Wednesday, 13 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1313

João Batista Natali

ECOS DE BLAIR

“Caso da recruta Jessica une realidade e ficção”, copyright Folha de S. Paulo, 22/06/03

“Primeiro foi o programa ?Correspondent?, da BBC, levado ao ar em 15 de maio. Em seguida uma longa reportagem do ?Washington Post?, na última terça.

Depois dessas tijoladas, sobrou muito pouco da versão inicial do resgate de Jessica Lynch, 19, apresentado em 2 de abril como o mais épico dos episódios da guerra anglo-americana no Iraque.

Mark Feldstein, professor de mídia e políticas públicas na Universidade George Washington, disse à Folha que Jessica Lynch foi a protagonista de uma história inverídica. ?Quando a cobertura jornalística é patriótica, ela precisa de personagens heróicos para justificar seu enfoque?, afirmou.

E tudo acabou em ?propaganda de guerra, que beneficiou um governo que costuma com frequência manipular informações?.

Aos fatos: Jessica terminara o colegial na cidade de Palestine, Virgínia Ocidental. Trabalhava como balconista. Precisava juntar dinheiro para custear uma universidade. Decidiu se alistar no Exército, que é profissional.

Acabou na 507? Companhia de Manutenção, baseada no Texas. Foi deslocada para o Oriente Médio. Ela e seus colegas não eram propriamente combatentes. Tinham por missão manter e ativar peças dos mísseis Patriot.

Já no Iraque, formavam um comboio na retaguarda da longa coluna de 8.000 veículos da 3? Divisão de Infantaria, desembarcada no Kuait e que rumava hesitante na direção de Bagdá.

A guerra não estava sendo um passeio. Os incidentes tornavam duvidosa a previsão de poucos combates, porque militares desertariam e a população aplaudiria a chegada dos libertadores.

A 3? Divisão mudou seu rumo. Não avisou a 507? Companhia. A companhia se perdeu. Estava com 12 horas de atraso e sem poder de fogo caso fosse emboscada por iraquianos numerosos.

Lynch estava dentro de um dos 18 jipes Humvee. O grupo estava nas imediações de Nassiriah. A pequena coluna se perdeu. Procurava voltar à estrada principal. Ninguém dormia havia 60 horas. Exaustão completa. Os veículos entraram numa estrada errada. Um soldado iraquiano atirou sobre o jipe de Jessica uma granada. O jipe perdeu o controle e se espatifou contra um caminhão militar norte-americano.

No acidente morreram oito ocupantes do veículo. Outros três norte-americanos da mesma coluna já haviam morrido, mas em confrontos com militares iraquianos. Cinco soldados capturados com vida seriam libertados em meio à debandada posterior das tropas regulares de Saddam.

Sobreviveram, entre os tripulantes do jipe, Jessica e Lori Piestewa, uma outra mulher, que morreria no hospital em decorrência dos ferimentos pouco depois. Eram 10h do dia 23 de março.

À 1h na madrugada de 1? de abril um comando de elite invadiu o hospital central de Nassiriah para ?libertar a prisioneira de guerra?. Ela foi retirada de helicóptero e em seguida embarcada para um hospital militar americano na Alemanha. Seguiu depois para os EUA. Permanece internada no hospital militar Walter Reed. Recomeçou recentemente a andar, mas com dificuldade. Não pode dar entrevistas ou se relacionar com os demais pacientes.

No dia 2 de abril o resgate era revelado em Qatar pelo comando norte-americano. Jornais e emissoras de TV engoliram a versão de que soldados enfrentaram uma chuva de balas para retirar a prisioneira de seu cárcere.

Segundo as mesmas versões, fornecidas por oficiais que não permitiram a publicação de seus nomes, Jessica, ao ser presa, teria esvaziado sua arma contra os inimigos. Ela teria sido ferida por arma de fogo. E na prisão a esbofetearam e a interrogaram.

A BBC deu uma versão bem diferente. Entrevistou médicos e enfermeiras. Eles sabiam que a guerra duraria pouco e que tinham em mãos uma oportunidade para demonstrar boa vontade para com os ocupantes dos Estados Unidos. Trataram bem Jessica Lynch.

