Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

A lógica invertida da mídia

INFORMAÇÃO & CONHECIMENTO

Ivo Lucchesi (*)

Com alguma freqüência, surgem matérias, tanto em redutos midiáticos quanto no setor acadêmico, cuja temática se centra na avaliação da qualidade e da eficiência da mídia. Em especial, o contexto brasileiro se revela verdadeira central de produção no tocante a essa questão. Diferente do que, num primeiro momento, faça supor, a observação não contém nenhum tom de censura, a menos que também eu mesmo estivesse sob a mira de minha própria crítica, considerando a escrita de dezenas de artigos a versarem sobre o tema. A questão, portanto, é de outra ordem, razão a ditar o rumo do presente artigo.

Incapacidade crítico-reflexiva

Haverá algum motivo específico para, no caso brasileiro, verificar-se tanta recorrência em colocar-se a mídia no banco dos réus? Afirmar que as pontuações críticas não são, em sua maioria, procedentes, significa, com justa propriedade, duvidar da inteligência de quem, porventura, assim pensa. As críticas não só procedem como inexpressivos parecem seus efeitos. Fica a sensação de que os diagnósticos são configurados e mapeados com devida competência, sem, entretanto, os responsáveis atingidos pelas críticas acusarem o menor incômodo. Ao contrário, continuam na mais absoluta indiferença. A imunidade à crítica é, aliás, um dos sintomas da face arrogante brasileira, sempre alternada por dissimulada expressão de amabilidade e cortesia. Do alto dos cargos jamais provém qualquer reação na forma de contraponto crítico.

De um modo geral, no Brasil, os responsáveis pelos modelos midiáticos têm plena ciência de que, em larga escala, oferecem subprodutos quanto ao conteúdo, balanceados com sofisticação técnica. Investem em renovação e ampliação de parques gráficos e derivados, enquanto se descartam de profissionais experientes e calçados em fino conhecimento. Os detentores dos grandes negócios não lamentam o gasto com aquisição de avançadas máquinas, porque economizam nas folhas de pagamento, seja amesquinhando profissionais que, ao longo de décadas, investiram em conhecimento, seja oferecendo parcos salários a recém-formados. Em recente programa na TV, o próprio Observatório da Imprensa abordou amplamente o assunto. Não cabe aqui, pois, reproduzir, como eco, os aspectos já analisados, mas procurar angulações outras que, no conjunto, se somem, tendo-se, então, o perfil mais próximo à gravidade que a situação envolve.

Por que, afinal, a qualidade sofrível do conteúdo gerado pelo sistema midiático brasileiro tem de ser um problema merecedor de constante questionamento? A resposta não é difícil, ao saber-se que o padrão médio de consumo cultural no país é de natureza midiática. Esse é o ponto. Primeiramente, há de ficar claro o seguinte fato: nenhum país sobrevive culturalmente se seu repertório está confinado a leituras de caráter descartável. Pior ainda, se o teor dominante dos "conteúdos" vem revestido de uma linguagem simplória, ou seja, vocabulário restrito em tom coloquial, construções diretas e banais e, por fim, abordagens descontextualizadas. Com esse "formato", inviabiliza-se qualquer propósito de salto qualitativo no padrão cultural brasileiro.

A propósito do "formato midiático", bem o sintetizou o jornalista Ignacio Ramonet em "O poder midiático", texto publicado na coletânea organizada por Dênis de Moraes [Por uma outra comunicação: mídia, mundialização cultural e poder, Record, 2003]. Ramonet, no texto mencionado e por nós já citado em artigo anterior [remissão abaixo], alerta para o perigo de uma mídia com tendência à uniformização pela banalidade. Para tanto, destaca três características constitutivas do modelo vigente: a velocidade, a simplicidade e a dramatização. Às três deve somar-se uma quarta, principalmente em se tratando de mídia eletrônica: o brusco deslocamento, aspecto específico sobre o qual já nos pronunciamos [remissão abaixo]. Com tais "ingredientes", o resultado final é o embaralhamento perceptivo e reflexivo, realimentador do processo de "infantilização".

