Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O povo morre e a imprensa explica

REPORTAGEM NAS ESTRADAS

Deonísio da Silva

A edição dominical do Diário Catarinense (22/6) chegou às bancas de Florianópolis sábado à tarde, como de costume. Comprei o exemplar em busca da crônica de Sérgio da Costa Ramos, a melhor revelação do gênero nos últimos anos, com sua verve, sua fina ironia, o refinamento florentino de um texto sempre caprichado. Mas a matéria principal tinha na capa uma chamada sombria: "BR-101, a rodovia do medo". Cruzes erguidas à beira da estrada apareciam em primeiro plano nas fotos de Caio Cezar, que ilustravam a reportagem assinada por Jeferson Bertolini e Paulo Lopes, e causavam nos leitores que apanhavam o jornal nas bancas um ar de espanto e perplexidade.

Num trecho de 300 quilômetros, entre os municípios de Palhoça e Passo de Torres, em Santa Catarina, já morreram 53 pessoas este ano. Ano passado foram 118 mortos no mesmo trajeto.

Em vez de encartar livros ou outros brindes, a imprensa tem no caminho da reportagem um de seus grandes recursos para aumentar a venda em bancas e obter nossas assinaturas. E um rápido exame na edição do DC de 22/6 possibilitava o flagrante. Buracos, desníveis na pista única, principalmente em cabeceiras de pontes, ausência de telefones públicos, curvas fechadas demais, falta de acostamento, afundamento do asfalto e demais anomalias levam a tragédias terríveis ? como a de uma senhora, Maria Pereira dos Santos, que aos 71 anos resume a tragédia que se abateu sobre sua família. De 1999 até hoje, ela perdeu o neto, o filho e o marido.

Ao lado de depoimentos como esse, o jornal dava destaque para as estatísticas fornecidas pela Polícia Rodoviária Federal. Foram 1.999 acidentes no ano passado; 1.717, em 2001; 2.015, em 2000. Em 2003, entre janeiro e maio, 763 acidentes, com 492 feridos e 53 mortos.

Instrumento de morte

Imaginemos o turista com o jornal em mãos. Puro pânico. O medo assalta muito mais os habitantes das cercanias, que não passam ali apenas nas férias, pois precisam ir e vir todos os dias. E os pedestres arriscam a vida para atravessar uma pista sem passarelas.

A má educação dos motoristas, a falta de sinalização e o descaso com o investimento público estão, mais do que prejudicando o povo, matando-o em nossas rodovias. Apesar de a BR-101 ser um caso emblemático de como a coisa pública não deve ser tratada, o quadro não é muito diferente na maioria de nossas estradas.

E o Brasil é um país sobre rodas. É o paraíso de quem vende carros, pneus, combustíveis, de quem cobra pedágios. É um "país abençoado por Deus e bonito por natureza" também para o poder público, que tem grande parte de sua arrecadação provinda de caminhões, utilitários e automóveis. E domínios conexos, como os impostos indiretos, mas que se radicam no ato de ir e vir.

O descaso com o povo ultrapassou as raias da irresponsabilidade no que diz respeito às estradas. O Estado, além de não garantir a via pública, fez dela um instrumento de morte e mutilação. E a imprensa precisa mostrar isso.