Tanto o ?Post? quanto a emissora pública britânica descrevem a palhaçada da operação de resgate. Soldados foram filmados atirando com festim contra médicos e funcionários, numa simulação de tiroteio. Derrubaram portas do hospital em lugar de usar as chaves oferecidas. As tropas de Saddam haviam deixado a cidade na manhã do dia anterior.

O ?New York Times?, que entrou só anteontem na onda de indignação pelas inverdades que cercaram o episódio, qualificou a Jessica produzida pelo Pentágono de ?caricatura hollywoodiana?.

Frase do colunista Nicholas D. Kristof: ?Foi uma complexa fábula amplamente simplificada por funcionários, parcialmente em razão das ambiguidades genuínas e parcialmente porque eles queriam uma boa reportagem a partir da qual construiriam apoio político para a guerra?.”

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“?História será esquecida?, diz analista”, copyright Folha de S. Paulo, 22/06/03

“John P. White foi subsecretário da Defesa na administração Bill Clinton (1993-2001) e é hoje professor na Universidade Harvard. Em entrevista concedida à Folha por telefone, ele qualifica o episódio Jessica Lynch de ?um show paralelo?, explorado pela mídia, mas sem que se conheça o grau de envolvimento do Pentágono em sua produção.

?Não creio ser possível afirmar que havia uma tática deliberada para transformar essa jovem num grande acontecimento emocional para o país?, afirmou White, para quem ?o governo não tinha absoluto controle sobre aquilo que a mídia noticiava?. Leia a seguir a sua entrevista.

Folha – Como explicar a diferença entre a versão inicial do resgate de Jessica Lynch, mais heróica e épica, e a versão atual, mais comezinha?

John White – Não saberia dizer o que aconteceu. Mas, de qualquer modo, em termos de guerra, o episódio foi secundário, lateral. Foi um espetáculo de show paralelo. Não tenho nada particularmente contra os tablóides de circulação popular ou contra as emissoras de TV que se pautam pelos mesmos critérios.

Folha – Mas não foi útil para o Pentágono ter em mãos uma história emocionalmente tão forte?

White – Creio que sim. Pode-se dizer que o sentimento patriótico precisava ser alimentado. As pessoas de um modo geral se sentem atraídas por esse gênero de história. Mas não creio ser possível afirmar que havia uma tática deliberada para transformar essa jovem num grande acontecimento emocional para o país.

Folha – Independentemente do governo, a mídia também se deliciou. Jessica Lynch não simbolizava o patriotismo do noticiário?

White – Com certeza. As guerras sempre produzem acontecimentos de interesse humano, que procuram apresentar os soldados de uma forma favorável.

Folha – Até que ponto o episódio não distraiu a opinião pública no momento em que ela poderia se frustrar pela não descoberta das armas de destruição em massa?

White – Não creio que seja o caso. O governo não tinha absoluto controle sobre aquilo que a mídia noticiava. A mídia foi frequentemente, durante a guerra, mais realista que o rei. De qualquer forma, as supostas armas de destruição em massa, elas sim, constituem em si um imenso episódio dentro da guerra. A imprensa aborda o assunto diariamente, enquanto a história de Jessica Lynch tende a ser progressivamente esquecida.

Folha – O fato de não acharem essas armas acabará machucando a imagem da administração Bush?

White – A população nunca tomou essas armas como um problema fundamental. Saddam era bem mais importante, um ditador assassino.

Há por aqui o sentimento de que o mundo se tornou melhor depois da deposição dele. Mas o problema é outro. Nas próximas oportunidades em que o governo disser que tem informações de inteligência sobre o Irã ou a Coréia do Norte, existirão dúvidas sobre os autores dessas informações, já que elas partem dos mesmos organismos que falharam com relação às armas de destruição em massa.”

