Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A síndrome de big brother

GLOBO & PROPINODUTO

Paulo Roberto de Figueiredo (*)

O que parecia ser uma fútil, inútil e idiota moda televisiva de invasão consentida de privacidade está agora ganhando novos contornos e dimensões preocupantes. A histeria coletiva entregava-se, frente à "caixinha mágica", aos delírios de grupos de pessoas convivendo com situações e condições que em nada, absolutamente nada, serviam de exemplo para uma sociedade sadia e usuária de qualquer capacidade ou estrutura social minimamente sábia. Mas, para os idealizadores daqueles festivais de boçalidades, os efeitos começam a prosperar, se a intenção era transformar a sociedade, ou grande parte dela, num bando de tontos.

E, antes que se tirem conclusões contaminadas pela ditadura televisiva a respeito do que escrevo, devo salientar que não tenho amizade, interesses sociais ou financeiros com quaisquer dos personagens que citarei a seguir. Digo mais, nunca os vi pessoalmente ou com eles troquei palavras. E, embora não tenha sido atingido pessoalmente, pelo que exporei, o faço porque me sinto profundamente agredido como individuo social. E quando se tem pelo menos um pouquinho de sentimento do que seria uma sociedade saudável, qualquer agressão às regras que a regem atinge igualmente a cada um dos seus indivíduos; um indivíduo atingido, toda sociedade é ameaçada. É como disse Jean Paul Sartre: "A injustiça feita a um é ameaça feita a todos".

Há poucos dias assisti estarrecido a esta nova versão do big brother; não mais aquela de natureza caramutanje, mas, agora, insidiosa e solerte. Repórteres das mais variadas emissoras de rádio e TV espalharam seus microfones numa sala de um Tribunal de Justiça, onde acontecia audiência com alguns dos envolvidos do chamado caso Propinoduto, assim batizado pela mídia. Com aparelhos microfônicos de alta capacidade de captação, os profissionais da Rede Globo tiveram acesso às palavras de um advogado ditas, diga-se, a bem do entendimento, de modo discreto ao cliente.

Foi o quanto bastou para que se formasse o maior escândalo. Seguiu-se uma verdadeira caça às bruxas, com várias edições em vários telejornais, utilizando-se para tal a orientação dada pelo advogado a seu cliente, repito, discreta e particularmente. Nego-me a discutir se a orientação era de cunho ético, ilegal, imoral, amoral etc. Isto não invalida a grave invasão de privacidade praticada pela Rede Globo. Isto, sim, deveria ser o grande objeto das preocupações. Mas os "tontos" seguiram o caminho proposto pela ditadura midiática e passaram a discutir exatamente o assessório ilegal e de mau gosto, em detrimento do principal.

E o caso Banestado?

Não sou advogado, nem conheço o estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, mas conheço algo muito maior, que é a minha dignidade de cidadão. Sei também que, segundo o que dispõe a Lei n? 8.906/94, o Estatuto da Advocacia e a Ordem dos Advogados do Brasil, em seu art. 7?, são direitos do advogado, entre outros, ter respeitados, em nome da liberdade de defesa e do sigilo profissional, a inviolabilidade de seu escritório ou local de trabalho, de seus arquivos e dados, de sua correspondência e de suas comunicações, inclusive telefônicas ou afins, e de comunicar-se com seus clientes, pessoal e reservadamente, ainda que considerados incomunicáveis. Se tanto não bastasse, garante a Constituição Federal em seu art. 5?, que trata dos direitos e garantias fundamentais, em seu inciso X, que são invioláveis e intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas.

E ressalto que a tal Ordem e outras, bem como seus representados, existem para servir a este sentimento de dignidade social, sem a qual reinaria o caos. E o comportamento da Ordem dos Advogados diante deste episódio foi degradante e infame, não só em relação a seu filiado, mas perante o sentimento social de garantia de direito. Este meu sentimento de estado de direito foi aviltado, e por isso minha indignação. Os atingidos pela escuta clandestina da Rede Globo e sua posterior divulgação com alarde não foram só o advogado e seu cliente; fomos todos nós, pois a ameaça de perda de privacidade pairou sobre toda a sociedade.

Será que os "tontos" que estão referendando o direito da Rede Globo assim proceder, e o pior, assim "comandar" e impor seu "estado de direito", já pararam para analisar o monstro que estão criando? Se cada cidadão não tiver resguardado seu direito sequer à privacidade, um big brother monstruoso nos espreita para fazer de nossas vidas o que bem entender, sob a complacência dos que deveriam zelar pelo nosso "direito".

Sobre este assunto, vejam o que disse um amigo, respeitável promotor de Justiça e professor de Direito Penal:


"Não há dúvidas de que há veementes indícios e provas de que os fiscais acusados tenham praticado a conduta criminosa pelas quais estão sendo processados e devem ser rigorosamente punidos se provada sua culpa. Mas permitir-se que o Estado viole o estado de direito e desrespeite as garantias legais, ou com isso compactue, é agir de maneira muito mais infame, perigosa e abrangente que os próprios acusados que se quer punir. Qualquer punição só terá valor e eficácia se legalmente aplicada. Há que se discutir, sim, a atitude da equipe de jornalistas que em tese violou gravemente garantias legais, podendo até ter praticado crimes de imprensa.

A grande imprensa faz campanha agressiva para a criação de um controle externo do Judiciário, mas se revolta quando se quer estabelecer o controle externo da imprensa, procurando obstar a tramitação de projeto de Congresso que estabelece sério controle e responsabilização à atividade. Tudo tem limites e acarreta responsabilidades. Como exclamou o advogado vilipendiado no seu livre exercício profissional, a OAB, tanto de seu estado como nacional, deveria se levantar na sua defesa e na das garantias violadas escandalosamente e não desvirtuar o debate crucificando-o e desconhecendo a conduta do órgão de imprensa."


E, para finalizar, e demonstrar que esta rede (ou será trama?) faz o que quer, basta observar que a veiculação de notícias não obedece a critérios dignos. Por acaso algum dos "tontos" viu, ou ouviu, alguma notícia, uma frase sequer, nesta mesma rede, a respeito das contas CC-5 do Banestado? Este assunto não interessa, ou o interesse é muito grande para não vir a público?

(*) Bacharel em ciências sociais