Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Efeitos da escravidão na produção científica

ATRASO BRASILEIRO

Ulisses Capozzoli

No dia da abertura da 55? Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), desta vez em Recife, O Estado de S. Paulo publicou, no domingo, duas páginas tratando do "desafio de fazer ciência no Brasil".

É uma iniciativa que merece alguma comemoração, mas acompanhada de reflexões.

Por que ainda continua difícil fazer ciência no Brasil?

A resposta pode ser ampla e complexa, ou simples e direta, dependendo da abordagem. Vamos considerar a segunda alternativa e, com ela, fazer um esforço para alguma reflexão.

A dificuldade de se fazer ciência no Brasil está ligada a uma mentalidade não científica, reflete um determinado "substrato mental", para usar a expressão de Shozo Motoyama, físico e historiador da ciência da Universidade de São Paulo.

Esse "substrato mental" foi produzido historicamente e, na sua raiz, tem uma forte interação com a escravidão que, formalmente, esteve em vigor até o 13 de maio de 1888. Informalmente, ainda não terminou, como havia previsto Joaquim Nabuco em seus escritos sobre o abolicionismo.

Uma sociedade escravista, ao menos em princípio, não necessita de ciência e tecnologia, pois toda a força produtiva de que necessita, numa concepção desumana e inviável do mundo, está apoiada em braços escravos.

Os negros de ganho, escravos que deveriam obter rendimentos para seus senhores, em tarefas como vendedores de doces ou equivalentes, uma deformação no interior de uma aberração, sobrevivem no atual sistema de transporte, como observa Rogério Furtado.

Um motorista de táxi de uma empresa, substituta do antigo senhor, deve rodar por horas a fio para poder pagar a taxa diária e, só depois disso, obter ganho para seu próprio sustento.

São muitas e diversas as marcas evidentes do escravismo entre nós. A irracionalidade é uma delas.

Em seus escritos, José Bonifácio de Andrada e Silva demonstra claramente essa situação.

Personagem ainda desconhecida no Brasil, tanto por seu porte como cientista e intelectual como pelo desejo frustrado de se construir aqui uma nação desenvolvida socialmente, José Bonifácio acalentou a possibilidade de, entre outras referências, como a do fazer científico, valorizar-se a dignidade humana, algo incompatível com o escravismo.

Numa cena envolvendo a descarga de um navio inglês, de onde escravos retiram louças e têxteis e embarcam açúcar, o exemplo dessa irracionalidade. Uma simples parelha de burros puxando um carroção, observa José Bonifácio, reduziria em muito o trabalho humano e racionalizaria essas atividades. Mas quem se importava, ou se importa, com isso?

O papa abençoou o tráfico escravo e há alguns anos João Paulo II pediu perdão por tudo isso. O escravismo, historicamente, ao menos a partir do século 16 (na sua versão contemporânea), tem conotações fortes com o poder religioso. Mas essa é uma questão que nos desvia um pouco dessa tentativa de alguma reflexão.

Mas, se a irracionalidade é parte da concepção escravista de mundo e se esse "substrato mental" está presente no Brasil do século 21, por que a surpresa com a falta de critério, o desperdício de talentos, de esforço e de investimentos, que o material produzido pelo Estadão traz?

Evidente que se trata de uma iniciativa digna de uma pequena comemoração, essa do Estadão, uma vitória de um reduzido grupo de repórteres do jornal empenhados em fazer bom jornalismo científico.

Problemas começam em casa

Mas as dificuldades, neste caso, também estão dentro da redação, sob o bigode de seus dirigentes.

Pensar em produção de ciência dissociada de sua divulgação na sociedade é ter uma visão equivocada do fazer científico. A opinião pública ainda é o melhor instrumento de pressão para a mudança de comportamentos irracionais, como a apontada pelo jornal. É de se perguntar, então, por que o Estadão não dispõe de um suplemento especializado em ciência, quando tem cadernos de turismo, televisão, informática e agricultura?

A resposta conduz ao mesmo ponto onde o jornal localiza desestímulo à pesquisa científica. Há uma certa tradição entre o pensamento conservador de que ciência é importante sim, mas não tanto como economia e política, como se esses fatos pudessem ser vistos de forma compartimentada.

É o que se pode chamar de analfabetismo científico, expressão desconfortavelmente dura e que deve trazer incômodo como forma de não ter continuidade.

O analfabetismo científico traduz uma incapacidade de se pensar a ciência como instrumento não apenas de produção de bens materiais, mas de suporte indispensável para alimentar a inteligência crítica e assim se construir uma imagem nova do mundo, livre da memória, no sentido de certo condicionamento histórico.

Bohm, Einstein e o Brasil

Um escrito capaz de sensibilizar para a dramaticidade dessa situação, referindo-se a acontecimentos de meio século, está em Bohm, "Einstein e a Ciência no Brasil", do físico e historiador da ciência Olival Freire Jr, no livro Einstein e o Brasil (Editora UFRJ, 1995, Ildeu de Castro Moreira e Antonio Augusto Passos Videira, organizadores).

