Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Isabel Travancas

DEMOCRACIA & INFORMAÇÃO

“Mídia e democracia no Brasil”, copyright Jornal do Brasil, 22/06/03

“Mídia e política no Brasil: jornalismo e ficção Alzira Alves de Abreu, Fernando Lattman-Weltman e Mônica Almeida Kornis FGV 184 páginas R$ 32

Dizer que jornalista adora falar de jornalismo é chover no molhado. E pelos títulos que as editoras têm colocado no mercado, vários deles com muito sucesso, pode-se comprovar que o público leitor também gosta de jornalismo. Mídia e política no Brasil faz parte deste conjunto de obras sobre imprensa, ou melhor, sobre os meios de comunicação de massa. O livro reúne três trabalhos distintos, tanto nos temas tratados, quanto nos seus estilos. Trata-se de artigos produzidos por Alzira Alves de Abreu, Mônica Kornis e Fernando Lattman-Weltman, pesquisadores do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, da Fundação Getúlio Vargas, e são fruto de investigações que o grupo vêm realizando nos últimos anos.

O objetivo da obra é apresentar análises da mídia brasileira no período que vai do final da ditadura militar até o início do século 21, tendo como ponto de partida objetos específicos.

O artigo de Alzira Abreu, ?Jornalistas e jornalismo econômico na transição democrática?, aborda as relações destes profissionais com sua ocupação. Relações estas que possuem muitas particularidades, muitas especificidades. O jornalista, de um modo geral, estabelece uma relação de adesão com a sua profissão que gera um estilo de vida e uma visão de mundo particulares, que certamente influenciarão na sua construção da notícia. E esta perspectiva não descarta nem despreza a dimensão dos poderes envolvidos neste campo, como o poder político, o econômico e o empresarial, sem falar no peso do próprio leitor enquanto consumidor da notícia como um produto industrial.

A historiadora faz um levantamento histórico do nascimento das editorias de Economia na grande imprensa brasileira. Defende a idéia de que o jornalismo econômico cresceu e se desenvolveu mais durante os anos da censura por não estar sob a mira dos militares, sendo portanto naquele momento um espaço de maior liberdade e criatividade. As editorias de economia são vistas como um campo onde as disputas externas estão menos presentes e onde a margem de movimentação para os jornalistas é mais ampla.

Cabe ainda destacar que o trabalho é fruto de uma série de entrevistas realizadas pela historiadora com jornalistas que atuavam nas décadas de 60 e 70, fase em que a profissão está muito associada à militância política e principalmente a uma percepção do papel do jornalista como uma missão, tornando este um agente da transformação social. Os depoimentos sobre a escolha e a entrada nesta profissão só reforçam esta idéia.

?Ficção televisiva e identidade nacional: Anos dourados e a retomada da democracia?, de Mônica Kornis, aborda a televisão brasileira, mais especificamente a teledramaturgia, ao apresentar uma análise da minissérie Anos dourados, de Gilberto Braga, exibida em 1986. A época da exibição do programa é elemento-chave. Isso porque, para ela, a ficção, ao recorrer ao passado, está construindo um discurso sobre o presente. Assim como muitos filmes históricos, demonstram que em suas narrativas estão tratando simultaneamente de dois tempos distintos – o tempo da história e o tempo em que foram feitos -, frutos de um olhar datado; a minissérie traz também um olhar dos anos 80 sobre os anos 50. Trata-se de um olhar subjetivo sobre um período específico do passado. Um dos pontos interessantes é exatamente pensar no que está sendo enfatizado pelo diretor, pelo roteirista, pelos produtores ao narrarem aquela década no Brasil.

A minissérie fala de uma década aparentemente distante da atualidade, em que as questões políticas eram outras. Entretanto, o que ocorria no Brasil no início da década de 80, fase da chamada ?Nova República?, aparece extremamente sintonizado com o otimismo desenvolvimentista dos anos 50. O programa é exibido em uma fase em que há um clima de pós-ditadura militar, de retomada da democracia, enquanto a década de 50 tem Juscelino Kubitschek como figura política paradigmática do crescimento do país. É a partir deste viés que a autora descreve e analisa o programa, que tem como matrizes o melodrama e o folhetim, reforçando o aspecto sedutor destas narrativas, ainda que impregnadas de uma concepção realista.