“Os limites do jornalismo de estrelas”, copyright Folha de S. Paulo, 22/06/03

“O uso de fontes de informação não identificadas, uma das questões suscitadas pelo escândalo que derrubou o editor-executivo do ?New York Times?, deveria ser limitado a casos de grande relevância e difícil apuração, e não banalizado no dia-a-dia do jornalismo. Quem opina é o norte-americano Bill Kovach, autor, com Tom Rosenstiel, de um livro sobre os valores e o estágio atual da profissão recém-lançado no Brasil (?Os Elementos do Jornalismo – O Que os Jornalistas Devem Saber e o Público Exigir?, Geração Editorial). Além de defender que fontes anônimas sejam utilizadas com menos frequência, Kovach é partidário de uma regra capaz de deixar muitos repórteres de cabelos em pé. ?Quando fui editor, eu tinha de conhecer a identidade de toda e qualquer fonte das reportagens para tomar a decisão final sobre se ela seria ou não usada?, disse ele em conversa com o Mais! por e-mail. ?Para mim o repórter tinha de revelar. É um cuidado indispensável.? Tal cuidado, acredita Kovach, teria evitado que Jayson Blair publicasse, no ?New York Times?, tantas reportagens inteiramente baseadas em fontes anônimas que jamais existiram. Foram inventadas pelo repórter, também pródigo em plagiar textos de outros jornais. Kovach, 69, preside o Comitê dos Jornalistas Interessados (Commitee of Concerned Journalists), organização dedicada a estudar e aperfeiçoar os padrões da profissão. Na década passada, foi curador do programa de jornalismo da Fundação Nieman, em Harvard. Dirigiu a Redação do ?Atlanta Constitution? e, antes disso, trabalhou por 18 anos no ?New York Times?. Como editor da sucursal de Washington, foi responsável pela primeira promoção de Howell Raines, o editor-executivo degolado pela revelação quase simultânea dos casos de Blair e de Richard Bragg, repórter que utilizava, sem dar crédito, o trabalho de free-lancers contratados por ele mesmo. Bill Kovach se lembra de Raines como um ?repórter político de primeira classe?, dono de ?texto excelente e enorme capacidade de analisar o noticiário?. Apesar dos elogios, avalia que o temperamento autoritário de Raines contribuiu para sua queda. ?A Redação estava muito descontente e se voltou contra ele na primeira oportunidade.?

Um comentarista do jornal britânico ?Guardian? acusou o ?New York Times? de superdimensionar o caso Jayson Blair, que não justificaria a queda do editor-executivo. O sr. concorda?

Não. A credibilidade e a confiabilidade do ?New York Times? são o maior patrimônio do jornal, construído ao longo de mais de cem anos pela família Ochs-Sulzberger, e esse patrimônio foi colocado em xeque sob a liderança de Howell Raines.

O sr. acredita que a visão manifestada no ?Guardian? reflita diferenças entre o jornalismo britânico e o norte-americano?

Os jornalistas britânicos não têm direitos constitucionais e a responsabilidade que esses direitos implicam. Isso faz com que a maioria considere seu trabalho um negócio como outro qualquer, levando menos a sério o dever de transmitir ao público, sempre, a versão dos acontecimentos mais completa e próxima da realidade.

Ao opinar sobre o caso Richard Bragg, um ex-secretário de Redação do ?New York Times? disse que o repórter não cometeu nenhum lapso ético ao apresentar trabalho de colaboradores sob sua assinatura. O sr. concorda?

Discordo. Os editores do jornal detêm a prerrogativa de contratar pessoal. Rick Bragg usurpou esse direito ao empregar ?free-lancers privados? para fazer seu trabalho. Isso é uma violação direta da confiança que um editor precisa ter em seu repórter.

O sr. disse que, se o caso Blair tivesse acontecido 20 anos atrás, nem teríamos ouvido falar nele. Por quê?

Hoje, os padrões éticos são mais elevados. Os jornais gastam mais espaço falando de si mesmos, por meio do ombudsman e de outras instâncias de representação do leitor, e dos concorrentes, por meio dos repórteres de mídia. Esses repórteres chamam a atenção para o trabalho de outros jornalistas e contribuem para que falhas éticas venham à tona com mais rapidez.

É correto dizer que, ao mesmo tempo em que torna mais fácil plagiar, o avanço tecnológico também contribui para a descoberta do plágio?

Sem dúvida, e, apesar disso, poucos editores se preocupam em conscientizar suas equipes da importância de verificar cuidadosamente a origem e a solidez das informações.