Os responsáveis pelos meios de comunicação de massa no país devem assumir o que lhes cabe fazer, sob pena de estarem condenando gerações ao estado deplorável da incapacidade crítico-reflexiva. Insisto em frisar que o quadro não teria proporções tão graves se o paradigma cultural da população não fosse ditado por jornais, revistas e, principalmente, televisão. O problema, porém, é que a realidade assim se apresenta, tornando-se dispensável qualquer pesquisa para avaliar-se a autenticidade dessa constatação. Ela é por si demonstrável pela prática cotidiana. O país respira mídia. É o seu balão de oxigênio mental. Pierre Bourdieu, aliás, fez dessa trincheira crítica um de seus compromissos mais ostensivos, atitude interrompida pela morte repentina. Todavia, ficam os inúmeros escritos a respeito.

O círculo vicioso ou viciado

É cada vez mais detectável, no nível universitário, a total inabilidade cerebral dos estudantes em lidarem com o texto teórico, já que o primeiro obstáculo é o padrão vocabular. O estudante brasileiro se tornou um dependente "químico-cognitivo" da "droga-informação", considerando que pode resolver qualquer reflexão complexa com o "repertório midiático". É nesse bojo que sobrevém o debate acerca da obrigatoriedade (ou não) do diploma de jornalista. Dezenas de artigos ? uns contra, outros a favor ? já ocuparam extensos espaços em inúmeras edições deste Observatório. É claro que, na conjuntura atual, faz-se indispensável a existência do curso, antes que se dê o abastardamento generalizado e definitivo. Não menor deve ser o esforço, no espaço interno dos referidos cursos, quanto ao aprofundamento do embate ? que acabou por adquirir uma face histérica ? entre a predominância de uma formação teórica e uma (de)formação técnica.

O fato de a universidade se transformar numa arena a abrigar esse tipo de discussão já dá a dimensão do quanto o perfil cultural do país acusa fragilidade. Perdeu-se o significado do que representa aquisição de saber. Inventou-se um lema que pretende fixar como verdade isto: "sabe quem faz". Na perda de referências culturais, um novo par de sinônimo habita a língua portuguesa: saber = fazer. Mais grave ainda é constatar que, afora a mediocridade do feito, a maioria sequer sabe refletir criticamente sobre o que faz. Obviamente, o domínio da técnica é indispensável a qualquer ramo de atividade. Todavia, é inconcebível que à técnica se atribua um valor absoluto, a exemplo do alarde de alguns. Nesse quadro de inversão de valores, explica-se o descaso que os detentores dos meios de comunicação destinam a profissionais de reconhecida qualificação.

Por fim, vale atentar para outro risco: a manter-se o quadro de deficiência cultural, a qualidade da democracia é que estará em xeque. Uma vez deteriorada a democracia como construção cultural, os primeiros a ressentirem-se dos efeitos serão os próprios veículos de comunicação. Se não for, portanto, por nobres valores, que a transformação se dê, pelo menos, por interesses na manutenção dos próprios negócios.

Identifica-se uma espécie de acordo cômodo entre fontes produtoras e receptoras, quanto ao fato de que se oferece o que é indicativo de maior predileção por parte do público. Este, por sua vez, declara consumir as opções que lhe são dadas, sem consulta prévia. Bem, a permanecer esse "jogo" de "empurra-empurra", dificilmente obter-se-á mudança. É em meio ao impasse consagrado pela conduta-padrão das partes envolvidas que a "terceira margem", na qual se encontram as vozes críticas, tem o dever de sinalizar os vetores para a transformação necessária. Ao menos, fica o registro reatualizado de que o problema existe e para ele tem de haver solução, a despeito dos interesses suspeitos sempre a postos para fazerem vingar a barreira.

(*) Ensaísta, doutorando em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular da Facha, co-editor e participante do programa Letras & Mídias (Universidade Estácio de Sá), exibido mensalmente pela UTV/RJ.

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