O terceiro e último ensaio do livro, de autoria de Fernando Lattman-Weltman, ?Mídia e transição democrática: a (des)institucionalização do panóptico no Brasil?, procura investigar a mídia a partir da premissa de que ela é a instituição mais decisiva na construção do exercício da cidadania no Brasil pós-ditadura. Para isso Weltman apresenta ao leitor um panorama histórico dos meios de comunicação no Brasil, dando destaque aos acontecimentos que expressam a inserção política destes meios desde a ditadura até as últimas décadas do século 20.

Após estabelecer um paralelo entre a história política recente do país e a imprensa, o pesquisador afirma que a intervenção política dos meios de comunicação mudou, sendo hoje muito mais complexa e institucionalizada. A noção de accountability, entendida principalmente como a prestação de contas das pessoas públicas aos seus eleitores, é elemento-chave para a compreensão da democracia moderna. E os jornalistas têm um papel ativo como intermediários ou, como salienta o cientista político, como corretores de discursos públicos, já que um dos problemas decorrentes desta perspectiva de accountability será o chamado ?denuncismo?. Nesta prática, o jornalista primeiro noticia, depois apura em profundidade, gerando danos individuais e colocando em risco a própria noção de representação democrática.

Um ponto fundamental é a relação que se estabelece entre as transformações da mídia no Brasil e a história do país, o que sem dúvida ajuda a elaborar uma reflexão que, longe de ?demonizar? os meios de comunicação de massa, prática muito corrente em trabalhos intelectuais, procura compreender este fenômeno rico e complexo e hoje inseparável das sociedades complexas modernas.

Mídia e política no Brasil é uma obra estimulante para se entender o papel dos meios de comunicação de massa no Brasil no fim do século 20 e uma boa fonte de informação para estudantes de comunicação, jornalistas e estudiosos da indústria cultural no país.”

“A difícil virtude da independência”, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 20/06/03

“O XIS DA QUESTÃO – Por enquanto, o que temos são redações dirigidas pelos donos dos jornais, ausência total de comissões de redação, comissões sindicais de Ética sem função e sem idéias. Somos uma democracia que não protege o direito à informação, em relação ao qual a independência jornalística seria o mais importante aval.

1. Sonho possível

Imaginemos que as relações de poder entre a redação e a empresa, em algum dos grandes jornais diários brasileiros (poderia ser a Folha de S.Paulo, por exemplo, ou qualquer outro, mas chamemo-lo de jornal ?X?), estivessem assim estabelecidas, por acordo documentado e formalizado, para os devidos efeitos legais:

Artigo 1 – O presente Estatuto ordena as relações profissionais da Redação do jornal ?X? com a Direção do mesmo e a sociedade editora, independentemente das relações sindicais e de trabalho.

Artigo 2 – Para os efeitos deste estatuto, se consideram membros da Redação todos os jornalistas, à margem da titulação que possuam, que realizem tarefas de redação (…) ao menos com seis meses de antiguidade. (…)

Artigo 3 – (…) os princípios ideológicos da publicação do jornal ?X? se condensam nos seguintes termos:

– O ?X? é um jornal independente, nacional, de informação geral, com uma clara vocação latino-americana, defensor da democracia, pluralista segundo os princípios liberais e sociais, que se compromete a guardar a ordem democrática e legal estabelecida pela Constituição. Dentro desse compromisso, acolhe todas as tendências, exceto as que propugnam a violência para o cumprimento de suas finalidades.

– ?X?se esforça por oferecer diariamente uma informação veraz, o mais completa possível, interessante, atual, de alta qualidade, de maneira aajudar o leitora entender a realidade e a formar o seu próprio critério.

