus textos dos últimos dias ? afirmando que "a esmagadora maioria" dos seus leitores "escreve para concordar com críticas à manutenção do modelo econômico…". E por aí vai.
Mau jornalismo
Não é de hoje essa vocação de certa esquerda para agir constante e deliberadamente contra seus próprios interesses de preservação. Já aconteceu no Chile, foi assim durante boa parte do governo João Goulart no Brasil e, segundo relata um amigo, fundador do Movimento Tupac-Amaru, a mesma prática empurrou o Uruguai para um dos mais tenebrosos períodos de sua história.
Não é de hoje que intelectuais tentam manipular o sr. Luiz Inácio Lula da Silva e também não é fenômeno raro a editorialização cuidadosa de "reportagens" feitas sob encomenda para dar credibilidade a versões nascidas na redação. É famoso o editor que encomendava (dizem que a prática persiste, com outros personagens) a seus repórteres: "Me arrume aí alguém que diga isso". Sou testemunha dessa prática.
Há 29 anos, fui enviado a São Bernardo do Campo para entrevistar o presidente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, Paulo Vidal. Naquela semana, ele havia se licenciado e estava sentado em seu lugar o jovem Luiz Inácio da Silva, a quem chamavam Lula. A pauta, um estudo elaborado pela direção do mais vetusto partido de esquerda do país. Eu, militante-repórter, tinha a missão de obter a adesão do sindicalista àquelas idéias, por meio de declarações de princípios que depois seriam "repercutidas" junto a intelectuais, artistas e outras figuras da então cautelosa oposição ao regime militar.
Lula disse o que pensava, e o que ele pensava continua dizendo até hoje, à revelia do que possam imaginar os filósofos da USP: autonomia sindical, liberdade de expressão, uma política econômica que reduzisse a pobreza, e outras obviedades. Não consegui uma declaração sua a favor do socialismo, como estava pautado, nem qualquer palavra que se encaixasse nos propósitos da publicação, de encontrar no nascente sindicalismo do ABC um marionete que se movesse conforme as decisões do comitê.
Nas duas décadas que se passaram, vimos desfilar por trás de seus ombros, feitos papagaios de pirata, as mais reluzentes cabeças das mais celebradas casas do saber nacional, e ele seguiu cumprindo sua pauta: obteve a autonomia sindical, inspirou e levantou o maior partido de esquerda da América Latina, recriou as centrais sindicais, proporcionando até mesmo aos seus adversários políticos o direito à organização em centrais livres da tutela do Estado e, finalmente, amadureceu seu projeto de poder. Chegou à presidência da República. Com ele, subiram a rampa do Palácio do Planalto milhões de brasileiros esperançosos de uma vida melhor. Subiram também com ele os devaneios de alguns intelectuais "simpatizantes".
Lula tem um projeto para o exercício do poder. A grande massa que o elegeu segue confiando nele, como revelam as pesquisas, apesar da gravíssima situação econômica. O cenário que se seguiu à sua posse é a reversão do apocalipse que se anunciava no final de 2002. Suas decisões são acompanhadas em detalhes nos principais centros de decisão de todo o mundo, os dirigentes do Programa de Desenvolvimento Humano da ONU encomendam estudos sobre a política do governo.
Quem acompanha a história deste país nos últimos 30 anos tem noção da montanha de entulho que será preciso remover para encontrarmos uma via de desenvolvimento que não seja apenas mais uma bolha. Ninguém, em condições de sanidade e honestidade, esperaria o paraíso em seis meses. A política econômica de um país não cabe numa edição de jornal.
A economia, como todos sabem, não é uma ciência exata. Muito menos a filosofia.A elevação de economistas à condição de oráculos, promovida nos anos de inflação por jornalistas embasbacados, ajudou muitos espertalhões a ganhar muito dinheiro à custa dos brasileiros, com aquelas célebres previsões auto-realizáveis. A elevação de acadêmicos à condição de deuses é demonstração de provincianismo. Sabemos todos que os acadêmicos não conseguiram nem mesmo nos oferecer um modelo satisfatório de universidade. Afirmar que a esperança acabou porque o presidente não leu o sr. Arantes não é apenas pretensão e arrogância intelectual. É mau jornalismo.
(*) Jornalista