Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Participação política ou opinionismo?

EQUÍVOCOS DO LEITOR

Vera Silva (*)

A ética pública é determinada pela ética do ocupante da função pública somada à ética da voz da rua. Certo? Não. Não existem muitas éticas, existe apenas a Ética. Os costumes é que são múltiplos. O hábito de considerar que os costumes podem desobedecer à Ética é o causador da perda dos valores ou, se quiserem, das referências comportamentais de uma sociedade ou Estado. Pois, embora múltiplos, não podem ferir a Ética.

Vamos usar o texto em destaque para analisar como isso está ocorrendo nos dias de hoje no Brasil, fazendo com que o cidadão(ã) confunda participação política com opinionismo ? ou interatividade, se quiserem.


Cartas dos leitores de O Globo

Data: 10 de julho de 2003

Subtítulo: Diplomata demitido

Conteúdo: Não consigo entender o Judiciário quando determina o pagamento de uma indenização de R$ 955 mil a um diplomata demitido nos anos 70 por motivos políticos. Ele tem direito, sim, de ser reintegrado à função, mas quem tem de pagar a conta da indenização não é o povo, e sim quem o demitiu. Este foi um ato administrativo e autoritário praticado por ocupante de cargo público. Um país onde falta dinheiro para saúde, ensino, saneamento não pode se dar ao luxo de pagar indenizações milionárias a apenas um injustiçado. E quanto aos outros milhões de injustiçados que ficam em filas de hospitais aguardando atendimento?

Autor: um leitor do Rio, por e-mail


O leitor de O Globo começa afirmando que não consegue "entender" uma decisão do Judiciário. Ora, perguntamos: decisões do Judiciário precisam ser compreendidas ou precisam ser justas? Quando o cidadão(ã) argüi a Justiça deve fazê-lo com conhecimento da lei e da adequação do seu pleito à lei. O que temos visto e lido continuamente nos últimos tempos é que se espera que a Justiça concorde com a nossa opinião para que a julguemos justa. Então, para nós, nos dias de hoje, justo é aquilo que é feito segundo os nossos desígnios.

Esta é a primeira submissão da Ética aos costumes, e a responsável pela perda dos fundamentos de organização do Estado que levam um povo a retornar à barbárie.

O leitor continua sua argüição dizendo que não é o povo brasileiro que tem de pagar a indenização, mas quem o demitiu, pois o ato foi praticado por ocupante de cargo público. Ora, se o ocupante de cargo público agia em nome do Estado, o responsável pelos seus atos é o Estado brasileiro; portanto, quem tem que pagar é o povo, pois o governo representa o povo.

O leitor, ao mesmo tempo que critica, confirma a responsabilidade do Estado. Qual é a razão da crítica então? Estaria ele dizendo que os erros do Estado devem ser assumidos pelo representante do Estado? Que a ação do representando do Estado é sempre isolada do Estado e que não cabe ao Estado e às chefias fiscalizarem seus representantes? Estaria ele dizendo que o Estado é uma entidade incorpórea, inexistente, irresponsável pelos atos dos cidadãos(ãs) que o constituem? Estaria ele dizendo que o Estado não existe? Que o governo representa um grupo da sociedade apenas?

Ou monarquia ou responsabilidade

Como vemos, uma bruta confusão parece estar instalada na cabeça do(a) brasileiro(a). Mas o leitor continua dizendo que, num país cheio de falta de dinheiro, não se pode pagar indenização milionária a apenas um injustiçado. O que significa isto? Estaria o leitor dizendo que a justiça do cotidiano ? as ações justas ? não deve ser buscada senão quando houver justiça no todo? Como então se chegar a um Estado justo?

A partir deste argumento é possível entender a confusão instalada na cabeça de muitos com a ações do governo Lula: parece que o presidente crê na justiça cotidiana e uma grande parte do povo brasileiro, incluindo muitos petistas, crê na justiça apenas ideologicamente. Isto é, a crença na justiça é um ato de fé; se creio, estou salvo, sou justo, minha fé me salva, não são necessárias obras justas. Está explicada a famosa Lei da Vantagem.

A argumentação do leitor é interessante porque é comum nos últimos tempos, no Brasil, que nos comportemos como um povo que vive sob duas formas de governo simultaneamente: democracia e monarquia. Vejamos o porquê.

Na monarquia não-constitucional, espera-se que o imperador cuide do povo, administre o estado, dê casa, comida, escola e médico e cobre impostos baratos para fazer isso. O imperador não presta contas, não ouve ninguém, no máximo aconselha-se com alguém. O imperador não é eleito nem escolhido entre os mais justos, ele herda a função de seu pai, ou de sua mãe. Se for ruim, o jeito é esperar que morra e dar vivas ao novo imperador. Quando o leitor reclama do tamanho da indenização e do fato de ser paga pelo povo, ele diz que, se o imperador errou, ele deve pagar. Quando reclama de não ter pão, remédio, escola, ele diz que o imperador não está cumprindo seu dever de cuidar do povo.

Na democracia o governante eleito deve prestar contas ao povo que o elegeu e ouvir seus representantes ? os parlamentares também eleitos pelo povo. Quando houver querelas, devem ser dirimidas pelo juiz. Quando reclama da justiça, esquece que as leis foram feitas pelos representantes que ele elegeu, que os juízes são concursados pelas leis que seus representantes fizeram, que os juízes dos tribunais superiores foram designados pelos governantes que ele elegeu. Democracia pressupõe responsabilidade e participação política do povo. Pressupõe conhecimento da máquina do Estado. Democracia não é voto por sufrágio universal, é participação. Fora isto é tirania disfarçada, é bagunça política.

Pelo visto, muitas e muitas águas vão rolar até que nós, os brasileiros, decidamos entre as duas formas de governo: ou assumimos realmente a responsabilidade sobre o Estado ou restauramos a monarquia.

(*) Psicóloga em Brasília