– ?X? rechaçará qualquer pressão de pessoas, partidos políticos, grupos econômicos, religiosos ou ideológicos que pretendam colocar a informação a serviço dos seus interesses. A independência e a não manipulação das notícias são uma garantia para os direitos dos leitores, cuja salvaguarda constitui a razão única do trabalho jornalístico. (…)

Artigo 4 – A mudança substancial da linha ideológica de ?X?, manifestada por atos reiterados, será motivo para qualquer membro da redação, que se considere afetado em sua liberdade, honra ou independência profissional, possa, sem pré-aviso, invocar cláusula de consciência e, no seu caso, dar por rompida e extinta a sua relação trabalhista com o jornal. O Comitê de Redação, a pedido do interessado ou da sociedade editora, mediará o conflito (…). Se se produz o acordo, a sociedade editora indenizará o jornalista em quantia nunca inferior à máxima que, segundo a lei ou prática judicial, corresponde ao direito trabalhista de demissão sem justa causa.

Igualmente poderá alargar-se a cláusula de consciência, com os efeitos jurídicos derivados deste Estatuto, quando a algum membro da redação se imponha a realização de algum trabalho que o mesmo considera que viole os princípios ideológicos do jornal e violente sua consciência profissional.

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Utopia? Sonho? Maluquice?

Na realidade brasileira, talvez. Mas os trechos colocados em itálico são transcrições de um documento real, que existe e vigora no jornal El País, de Madri: O Estatuto da Redação, estabelecido em Junho de 1980, por acordo entre o Conselho de Administração da sociedade editora, pela Junta dos Fundadores do jornal, pela Junta Geral dos Acionistas da empresa editora e pelo Conselho de Redação.

Objetivo do acordo: estabelecer parâmetros e mecanismos de proteção à independência da redação do El País.

Se existe lá, por que não no Brasil? Portanto, temos aí um sonho possível também para a grande imprensa brasileira. Mas, até chegarmos lá, teremos de aperfeiçoar, e muito, as convicções e as práticas democráticas, em nosso país. Porque a independência das redações, quando vier, ou se vier, será por conquista da sociedade, não dos jornalistas. Por enquanto, o que temos são redações dirigidas pelos donos dos jornais, ausência total de comissões de redação, comissões sindicais de Ética sem função e sem idéias. Somos, por enquanto, uma democracia que não protege o direito à informação, em relação ao qual a independência jornalística seria o mais importante aval.

2. Um equívoco chamado imparcialidade

Muito haveria o que escrever sobre independência, como virtude jornalística. Mas sintetizo o que penso, na reprodução de um texto que recentemente escrevi e que circula por aí, motivando debates em alguns cursos de jornalismo. Ei-lo:

Tempos atrás, ao gravar depoimento para um vídeo sobre comunicação institucional, quase escandalizei os entrevistadores ao rejeitar a crença generalizada de que o jornalismo deve ser imparcial. Olhos esbugalhados, exclamaram eles: ?Como?!?

Tive de me esforçar para sustentar uma outra crença, menos generalizada, mas que é a minha: a palavra-chave da confiabilidade do jornalismo não é imparcialidade, mas independência, sem a qual é impossível fazer jornalismo crítico e honesto. (…)

O que os estatutos editoriais europeus se propõem preservar, em preceitos como o da cláusula de consciência, é a independência no agir profissional, não o comportamento moral da imparcialidade – e nisso está a importância maior desse mecanismo que a cultura jornalística da Europa produziu como forma de assegurar às redações a capacidade de serem independentes, em relação às empresas e ao poder político.

A imparcialidade é a virtude que dá, a quem a possui, a capacidade de olhar e avaliar, com neutralidade, os fatos e as ações dos respectivos intervenientes. Trata-se de virtude talvez importante para algumas profissões e circunstâncias, até por implicar certa noção do que é justo e reto. Mas é também a virtude de quem não toma partido em conflitos, submisso, portanto, ao que pode ser entendido como o dever da indiferença.

Se a objetividade, como tantos querem, fosse no jornalismo uma estratégia possível, ou mesmo desejável, a imparcialidade seria, sem dúvida, virtude essencial. A meu entender, porém, a objetividade não faz parte do método jornalístico. O que integra o método jornalístico é a precisão, ingrediente da honestidade intelectual, tão importante no observar e no registrar da materialidade dos fatos, quanto na escolha subjetiva de critérios e razões para as depurações narrativas.

