Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O Brasil e o desafio cultural – final

MISÉRIA E MUDANÇA

Ivo Lucchesi (*)

Como desdobramento definitivo, resultante dos dois artigos anteriores [remissões abaixo], referentes ao verdadeiro desafio ainda a ser enfrentado pela sociedade brasileira, resta agora pensar-se o que ainda se apresenta como dívida para o ingresso num modelo societário democrático, com o real significado emancipatório. Para tanto, o foco crítico que, até então, foi centrado em aspectos gerais e, em seguida, no âmbito educacional (respectivamente, os artigos I e II), agora se desloca para as esferas jurídica e política.

É sabido que, na passagem de um regime ditatorial para um regime democrático, se imponham redefinições tanto estruturais quanto funcionais, sob pena de o novo modelo abrigar as deformações geradas pelo anterior, comprometendo a eficiência e a autonomia exigidas pela diferença. Aí residiu o erro brasileiro, o que acarretou sérias implicações societárias e culturais com as quais atualmente nos defrontamos. Nos três setores estratégicos, por açodamento e/ou acomodação, inviabilizou-se o reencontro da democracia com a sociedade brasileira, em bases mais sólidas e justas. A conseqüência desse descompasso ditou (e vem ditando) o agigantamento de infortúnios e equívocos.

O amadurecimento para a fixação de uma experiência democrática e efetivamente transformadora depende da capacidade de o ser brasileiro perceber em profundidade o que perdeu, ao permitir a prevalência do "jogo das concessões", em troca de "sensações". Sem a consciência clara e desarmada a respeito da história como "construção", a sociedade brasileira corre o risco de perpetuar um esboço de democracia. Mesmo ciente do quanto de discordância a idéia possa produzir, não receio afirmar que, majoritariamente, a sociedade brasileira ainda desconhece o sentido e a prática reais da democracia, bem como ignora o significado e a lógica funcional que regulam o modelo capitalista. Deram-se passos, passadas, por vezes, arrancadas, fazendo pairar uma nuvem com a qual o olhar desatento tende a embaralhamentos, em meio a sustos gerados por ocorrências do cotidiano. Assim é que, em escrito anterior, se tratou do sistema educacional. Ora, restam observações relativas aos campos jurídico e político.

Aparelho jurídico e democracia

Não bastasse, a história brasileira, desde as raízes coloniais, ser perpassada por uma ordem jurídica instituída pela cumplicidade com o fomento de uma cultura dos benefícios e dos privilégios, ainda o quadro se viu afetado, em decorrência de não se promoverem ajustes legais e funcionais, quando da transformação do regime autoritário em Estado de Direito. Em que efetivamente a "Nova República", no âmbito judiciário, negligenciou? É sabido que, num regime ditatorial, justiça e polícia assumem prioritariamente a função de referendar e executar decisões ou operações engendrados pelo próprio regime, tornando secundário tudo que se refira a questões individuais ou setoriais. Em tal cenário, a justiça e os aparelhos repressores acabam, aos olhos da população, como instâncias extensoras e tentaculares do Estado, cujo modelo parece consolidar o comprometimento com a ordem dos privilégios. Nesse formato, os quadros funcionais do Estado incorporam os ditames da lógica sistêmica. Era inevitável que, num cenário de redemocratização, se processasse mudança tanto de imagem quanto de funcionamento.

Outro ponto diz respeito a ritmo. O aparelho judiciário ingressou na regra democrática em total descompasso. É uma questão de lógica. Na democracia, em inexistindo uma legislação adequada, tende a haver multiplicação de demandas judiciais, por ser próprio do Estado de Direito qualquer cidadão (ou grupo) recorrer judicialmente, quando se imagina contrariado (ou prejudicado) em seus interesses, tanto pessoais quanto corporativos. Em regimes autoritários, dá-se efeito oposto: demanda reprimida. Portanto, ao crescimento de processos, tem de corresponder a aceleração do ritmo, sob pena de fixar-se a imagem (e real) da inoperância, da morosidade e, por fim, da impunidade. Por que, no regime democrático, intensificou-se o sentimento de impunidade senão pelo fato de, à sucessão de denúncias, não se seguir, no devido tempo, a consumação judicial?

