Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

Muito além do diploma

FORMAÇÃO DO JORNALISTA

Muniz Sodré (*)

Primeiro, o caso da juíza que sentenciou contra a obrigatoriedade do diploma universitário para jornalistas; segundo, o fato de que donos de jornais e grande parte de seus profissionais costumam contestar a competência técnica das escolas para a formação de jornalistas.

Para nós, entretanto, a discussão sobre o diploma ou sobre a competência universitária para a formação de jornalistas não é um assunto meramente técnico ou jurídico. Para ser seriamente encarada, ela deve ser situada no quadro problemático da crise generalizada do espaço público. Reprisamos uma posição já bastante conhecida nos debates teóricos contemporâneos quando chamamos a atenção para o fato de que o espaço ou a esfera pública, da maneira como se instituiu na modernidade, passa hoje por transformações que o convertem num arremedo daquilo que o liberalismo clássico pretendeu que fosse. Essa pretensão ? muito nítida no projeto político do liberalismo, que se oferecia como resposta à crise da legitimidade teológica do poder ? consiste em proclamar que a política é assunto de todos empenhados na formação de uma comunidade de cidadãos. Para isto, era fundamental a existência de um espaço onde o debate público e livre sobre o Estado laicizado tomasse o lugar das grandes transcendências.

Decorre desse projeto liberal o prestígio da imprensa escrita em nossa modernidade. Ele associa-se ao primado do indivíduo como ser moral e autônomo, conforme os termos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, lavrada em 1789 pela Assembléia Constituinte Francesa. A Declaração é a garantia política e ideológica da concepção universal do homem enquanto indivíduo livre. Com esta pressuposição de uma liberdade inerente à sua existência social, o indivíduo passa a gerar valor social, do qual se deduz a noção de igualdade: cada homem vale outro, o fato de sua humanidade é um valor, logo fato gerador de direitos, de possibilidades contratuais.

Disso já falamos em Reinventando a Cultura (Ed. Vozes): ao criar um laço social entre o cidadãos (a sociedade civil), assegurando o "contrato social", o regime republicano torna necessária a comunicação entre eles. Daí, a importância crescente da imprensa, sobretudo graças à sua posição de garantia da livre manifestação da subjetividade civil. A imprensa asseguraria ao cidadão a representatividade de sua palavra, de seus pensamentos particulares. Exprimir-se livremente pela imprensa é um dos direitos levantados como bandeira pelo liberalismo. Essa liberdade de imprensa resulta da definição e do empenho dos liberais. Para Benjamin Constant, por exemplo, a única de todas as liberdades que não pode ser suspensa é a de imprensa, uma vez que esta deva funcionar como condição das outras. Em La Liberté des Brochures, des Pamphlets et des Journaux (1814), ele procura estabelecer, no âmbito do constitucionalismo liberal, o princípio da ausência absoluta de censura prévia à expressão.

Flagelo do século

Estes são aspectos político-ideológicos da escrita e da imprensa, sobre os quais têm insistido autores de extrações teóricas as mais diversas. Mas há aspectos técnico-literários que não se costuma destacar muito. Por exemplo, o aspecto da correspondência entre o período clássico da imprensa ? caracterizado por modelos que o belga Bernard Miège chamou de "imprensa de opinião" e "imprensa comercial" ? e uma apropriação técnica da escrita que demanda uma forma específica de leitura.

Com efeito, a imprensa que se autoproclamou na História como mediadora entre Estado e sociedade civil ou como moderna tribuna ampliada para o exercício da autoridade, da sabedoria e mesmo do amor à causa pública, está comprometida com a produção de uma escrita intrinsecamente vinculada à escola e à obra literária. As velhas discussões sobre os limites entre literatura e jornalismo, a velha presença de escritores nas redações de jornais são índices ou sintomas dessa vinculação.

Como bem sabemos, tem cabido às academias, aos círculos literários, à crítica erudita, mas sobretudo à escola, com seus modelos disciplinares, a tarefa de zelar pelos princípios canônicos da leitura. Desses princípios e da racionalidade inerente à escrita surgem esquemas narrativos, isto é, modos codificados de relatar histórias, que variam da obra literária ao jornalismo impresso. Há uma ponte entre ambos desde os começos da imprensa tradicional. A forma da notícia, assim como as técnicas argumentativas dos textos jornalísticos ? não nos esqueçamos ? procede da retórica vulgarizada pelas escolas. E antes da disseminação das escolas de jornalismo, todo jornal de alguma envergadura fomentava uma espécie de escola interna, não oficial, mas materializada em manuais de textos e de comportamento, quando não em cursos episódicos.