Apesar da pregação em contrário, o jornalismo tem valorizado o sensacional e o pitoresco em detrimento da solidez na apuração. Em que medida Blair e Bragg são produtos dessa cultura?

Num ambiente hipercompetitivo, com oferta ininterrupta de notícias, muitos editores enfatizam a necessidade de ser o primeiro a dar uma história quente e atribuem menos valor à verificação das informações. Isso abre a porta para Jayson Blair e assemelhados. É bom ser o primeiro. Mas, evidentemente, não é bom ser o primeiro a errar.

Nota-se que, cada vez mais, as estrelas da profissão não são os repórteres encarregados do chamado ?hard news?, da pura notícia, e sim os que se dedicam a hist&oacuoacute;rias ?coloridas?. Por que isso acontece?

Em primeiro lugar, quero dizer que discordo do sistema de badalação de estrelas promovido por Howell Raines no ?New York Times?. Os melhores repórteres sabem cuidar de si mesmos. O que define um grande editor é a capacidade de extrair o máximo de talento de uma equipe pouco talentosa. A importância crescente dos repórteres encarregados de ?features? está relacionada aos esforços para atrair novos e jovens leitores com um texto diferenciado e boa capacidade narrativa de não-ficção. O desafio é assegurar que o repórter não permita que as exigências desse tipo de texto distorçam os fatos para adequá-los à própria narrativa.

O uso de fontes anônimas, discutido em seu livro, é um tema levantado pelo caso Blair. O senhor acredita que esse recurso seja inevitável no processo de apuração de notícias?

Sim, mas de maneira limitada. Acredito que, no caso de algumas coberturas muito importantes e de difícil apuração, como o Watergate [que derrubou o presidente Richard Nixon] ou o Irã-Contras [venda de armas ao Irã para financiar ajuda aos ?contras? da Nicarágua durante o governo de Ronald Reagan], as fontes anônimas sejam essenciais.

Se é assim, como evitar que esse recurso seja usado para servir aos interesses da fonte ou para publicar ficção no lugar de notícia?

Quando fui editor, impus uma regra. Eu tinha de conhecer a identidade de toda e qualquer fonte para tomar a decisão final sobre se ela seria ou não usada. Para mim o repórter tinha de revelar. Acredito que esse é um cuidado indispensável quando se recorre a fontes anônimas.

Um dos colunistas do ?Washington Post?, jornal que explorou bastante o caso Blair, escreveu que a arrogância é um mal crônico do jornalismo e que o ?New York Times? é o líder em arrogância. O sr. concorda?

Acredito que a arrogância seja um mal crônico do jornalismo, mas penso que ela afeta indivíduos em todos os jornais, e não uma Redação especificamente.

Vozes conservadoras do jornalismo norte-americano, como o ?Wall Street Journal?, apontam o caso Blair como sintoma de um mal maior na gestão Raines no ?New York Times?, que teria sido marcada por um direcionamento do noticiário à esquerda do espectro político.

Discordo com veemência. Quem diz isso -o ?Journal?- é um veículo hiperconservador, que enxerga tudo sob esse prisma político.

Como editor da sucursal de Washington do ?Times?, o sr. foi o primeiro a promover Howell Raines. Poderia descrever as características dele como jornalista?

Ele era um repórter político de primeira classe, tinha um texto excelente e enorme capacidade de analisar o noticiário.

Dizem os críticos que o temperamento autoritário de Raines alienou boa parte da Redação e foi, no final, a causa de sua queda. O sr. concorda?

Sim. A Redação estava muito descontente e se voltou contra ele na primeira oportunidade.

Como o sr. também foi editor-executivo, acredita quando dizem que é impossível dirigir uma Redação sem uma dose de autoritarismo?

Sim, por duas razões. A primeira é a pressão do horário, inerente ao jornalismo diário. Deve existir alguém com autoridade inquestionável para, em determinado momento, encerrar as conversas e discussões e decidir o que vai ser publicado -e como vai ser publicado. Até essa hora, o editor-executivo deve ser um líder e um coordenador, mas, nesse momento, ele se torna, digamos assim, um ditador. A segunda é o zelo pela obediência a padrões éticos e a obrigação de aceitar a responsabilidade para proteger a credibilidade do noticiário.”