Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O caminho das pedras

JORNALISMO CULTURAL

Daniel Piza (*)


Introdução de Jornalismo cultural, de Daniel Piza, 144 pp., Editora Contexto, São Paulo, 2003, <www.editoracontexto.com.br>; R$ 23,90; título e intertítulo da redação do OI


Não há nada de nostalgia ou negativismo em observar que o jornalismo cultural brasileiro já não é como antes. Pequeno panorama histórico é suficiente para mostrar que grandes publicações e autores do passado têm hoje poucos equivalentes; mais que uma perda de espaço, trata-se de uma perda de consistência e ousadia e, como causa e efeito, uma perda de influência. Os possíveis motivos para isso serão discutidos ao longo deste livro. Mas é bom observar ainda neste primeiro parágrafo que, ironicamente, as seções culturais dos grandes jornais continuam entre as páginas mais lidas e queridas e, como venho notando no dia-a-dia do meu trabalho e nos seminários a que compareço, o jornalismo cultural vem ganhando mais e mais status entre os jovens que pretendem seguir a profissão.

Essa expressão, jornalismo cultural, é um pouco incômoda, especialmente para os objetivos deste livro, porque parece tratá-lo da mesma forma como tantas vezes ele ainda é tratado pela grande imprensa brasileira ? desempenhando um papel algo secundário, quase decorativo. Os “segundos cadernos” têm uma importância para a relação do jornal com o leitor ? ou, mais ainda, do leitor com o jornal ? que é muito maior do que se supõe. Além disso, há uma riqueza de temas e implicações no jornalismo cultural que também não combina com seu tratamento segmentado; afinal, a cultura está em tudo, é de sua essência misturar assuntos e atravessar linguagens. Qualquer jornalista com experiência na área sabe das exigências que ela envolve. O empobrecimento técnico do jornalismo cultural vem também da banalização de seu alcance, contra a qual este livro se põe.

No entanto, uma tendência do jornalismo brasileiro recente, a qual vivencio como profissional desde 1991, é a de querer aparentar o jornalismo cultural aos outros ? político, econômico, policial etc. ? em método, o que, numa frase, significa não reconhecer o maior peso relativo da interpretação e da opinião em suas páginas. Não há contradição aí. Essa tendência faz parte da mesma tentativa de manter secundárias as seções culturais. Como será mostrado mais adiante, há muito a fazer pelo jornalismo cultural no gênero da reportagem, inclusive no chamado hard news (as notícias mais quentes, inadiáveis), mas isso não pode ser feito à custa da análise, da crítica, do debate de idéias ? vocações características do jornalismo cultural e carências fortes do leitor contemporâneo. O conceito de que “emitir opiniões é fácil”, que tantas vezes escutei em redações, é o primeiro a ser combatido.

Nesse sentido, este livro propõe sim que o jornalismo cultural deva receber um tratamento diferenciado, mas recusa a noção de que seja fácil e simples. Há grandes questões para ele enfrentar. A maior delas, talvez, seja a infinidade de oposições, de polarizações, que o contamina a todo instante. Entretenimento versus erudição, nacional versus internacional, regional versus central, jornalista versus acadêmico, reportagem versus crítica ? a lista poderia ir longe. E, na verdade, tais dicotomias estão relacionadas com um velho debate filosófico que opõe o compreender e o julgar, debate que está na origem do jornalismo em geral, não apenas do cultural. Mas veremos muitos exemplos de soluções intermediárias, em diversos matizes, e que o problema do jornalismo cultural é sobretudo o de não perceber esse cromatismo.

Canto de página

Jornalismo, como se sabe, tem de estar no sangue; jornalismo cultural tem de estar no DNA. Desde os 14 anos senti, nem sempre conscientemente, o desejo de ser jornalista cultural, de expor minhas idéias sobre livros e obras de arte que consumia vorazmente. Mas, ainda como mero leitor dos cadernos culturais, não sabia que um pacotaço de regras e ressalvas costuma ser despejado na cabeça do jovem que entra na carreira. Logo que comecei a escrever no Caderno 2 do jornal O Estado de S.Paulo, em junho de 1991, aos 21 anos, comecei a tomar contato com essa visão ? às vezes assimilada até mesmo pelos profissionais da área ? de que o jornalismo cultural não é tão relevante; e fui percebendo esse jogo de contrários, tão intenso e ao mesmo tempo subliminar, que o chacoalha até ver caírem as ambições e as sofisticações.

No período que passei na Ilustrada, na Folha de S.Paulo, de 1992 a 1995, senti sob as mãos o hiato existente entre o chamado caderno “de variedades”, sempre pressionado a ser ligeiro e superficial, e os suplementos literários e/ou dominicais, normalmente escritos por professores universitários que não raro esquecem o ponto de vista do leitor menos especializado. Quando cheguei à Gazeta Mercantil em dezembro de 1995, para fazer o caderno Fim de Semana, comecei a testar modos de superar aquelas amarras e esse hiato, como narro na parte final deste livro. Fiquei lá até abril de 2000, quando novamente os problemas econômicos que afligem nosso jornalismo me levaram a inaugurar outro ciclo. Desde então sou editor-executivo e colunista do Estadão, além de colaborar em diversas publicações e escrever meus livros, sempre com ênfase na batalha por um jornalismo mais cultural, mais preocupado em provocar perspectivas no leitor.

No balanço, se os desafios não são poucos, os prazeres também não. Quero deixar bem claro que, pela minha experiência e também pelas estatísticas, há um contingente sólido, respeitável, de leitores interessados em jornalismo cultural de qualidade; e que sempre há espaço, a ser criado e recriado com persistência, para quem se dispuser a produzi-lo. Fazer-se de vítima talvez não seja o primeiro obstáculo, mas é certamente o maior que um jornalista cultural tem a superar. Mesmo que lhe restem apenas algumas linhas num canto da página, essas linhas podem sempre ofuscar todo o restante. O leitor, tantas vezes menos preconceituoso quanto ao jornalismo do que os próprios jornalistas, saberá enxergar. [Abril de 2003]

(*) Jornalista