Por outro lado, tanto a narrativa literária como o jornalismo, embora com lógicas diferentes, buscam atribuir sentido à experiência humana e organizá-la cognitivamente em episódios temporalmente significativos. Por isso, há também no jornalismo, como na obra literária, um sentido de sacralidade da escrita associada aos princípios políticos da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. A imprensa só ingressa no panteão do liberalismo quando em seu funcionamento global pode ser reconhecida como "obra" do espírito moderno. Seus "pais" vão de enciclopedistas como Condorcet a founding fathers do Estado-Nação norte-americano como Washington, Lincoln, Jefferson, Hamilton, Emerson e Paine, publicistas com os pés fincados na racionalidade argumentativa da escrita.

Por isso, esse pano de fundo ético-político-literário tornou escandaloso para a consciência liberal o fenômeno do jornalismo sensacionalista, seja na Europa ou nos Estados Unidos. Desde o final do século passado, o yellow journalism ? conseqüência da rivalidade acirrada entre grupos poderosos como os de William Randolph Hearst e Joseph Pulitzer, mas resultante também das tentativas de aumento da circulação ? atraiu e tem atraído para a imprensa críticas de setores intelectuais e até mesmo de largas frações do público. Na esteira dessa crítica, Henry Miller diria muito tempo depois que "a imprensa é um dos flagelos do século 20".

Agente mediador

A violação da suposta sacralidade está no esquecimento, tanto da escrita quanto dos princípios fundadores, advindos de uma paternidade e uma filiação liberais. A imprensa enquanto "obra" ético-político-literária do espírito liberal implica, pois, uma civilidade e uma transcendência radicalmente opostas a qualquer tentativa de reduzi-la a um plano meramente técnico ? daí os seus vínculos simbólicos e sua afinidade histórica com a disciplina inerente à forma moderna intitulada "escola", guardiã, ainda hoje, da ética da produção e da recepção da escrita.

A formação universitária do jornalista e a sanção desse percurso por um diploma acadêmico são conseqüências político-culturais dessa concepção de imprensa. É uma ingenuidade profissionalista supor que os acontecimentos do mundo se ofereçam de modo transparente e neutro à mediação jornalística ? a mediação implica sempre um parti pris. O indivíduo não vai à academia para o mero aprendizado de técnicas jornalísticas (repetindo a concepção do protestantismo calvinista sobre o saber, que valeria apenas enquanto associado à profissão), mas para, junto com a absorção dessas técnicas, preparar-se culturalmente (estudando História, Política, Economia, Filosofia, Teoria da Comunicação) para lidar interpretativamente com a moderna sociedade da informação e investir-se da condição de guardião da língua, da escrita e da credibilidade histórica.

É este o sentido de sua presença no âmbito da comunidade universitária. E, pelo que temos podido avaliar, a universidade vem cumprindo, de modo cada vez mais satisfatório, a tarefa da formação. Os donos da mídia, os velhos jornalistas ressentidos, fingem não ver a presença maciça nas redações de jovens jornalistas saídos das escolas e, em geral, bastante informados sobre cultura e sociedade, logo, mais capacitados para a mediação profissional.

Claro, sabemos que o jornalismo é também, ou principalmente, empresa comercial e, por isto, presta-se mais facilmente à redução da escrita à pura textualidade, o que significa culturalmente algo diferente de obra. Ao mesmo tempo, a sociedade da informação amplia tecnologicamente o espaço público, mas o priva de sua antiga função político-liberal. O espaço publicitário é um simulacro do espaço público clássico. Ele realiza na prática o lado sombrio do projeto liberal clássico para o espaço público, que era também o controle do acontecimento pela imprensa. A mídia nos aponta hoje para a realidade tecnológica dessa possibilidade. "Pela primeira vez", afirma John Ballard, "a humanidade poderá negar a realidade e substituí-la por sua versão preferida." É possível, mas disso não temos nenhuma certeza, de que da formação jornalística posso advir algum antídoto.

Em resumo: sociedade contemporânea precisa, mais do que nunca, do jornalista. Talvez seja necessário redefinir a sua identidade. E esta exigência aponta para um tipo de "agente mediador" a quem se confie a tarefa de guia no cipoal das informações. Acreditamos que tal guia não surja espontaneamente apenas da própria informação, mas dela juntamente com a formação escolar.

(*) Jornalista, escritor, professor-titular da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro; este artigo é o texto-base de comunicação apresentada no seminário "Jornalista precisa de diploma?", Universidade Estácio de Sá, Rio de Janeiro, 28/5/2003