Bohm (1917-1992), amigo de Einstein, desenvolveu trabalhos importantes envolvendo comportamento de elétrons em metais, oscilações em plasma e numa interpretação não convencional da mecânica quântica, a física do universo subatômico.

Bohm chegou ao Brasil em novembro de 1952, fugindo do macartismo nos Estados Unidos e aqui interagiu com nomes como Mário Schenberg, Abrahão de Moraes, Jayme Tiommo e José Leite Lopes, além de contatos, embora sem produzir trabalhos, com o físico e filósofo da ciência argentino, Mario Bunge.

Numa carta endereçada a Einstein, com data de 3 de fevereiro de 1954, Bohm faz considerações surpreendentemente atuais: "se o senhor conhecesse melhor o governo brasileiro não perguntaria por que não foi feito um esforço para incentivar os estudos avançados. O que caracteriza esse governo é uma incrível e absoluta corrupção, de tal intensidade que mesmo um norte-americano dificilmente imaginaria antes de vê-lo de perto. Do topo à base, todos aceitam propinas. Por 25 cents pode-se subornar um guarda comum e por US$ 50 mil um funcionário de alto escalão. A corrupção permeia toda a classe média. Todos os empresários pagam de 20% a 30% de seu lucro em forma de propinas. Mesmo quando uma pessoa não participa diretamente desses atos desonestos, é afetada indiretamente. Absorve-se a filosofia generalizada de que ?com dinheiro tudo se arranja?. Ela também não tenta realizar um bom trabalho. A ênfase é para se conseguir uma posição permanente com salário garantido".

A carta é longa e não tem como ser reproduzida aqui. Os governos podem até mudar, o que de fato aconteceu, mas a inércia do "substrato mental" é poderosa o suficiente para não ser revertida em curto espaço de tempo.

Mergulhar na história da ciência no Brasil, passando, por exemplo, pela resistência de Emmanuel Liais em introduzir astrofísica no então observatório imperial (atual observatório nacional) dá uma medida do desastre de um Positivismo rasteiro entre nós, herança que também não foi toda atirada ao lixo.

Não é nada surpreendente que o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) esteja se ressentindo de recursos humanos e infraestrutura material capaz de dar conta de suas obrigações envolvendo novas patentes. Ou que o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) leve meses para deferir um pedido de importação de material para desenvolvimento científico. Essas instituições, apesar do papel estratégico que teoricamente devem cumprir, na prática, por muitas e diferentes razões, estão aquém das necessidades e expectativas. Precisam ser profundamente reformuladas, mas aí aparecem as resistências.

Não respondem pela função que deveriam desempenhar num mundo globalizado, conectado por um sistema de vasos comunicantes que reage com extrema velocidade às alterações de temperatura e pressão dos interesses econômicos alimentados pelo conhecimento científico. Mas isso tudo é desesperadoramente burocrático, lento e irracional.

O Brasil, segundo dados utilizados pelo Estadão produz 1,55% da ciência mundial. É pouco, comparado ao porte econômico, população e especialmente localização geográfica. Boa parte dos trabalhos que integram esse 1,55% está relacionada a questões típicas de regiões tropicais, de doenças endêmicas à potencialidade agrícola.

Mas, ainda assim, os avanços de hoje estão relacionados a iniciativas tomadas há meio século, como a criação do próprio CNPq como agência de fomento à pesquisa. Depois vieram as Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs) e, entre outras, em meados dos anos 60, a criação da pós-graduação para a formação de novos pesquisadores.

O trabalho do Estadão retoma o desperdício de se formar novos pesquisadores e, em seguida, deixá-los sem trabalho por falta de uma política clara e determinada envolvendo educação e pesquisa. Nada de novo, apesar de muito discurso em contrário.

Quanto à resistência dos empresários em desenvolver pesquisa, o trabalho publicado pelo jornal traz um exemplo sintomático de comportamento "pragmático" por parte de uma usina de açúcar e álcool. Certamente, não é por mero acaso, que o Brasil iniciou seu sistema produtivo vinculado ao mercado internacional com a produção de açúcar. Essa foi a atividade que alimentou o tráfico escravo. E não há razões para muito otimismo quanto à possibilidade de que as mentalidades, nessa área, tenham passado por transformações radicais.

Como se vê (e aqui poderíamos retomar Bunge e seus escritos sobre produção de ciência nos países subdesenvolvidos como forma de mudar as consciências, além de produzir bens) quase tudo é uma questão de mentalidade, de "substrato mental".

Talvez, uma reflexão mais contemporânea sobre o papel da ciência na sociedade e os compromissos dos meios de comunicação com um processo de sensibilização para as perspectivas da ciência, seja produtivo para alterar, definitivamente, essa situação.

Críticas e observações esparsas podem contribuir muito pouco para uma nova perspectiva do futuro.