Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Os carrascos “voluntários” da mídia

DEMISSÕES NAS REDAÇÕES

Marcos Marques de Oliveira (*)

A edição passada do Observatório da Imprensa na TV (terça, 17/6) foi brilhante ao abordar a crise da mídia brasileira. De todas as contribuições, a que mais me sensibilizou foi a do presidente do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, principalmente pela denúncia da substituição de antigos colegas de profissão por essa nova categoria “esdrúxula” (palavra do sindicalista) que tomou conta da agenda nacional desde fins dos anos 1990: o “voluntário”.

No intuito de contribuir para o debate, teço a seguir breve análise sobre o significado político do chamado trabalho “voluntário” e sua categoria conexa, o “terceiro setor”, termos que compõem o ideário neoliberal da “Terceira Via”, propagado com toda força pela mídia brasileira. Ideário este que, pela falta de uma leitura apurada, vem produzindo efeitos nefastos no cotidiano de milhares de brasileiros ? a começar, como visto no caso acima, no destino profissional de uma categoria que deveria, em tese, ter como princípio básico a crítica substantiva das ideologias políticas.

Base teórica

A base teórica-epistemológica deste projeto político está na obra do sociólogo inglês Anthony Giddens, que, a partir das lições dos clássicos das ciências sociais, rejeita a visão linear do progresso histórico, presente no marxismo, e tenta captar a relação dialética entre solidariedade social (Durkheim) e ação humana (Weber). Sem negar as diferenças classistas produzidas pelo sistema capitalista, Giddens afirma que a globalização amplia as diferenças sociais por “novos processos de exclusão”, com a formação de uma classe cosmopolita global. Assim, o aumento da “mobilidade do capital” frente ao trabalho fez com que o Estado perdesse funcionalidade e os posicionamentos políticos (esquerda e direita, por exemplo) se tornassem desvinculados das diferenças de classe.

Em conseqüência, Giddens se diz descrente de uma ação política internacional apoiada nas classes dominadas, já que as forças básicas da economia não resultam de atividades de uma classe dirigente capitalista específica, pois “ninguém controla o mercado”. O fato de vivermos numa “forma mais pura” de capitalismo não significa que exista uma dialética da história condutora de uma transição para algum tipo de socialismo mundial. E mesmo que houvesse algum processo evolutivo, “o socialismo”, afirma o autor inglês, “está morto como modelo de organização econômica capaz” de superar as limitações do capitalismo.

O que é possível? A promoção de um arranjo político que consiga desenvolver uma sociedade global cosmopolita, baseada em princípios ecologicamente aceitáveis, na qual se desenvolverá uma geração de riquezas com “controle” das desigualdades ? uma política, portanto, de manutenção do “espírito ético do capitalismo”.

Nesta concepção, assume-se que o mercado gera desigualdades, mas, por não haver um determinismo, o próprio capitalismo tem condições de amenizá-las. Como? Pela renovação da relação Estado/sociedade civil.

Estado e sociedade civil

Nessa perspectiva, a recuperação da legitimidade do poder estatal depende de sua capacidade de descentralização, transparência e abertura. Se possível, aprender com a prática empresarial, instituindo os seguintes mecanismos: controle de metas, auditorias, estruturas flexíveis e mais participação. O Estado, porém, deve ser “melhor” que as empresas e, para isso, deve articular o global e o local, assim como os interesses divergentes internos a uma sociedade. Para tanto se torna premente a promoção de uma sociedade civil mais ativa, com o objetivo precípuo de aumentar a solidariedade social e amenizar as diferenças econômicas.

Esta parceria entre governo e sociedade civil, a base de renovação do chamado espírito comunitarista, tem como agente o chamado “terceiro setor”, formado pelas associações “voluntárias” que se caracterizam pela flexibilidade de suas ações e pela capacidade de autogoverno ? fontes, portanto, de um novo sentimento de pertencimento e de valores “pós-materialistas”. Giddens e seus súditos substituem a “mão invisível” de Adam Smith pelo conceito de “currículo oculto”, que seria a capacidade de um mercado bem regulado produzir paz social. Apesar de imposto pela força, o capitalismo torna-se um sistema de relações sociais estável pela capacidade de fazer com que os cidadãos-consumidores possam escolher “livremente” os mais variados produtos.

O mercado, acredita-se e faz acreditar, favorece atitudes responsáveis porque demanda cálculo e raciocínio ? e não decisões burocráticas. Mas, para não engendrar um comercialismo, é preciso ajuste e controle externo ? que fornecerão os princípios éticos garantidos pela lei. Para frear os efeitos perversos da “energia empresarial”, que tende a criar monopólios, invoca-se o chamado “investimento em capital humano” a ser nutrido pela ação conjunta do Estado, da família e das comunidades. O ideário da Terceira Via, portanto, comporta um viés keynesiano ? ainda que restrito à intervenção colaborativa.

ONGs e voluntariado

Assim, antes consideradas como refugo para cessão de dinheiro excedente e equipamentos obsoletos, as chamadas organizações não-governamentais (ONGs) sem fins lucrativos não se portam mais como filantropas frias e distantes, mas como incubadoras de novas oportunidades de inovação das relações sociais. Os motivos: a) combinam eficácia nos negócios com estímulo social; b) são uma alternativa para as desvantagens do mercado, associadas à maximização do lucro, e do governo, burocrata e inoperante; c) dão conta do binômio liberal flexibilidade-eficiência e do seu oposto socialista equidade-previsibilidade.