Ao longo das últimas décadas, o sistema jurídico, na contramão das necessidades ditadas pela democracia, mantém-se engessado num enredamento que parece insolúvel. Acúmulo de remendos, emendas, artigos, pareceres, deliberações circunstanciais, liminares e jurisprudências traduzem o emaranhado incompreensível à vivência cotidiana do cidadão comum. Para esse, a justiça continua parecendo um "corpo estranho", a serviço dos interesses dos poderosos, em meio a artimanhas e armadilhas lingüísticas e/ou tecnicistas. Subordinado a esse imperativo, mesmo o indivíduo letrado e culturalmente sofisticado se sente indefeso e refém de alguém que profissionalmente o conduza, passo a passo, no processo de "alfabetização jurídica". Não há, pois, democracia auto-sustentável, sem a erradicação de deformações cristalizadas em regime de exceção. Trata-se de um princípio elementar. A ação crescente do Ministério Público, algo louvável de um passado recente e, felizmente, até aqui mantido, chega com décadas de atraso, já encontrando um quadro de corrupção de caráter sistêmico. Por mais empenho que se tenha agora, o resultado é frágil para a dissipação do conjunto de redes criminosas.

Olhar retrospectivo e olhar projetivo

Compreender um processo histórico-político implica assumir uma atitude de distanciamento tanto temporal quanto emocional, de modo a reduzir, o máximo possível, efeitos contaminadores e deturpadores. Esta é condição essencial a todo e qualquer projeto de redirecionamento de uma realidade societária presente e, de modo a permitir o vislumbre de um futuro viável e liberto de frustrações.

É sabido que o ser brasileiro não é disciplinadamente educado a olhar o passado. Há, na cultura tropical, forte tendência em associar o passado histórico a postura saudosista e melancólica, em favor de visões esperançosas (e, por vezes, delirantes). Mais ainda o olhar retrospectivo em favor da esperança parece recusado pelo ser brasileiro até como afirmação de identidade cultural. Como se tal estado de ser evitasse confundir-se com traços presentes na tradição cultural lusitana, como saudosismo e melancolia apoiados numa vocação messiânica. Para a compreensão mais ampla dessa questão, vale a rica reflexão do renomado ensaísta português, Eduardo Lourenço, em dois densos livros: Labirinto da saudade (Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1982) e Mitologia da saudade (Companhia das Letras, 1999). Merecem atenção especial os ensaios, no primeiro, "Psicanálise mítica do destino português" e, no segundo, "Melancolia e saudade".

Há, no entanto, algo de diferente para além da frágil lógica binária a oscilar entre o saudosismo e a esperança: a vertente crítica que, como tal, não abdica da autocrítica. É justo esse olhar para dentro e, em seguida, para trás que equaliza o foco sobre o presente e o futuro. O imobilismo sim pode esconder-se na atitude defensiva (ou disfarçadamente incômoda) quanto ao fato de, porque não fizemos tal coisa no momento certo, não haveremos mais de realizá-la. Pois a razão histórica ? que construiu a democracia em sociedades menos injustas ? afirma exatamente o oposto: por não termos feito, é indispensável que o façamos. Não se conquista autonomia histórica, política e, menos ainda, cultural, acumulando lacunas e práticas conciliatórias como disfarce de quem não assume enfrentamentos. A respeito dessa característica dominante na trajetória brasileira, cabem algumas observações complementares.

A República e os militares

Um problema é detectável na cultura política tropical a envolver tanto a República quanto a democracia. Em relação a ambas, parece haver-se fixado um vínculo de caráter "patrimonialista". Durante décadas, a República foi tutelada pelo severo severo controle das hostes militares. Por haver surgido de um levante (ou de uma "quartelada"), os militares sempre se julgaram detentores (e, por vezes, condutores) do que haviam feito "nascer" (embora saibamos todos que o desejo ? ou intimação ? provinha da coroa britânica). As sucessivas turbulências, precursoras do golpe de 64, não escondiam o propósito de os militares tomarem para si a direção do Estado. Afinal, um dia (ou numa noite), haviam substituído o brasão imperial pelas insígnias das fardas. Em muito, essa apropriação ideológica retardou e até turvou o conceito de regime civil sólido. Por outro lado, frise-se que inexiste nesse comentário qualquer intenção passível de disfarçado saudosimo monarquista. O percurso brasileiro provém exatamente da dupla experiência dolorosa.

