TELEJORNALISMO EM CLOSE
Paulo José Cunha (*)
Esta não vale para os coleguinhas de televisão. Só para quem não conhece muito bem a rotina de produção de telejornalismo. Vamos lá, responda aí: em média, quantas fitas beta de 30 minutos são gravadas para realizar uma reportagem dessas de dois minutos, no máximo de três, que saem todo dia no Jornal Nacional da Globo?
Ouvi alguém falar uma? Errado. Quem foi aí que falou meia fita, quinze minutos de gravação? Errou também. Você aí atrás, você de camiseta azul, parabéns, você acertou: a média é de uma fita e meia a duas fitas, ou seja, de 45 a 60 minutos de gravação.
E pode acreditar: esses 45-60 minutos se convertem nos magros dois a três minutos de material editado, notícia que efetivamente vai ao ar, composta, no mínimo, por alguns offs (off é quando o repórter fala mas não aparece, e tem a voz coberta por imagens ou gráficos), passagem do repórter falando, entrevistas e "sobe som" (quando, por exemplo, se edita um pedaço de discurso do presidente Lula dizendo que vai aprovar as reformas nem que a vaca tussa).
Surpreso, leitor? Pois é assim mesmo que a coisa funciona: grava-se muito, corta-se idem, aproveita-se apenas o filé. Tal como um açougueiro que vai retirando pelancas e adiposidades, ossos e nervuras até deixar o filé bem limpinho, trabalham repórteres e editores de televisão. Ou deveriam trabalhar. Uma das mais nobres e difíceis tarefas de um bom repórter é selecionar o que considera deva ser o seu filé, o que efetivamente merece ir ao ar. Vez por outra a faca dos açougueiro resvala e lá se perde uma fatia suculenta de filé para a cesta de rejeitos.
Igualmente, vez por outra, o editor ou repórter, por desatenção, equívoco, omissão, autocensura, acatamento a decisão superior, limitação de tempo, ou em respeito às normas editoriais da casa, deixa de aproveitar um filé de informação. Faz parte do show. Se todo repórter pudesse botar no ar a íntegra do que grava para a produção de uma matéria, teria de contar, no mínimo, com dois jornais nacionais por dia, só pra ele. Se a gente considerar que todo processo de edição é subjetivo (começa pela pauta, passa pela escolha das imagens e palavras, e termina na montagem) vamos concluir que o conceito de enquadramento é um dos mais importantes na produção jornalística em geral, especialmente na televisão, onde impera a feroz ditadura do tempo.
Faro e índole
Bom profissional é (ou deveria ser) quem sabe enquadrar direito a realidade. Até porque o enquadramento é inevitável. Sem descer à velha discussão sobre se a imprensa reproduz ou constrói a realidade, vamos dizer, apenas, que é das pessoas que definem a fatia de realidade a ser mostrada, do modo como essa realidade é enquadrada e sob quais critérios se realiza esse recorte, que se constrói o imaginário e a opinião pública.
Quer dizer: a responsabilidade da moçada que segura a latinha pra falar, do cinegrafista que aponta o tubo e aperta o disparador e do camarada que pega tudo isso, separa, corta e recorta, depois arruma numa certa ordem e bota no ar pra gente assistir em casa ? é muito, muito grande. Tão grande que, só por isso, já se justificaria plenamente a existência das escolas de Comunicação, onde se deveria aprender, pelo menos, a enquadrar da melhor maneira possível a realidade. Tarefa que não é pra qualquer um, pois requer o conhecimento não só de um conjunto de técnicas (de resto fáceis de se aprender em qualquer cursinho do Sesc), mas, sobretudo, de conceitos relacionados à ética profissional.
Um jornalista que escreva mal e fale mal mas tenha uma preocupação permanente com a ética é bem menos perigoso do que o boa pinta de voz melodiosa e belo texto, mas descompromissado eticamente com a profissão. As escolas de Comunicação, exatamente por isso, têm um papel fundamental nesse processo, pois podem até não moldar o caráter de ninguém (nem existem pra isso) mas, pelo menos, servem para chamar a atenção sobre a enorme responsabilidade que terão seus alunos quando ingressarem no mercado. Ética jornalística é apenas ética, alguém já disse. Sem uma instância de formação que se preocupe em chamar a atenção dos futuros profissionais de imprensa e eles poderão até exercer eticamente suas funções. Tudo bem, até porque quando não existiam escolas de comunicação era assim que acontecia.
Mas, convenhamos, vai ser muito mais pelo faro ou pela boa índole de cada um. Um dono de jornal ou de TV com um mínimo de preocupação com o produto final que vai colocar nas bancas ou levar ao ar não deveria ter a menor dúvida na hora de contratar seus profissionais. Os melhores são os egressos daquelas faculdades onde, além de aprender a segurar um microfone, aprenderam sobretudo que é preciso estar permanentemente atento à repercussão que cada palavra levada ao ar poderá ter sobre a honra das pessoas e a imagem das instituições envolvidas, assim como o impacto de cada uma delas na construção do imaginário e na formação da opinião pública.
(*) Jornalista, pesquisador, professor da professor da Faculdade de Comunicação da UnB. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Close", coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <pjcunha@unb.br>