Por fim, por terem como base o trabalho “voluntário” e as doações dos que podem dispor de dinheiro e tempo livre, as chamadas ONGs desobrigam o Estado do financiamento dos recursos que deveriam garantir os direitos do cidadão, agora reduzidos a um mínimo pré-contratual. Ou, no máximo, temos um retorno ao contrato liberal individualista, moldado na idéia do contrato de direito civil entre indivíduos, um instrumento vigente nos períodos iniciais da acumulação de capital.

Temos, assim, a destituição da idéia de contrato social entre agregações coletivas de interesses sociais divergentes e o confisco dos direitos de cidadania, processo que nos ameaça como a sombra de um Estado hobbesiano. Para amenizar os efeitos perversos deste “novo contrato leonino”, a indústria da mídia tem o dever de fabricar novelas de esperança e amizade com o intuito de assegurar o efetivo processo de privatização das políticas sociais (saúde, segurança, habitação e educação).

O que se pode ver nas entrelinhas da exaltação do Terceiro Setor é que o seu “sucesso” é um novo recurso de Estado, cujo interesse expresso é a aceitação da desigualdade como natural e, até mesmo, desejável. Isto porque as ONGs (e o trabalho voluntário) não são vistas como meios de resolução de alguns problemas sociais ? meios que deveriam se exaurir ou quando fossem conquistados seus microobjetivos ou quando não houvesse mais condições estruturais de produção da desigualdade.

As ONGs, mais “neo” do que “não-governamentais”, fazem parte de uma nova indústria, um novo “setor” de produção que cria suas próprias condições de perpetuação e sobrevivência. Elas se tornam não um meio, mas um fim em si mesmo. Um novo campo de empreendedorismo, o lugar do “empresário social”, aquele que lucra com a desgraça alheia a partir de sua perspicácia individual em descobrir novas e eternas necessidades humanas.

Papel do jornalista-trabalhador

Na exaltação ao Terceiro Setor, as empresas midiáticas ajudam a promover a despolitização da sociedade civil através da desmobilização e fragmentação da classe trabalhadora, processos tidos como “naturais”. Contribuem, portanto, como legitimadoras e/ou incubadoras destes novos instrumentos de configuração de uma relação Estado-sociedade civil dominada pelas forças do mercado.

Mas, felizmente, como nos ensinou o saudoso sociólogo Florestan Fernandes, há uma espécie de processo educativo permanente nas relações sociais em crise que, sob condições democráticas, pode engendrar a formação de um novo senso comum, contrário e crítico aos pressupostos hoje hegemônicos dos adeptos das vias “terceiristas” ? que parece ser o parâmetro dos governos FHC e Lula.

Nesse cenário, cabe ao jornalista, que é antes de tudo um trabalhador (isto é, um produtor sem meios de produção), combater os instrumentos que bloqueiam as possibilidades de transformação histórica, a começar pela luta contra a “cotidianidade”, um aspecto da vida cotidiana que transforma a realidade social numa realidade manipulada, na qual paira uma alienação extrema que provoca a mistificação e a naturalização de um modo de produção de vida.

A este jornalista, portanto, vinculado à sua condição de classe, cabe ir além da “rotina” da dimensão privada (o que não significa esquecê-la) e escarafunchar a vida cotidiana do trabalho, que não deve ser reduzida à idéia de contrato social ? ainda mais um contrato social mitificado pelo neoliberalismo. Para isso, é preciso recuperar a memória dos segmentos populacionais marginalizados e mostrar que eles fazem História com “H” maiúsculo, a história que atravessa a vida de pessoas concretas nas dimensões organizativas de uma parte ? a parte da maioria ? da sociedade civil.

É o resgate dessas memórias e lutas que pode revelar a verdade de uma história que o medo (dos jornalistas, inclusive), de um lado, e a cobiça (das empresas de comunicação, inclusive), do outro, tendem a disfarçar: a do trabalho como fonte social de riqueza.

Somente desta forma é que os jornalistas poderão mostrar/compreender que o que a história oficial aponta como inovações das elites é, na verdade, produto de lutas trabalhistas: modificação nas condições de trabalho e da jornada de trabalho; elevação dos salários, redistribuição da renda e participação simbólica dos trabalhadores na administração da empresa; a conquista de códigos de trabalho mais eqüitativos, a seguridade social, a expansão e, sobretudo, a democratização do ensino público, gratuito e universal.

Assim, acredito, poderão perceber que os efeitos perversos que estão sentindo pelo uso e abuso das novas estratégias de “solidariedade” burguesa (da qual o trabalho voluntário, camuflado pelas políticas de estágio, treinamento, terceirização e cooperativismo, é só um exemplo) são sintomas de um processo muito maior ? que a falta de uma visão sistêmica e orgânica com as causas trabalhistas faz com que as mesmas (estratégias) sejam vistas como panacéia para problemas sociais que não se resolveram pelo consenso produzido pelos poderosos.

(*) Jornalista, professor universitário e cientista político, autor de Os empresários da educação e o sindicalismo patronal (Edusf, 2002), dissertação de mestrado sobre o Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino no Estado do Rio de Janeiro, ao qual presta assessoria desde 1996; pesquisador do Coletivo de Estudos de Política Educacional do Programa de Pós-graduação em Educação da UFF, onde faz doutorado

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