Vale assinalar que a formação militar mais recente dá sinais de reversibilidade, no tocante à função a ser desempenhada, o que não significa ignorar a existência de focos sempre disponíveis para estratégias capazes de andar na contramão da democracia. A prudência não pode ser descartada, principalmente ao levar-se em conta a crescente onda de militarização no mundo, seja em nome de situações reais de conflitos, seja em nome de fantasmagorias estratégicas, direcionadas a planos de dominação com propósitos hegemônicos.

Política, mídia e democracia performática

Não menos problemática é a travessia acidentada da democracia. Para esta, a autonomia ficou, pelo menos, repartida entre classe política e redutos midiáticos, com destaque particular para os setores jornalísticos. Diga-se de passagem que, no caso, se culpa há, não é dos jornalistas. O fato é ainda mais reconhecível, ao observarmos o curso da "Nova República". Não é infundada a desconfiança de que o país é gerido por economistas e jornalistas, com as devidas diferenças a separá-los. Enquanto a "razão econômica" formula planos e manobras para equilibrar o que estruturalmente realimenta o desequilíbrio, a "vertente midiática" pauta a vida política, exibindo temas, figuras públicas e escândalos. Tal "presença" deixa a ilusão de a sociedade brasileira ser extremamente politizada, quando a verdade histórica e cultural revela justamente o contrário.

O espaço dedicado pelas principais publicações jornalísticas (inclua-se a mídia eletrônica) à tematização da política (não raro sob a forma de matéria de capa em revistas, manchetes em jornais ou chamadas em telejornais) finda por formatar, em grande parte, a atuação de parlamentares e governantes. É claro que se trata de uma prática extensiva ao modelo ocidental. Todavia, na realidade brasileira, há em quantidade excessiva e com abordagens superificiais, além de verificar-se progressivamente um fenômeno particular. Diariamente, senadores, deputados e vereadores ocupam as tribunas, remetendo a oratória a matérias publicadas lá, exibidas acolá, ora como legitimação argumentativa, ora como exercício de autodefesa. Em segundo plano, ficam as verdadeiras pautas para as quais foram eleitos. O saldo não passa de incremento na "cultura da fofoca". O círculo que se estabelece entre mídia e política tende a enfraquecer a qualidade do próprio debate político, em favor de um "disse-me-disse" cuja conseqüência se materializa na consolidação da mesmice. A democracia, quando reduzida a esse formato, é quem perde, pois a repercussão tanto das matérias quanto das atividades parlamentares também tematiza e restringe o teor das conversas nos mais diversificados redutos societários. Resultado final: proliferação de uma "democracia performática", de perfil midiático, emocional e descartável. Enfim, a mídia, na ânsia de coberturas diárias, regula a atividade política. Esta, por sua vez, alicerça sua prática com base numa "cultura midiática".

O sistema político democrático

Não é necessário recorrer-se a teóricos do pensamento político ocidental no qual se perfilam, entre outros, Karl Marx, Max Weber, Hannah Arendt, Jurgen Habermas, Karl Popper, Elias Canetti, Norberto Bobbio, para sentenciar-se que a eficácia da democracia passa obrigatoriamente pela clareza na fixação de critérios para o exercício da política institucional e na afirmação da autoridade. Uma simples leitura, mesmo superficial, da experiência brasileira dá conta da ausência de ambos os requisitos. A imaturidade tropical deturpou os fundamentos basilares. A rigor, o primeiro corte profundo, marco de uma desventura política, está inscrito no movimento das "Diretas-já", ocasião na qual, por 21 votos, o sentimento majoritário da nação foi abortado. Nascia a "Nova República" sob o estigma da "morte", cuja concretude emblemática se viu traduzida na morte do que seria o primeiro presidente civil, após o regime militar.

O retorno do país à democracia investiu na retórica demagógica. Para afugentar o espantalho do autoritarismo, eliminou o princípio da autoridade, o que de imediato atingiu a escola (conhecimento = prazer), vínculos afetivos (amizade colorida). Enfim, os "ventos da abertura" foram soprando na direção de uma "onda" no estilo new hippie. A partir daí, o restante veio em cascata. A fantasia do "tudo está liberado" fez desandar o que a realidade depois devolveu em pesadelo. Banalizou-se a representação política. Os critérios e a fiscalização para ingresso em partidos são pífios. O elenco de candidaturas não obedece a nenhum princípio lógico-funcional, menos ainda ético. Abriram-se as comportas para gaiatices e aventureiros de plantão, cuja legitimidade passa a existir, a partir do momento que eleitores lhes dão respaldo nas urnas. Ou seja, nesse modelito, democracia significa quantificação dominante e qualificação ausente.

