VIDA DE BRASILEIRO
Flávio Tiné (*)
Uma das (poucas) vantagens da longevidade é o conhecimento, mesmo que superficial, de certas coisas da vida. Tudo o que acontece aqui e ali a gente já viu, sentiu, experimentou. Pode ser que não tenha sido exatamente igual, mas pelo menos algo parecido, em locais ou épocas recentes ou remotas.
A mãe que mata o filho, o filho que mata a mãe, o genro que papa a nora, a moça que não casa virgem, o padre que namora a beata, de tudo um pouco a gente viu em nesse mundo de Deus. Não adianta o noticiário bradar que o caso é inédito. Não convence.
Outro exemplo mais ou menos recente. Tudo o que os petistas dizem para justificar arrochos salariais de servidores públicos foi dito por políticos de outros partidos, em épocas remotas ou recentes.
Os moralistas da atualidade ? Boris Casoy, Luís Carlos Datena, Roberto Cabrini e Ratinho, entre outros, são parecidos com os moralistas de ontem ? Carlos Lacerda, Eduardo Gomes, Henrique Teixeira Lott, entre outros, que colocavam a pátria acima de tudo, contanto que não se contrariassem os desígnios de cada um e respectivas empresas, corporações ou seja lá quais fossem suas respectivas bandeiras. Os apresentadores de televisão virulentos tiveram Flávio Cavalcanti como precursor.
Mas se existe algo de que nenhum longevo pode reclamar é a seqüência de novas emoções. Se ele tem direito a andar de graça nos transportes coletivos precisa ter muito cuidado ao subir ou descer de um ônibus. A qualquer momento o motorista arranca bruscamente, como se estivesse largando numa corrida. Suponhamos que não seja o caso. Ele não vai tomar ônibus. É preciso olhar para baixo, ao caminhar pelas calçadas, pois traiçoeiros buracos aguardam tornozelos incautos, para novos entorses. Se fraturar a bacia, haja paciência. Vai ficar seis meses no estaleiro.
Aceitar nosso mundo
O privilegiado proprietário de um automóvel nunca está livre de um assalto em qualquer cruzamento, a qualquer hora. Garotos ousados e agressivos já me levaram relógio, carteira com dinheiro e documentos e até uma modesta aliança de ouro, felizmente sem serventia alguma, pois já era desquitado havia pelo menos 10 anos, quando o fato aconteceu. A operação é rápida. Só alguns segundos depois você começa a tremer, suar frio, e pode até desmaiar com o susto. Se não sofrer do coração, passa.
O pior da longevidade é recusar o convite de uma amiga para tomar um chopinho, alegando compromissos assumidos anteriormente, só ao pensar que poderia rolar um papo tipo sem compromisso. Vai que a conversa se prolonga e você não confia no seu taco. Essa é uma tragédia que pode ser evitada, em nome da virilidade.
E quando a netinha de 3 anos, em sua franqueza radical, notando seus cabelos brancos e sua cara enrugada, pergunta quando é que ela vai ficar sem o vovô? Aí não tem outro jeito, além de fingir que não entendeu.
Você já trabalhou muito, já deu sua contribuição, por que não compra um sítio ou uma casa na praia para usufruir o que tem direito, pergunta o amigo solidário, louco para ocupar o seu espaço aqui ou ali.
Pois é, amigos. É preciso mais do que reforma previdenciária ou tributária para sobreviver a tamanhos desafios. Não bastassem os que enfrentamos para mudar o mundo, temos que aceitar o nosso mundo.
(*) Jornalista, um dos assessores de imprensa do Hospital das Clínicas de São Paulo, autor do livro Pois não, doutor!, sobre bastidores do hospital em que trabalha