Além do mais, como ser imparcial diante da fome, do desemprego, do desamparo social, do analfabetismo, da roubalheira, do uso abusivo das benesses do poder, dos conceitos e preconceitos que esmagam minorias e excluídos?

De pouco serve, pois, essa virtude a um ofício, o jornalismo, inexoravelmente submetido à obrigação discursiva de recortar, valorar, mostrar e exaltar o mais relevante no dito e no acontecido. E ao mais relevante se chega pela subjetividade de escolhas e ajuizamentos de quem exerce o ofício, não pelas ruelas simétricas e frias da objetividade imparcial – coisa tão inexistente quanto indesejável.

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Resta pedir desculpas pelo tamanho final da coluna, esta semana. Prometo sensatez no próximo texto.”

“A verdade é pública”, copyright Jornal do Brasil, 22/06/03

“A função da mídia numa democracia é a de informar e contribuir para a formação da opinião pública. Quanto menos informação, menos diversificada e menor a participação da grande massa da população na constituição da opinião pública, menos democrático um sistema político.

A mídia brasileira participa desse processo, porém carrega uma grande contradição. Num país em que as outras instâncias formadoras de opinião são débeis – sindicatos, universidades, movimentos sociais, partidos -, recai sobre a imprensa um peso determinante na constituição da opinião pública. No entanto o caráter privado de grande parte das empresas de comunicação introduz uma contradição, porque como empresas privadas elas repousam no lucro e este não provém, no essencial, da venda, e sim dos anúncios – privados e governamentais -, fazendo recair a questão do financiamento da mídia nas mãos das agências de publicidade e, através destas, nas grandes corporações econômicas e nos governos, responsáveis por grande parte das publicidades.

O peso da venda dos jornais em bancas e das assinaturas é relativamente menor, diminuindo a importância que os leitores poderiam ter.

A crise econômica vivida atualmente pelas grandes empresas de mídia brasileiras – correlata à de outros países – somente aprofunda essas contradições, porque os apoios possíveis podem vir dos governos e/ou dos bancos. Nenhum deles permite acentuar o caráter independente da mídia, seja pela benevolência que pode suscitar em relação a governos, seja pela falta de liberdade para criticar o maior obstáculo atual para o Brasil se tornar um país justo – a especulação financeira, em que o sistema bancário tem um papel central.

A modalidade atual de financiamento da imprensa não funciona ou funciona mal e atenta contra a independência dos seus órgãos. Até mesmo a mais bem-sucedida experiência de TV pública no país, a TV Cultura, foi entregue à roda-viva das agências de publicidade e hoje definha. Enquanto isso, o que poderia ser uma alternativa ou um complemento – a imprensa alternativa – esbarra em obstáculos similares de inviabilidade econômica, além do boicote na distribuição.

O apoio que pode resgatar a mídia não provém do setor público nem do privado – no sentido mercantil que esse termo assumiu no neoliberalismo. As alternativas têm que vir da democratização do próprio sistema político, de que a imprensa deve ser parte integrante. Somente se a cidadania organizada puder opinar sobre o destino dos recursos públicos, é que será possível reformar profundamente o atual sistema de financiamento das empresas de mídia. O resgate democrático da mídia reside assim no fortalecimento da esfera pública.

Se se aprofundar a financeirização da economia, a mídia será irremediavelmente arrastada nesse turbilhão. Se, ao contrário, um vendaval democrático colocar o Brasil no caminho da mudança e da prioridade do social – conforme os votos da grande maioria há apenas oito meses – a informação e a construção de uma opinião pública democrática poderão contar com a mídia, atualmente numa crise da qual sairá obrigatoriamente com outra cara. Lutemos para que seja melhor, para os jornalistas, para os leitores e para os que precisam da verdade e sabem que ela não nasce dos interesses mercantis, mas somente do seu caráter público.”