Pleitear uma vaga de senador, sem sequer, em algum momento na vida ter sido humilde vereador, constitui-se, na democracia brasileira, um hábito que não causa mais nenhum embaraço. Igualmente normal passa a ser a formação de castas políticas de origem familiar, com pleno endosso da massa de eleitores. Sinal de grave retrocesso e de acriticidade. É uma espécie de revitalização das "capitanias hereditárias" e do "coronelismo", fenômeno típico de uma população dependente que outrora se restringia a comunidades rurais e hoje se multiplica em escala urbana. O mesmo se estende a representações religiosas, esportivas e outros mais.

No auge de uma "cultura infantilizada", entre outros desvirtuamentos, a "democracia performática" deu opção de voto a adolescente de 16 anos. Seu voto tem idêntico peso ao de qualquer outro cidadão. Elegem-se candidatos a cargos majoritários, sem nenhuma informação prévia quanto às composições de ministérios e secretarias. É sempre um voto no "escuro", à espera de uma traição. Concedeu-se livre arbítrio para municípios e estados regularem e legislarem sobre seus próprios vencimentos, o que produz distorções aberratórias. Há vereadores com salários acima dos proventos de ministros e presidente. E outras tantas deformações que encontram origem no mesmo fundamento: a falta de critérios, a ausência de controle e inexistência de juízo crítico.

Democracia e mito

Os mapeamentos formulados no conjunto desses três artigos tentaram configurar que, embora a sociedade brasileira tenha sido contemplada com algumas conquistas, a democracia brasileira é mais uma construção mítica que uma experiência cultural, refletida na prática societária. Vivemos, pois, a democracia da discursividade e, com ela, tendemos a negligenciar a observância de processos menos visíveis, porém mais atuantes.

Parte expressiva da sociedade parece haver-se inebriado com a "reconquista" da "liberdade de expressão", sem atentar para o que pudesse estar sucedendo com a "expressão da liberdade". Como se sabe, o mito sempre abriga uma estratégia de traição, seduzindo o devoto com o que é visível e com o que é promessa. Assim atua a força do mito, a fim de tornar oculta a fragilidade que a sustenta. O mito sempre aposta no "esquecimento". Para tanto, precisa da cumplicidade do "tempo deslocado", seja na forma de uma memória passiva, seja na moldura de uma projeção utópica. O que o mito não quer é o olhar que criticamente revisita o passado, nem o olhar que questiona um "futuro em festa". Talvez, por isso, o corpo societário brasileiro se tenha rendido à sedução do imaginário, em detrimento de uma atitude afirmativa e corajosa que seria conduzida pelo vigor da imaginação e da inventividade.

"Os cidadãos civilizados não são produto do acaso, mas de um processo educativo", afirma Karl Popper (O mito do contexto: em defesa da ciência e da racionalidade ? Edições 70, 1996). Em sociedade na qual o processo educativo (não apenas o sistema educacional) é debilitado, assim também se torna o perfil da civilidade. A idéia de "festa da democracia" (jargão freqüente da mídia, em época de eleição) é essencialmente uma formulação do ideário mítico norte-americano que, entre nós, foi assimilado. Em outras culturas, democracia é um valor de extremada seriedade e de não menor vigilância, sempre com o intuito de conter a expansão emocional com a qual um eleitor se transfigura em "torcedor".

A democracia perde a dimensão mítica quando à prática democrática não se agrega uma percepção do processo histórico. É, portanto, essa direção que o corpo societário brasileiro se deveria esforçar por cumprir. Jamais haverá possibilidade de adesão a um projeto transformador, sem o envolvimento profundo dos seres com o conhecimento tanto da história societária quanto de sua história pessoal.

Enfim, a série dos três artigos, centrada no tema-título, procurou fornecer um tímido quadro conjuntural, com a intenção de tornar a prática democrática uma vivência profunda, de modo a estimular a perseguição de princípios com os quais um corpo societário possa firmar um pacto ético, à altura de um futuro compatível com os padrões culturais, capazes de afirmar a identidade e o sentido de nação. Trazer à tona as "feridas" é um modo de dar o passo, em nome do respeito à cidadania. Sem o devido princípio de realidade, a consciência facilmente se deixa entregue à fantasia, contraponto do fantasma, abdicando do investimento no conhecimento e na imaginação.

(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV/RJ.

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