Thursday, 19 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Resto de liberdade

Não há razões maiores para espantos, ante o projeto encaminhado pelo governo ao Congresso, no tocante à criação do Conselho Federal de Jornalismo, destinado a ‘fiscalizar’, ‘disciplinar’ e ‘orientar’ a atividade jornalística. Por outro lado, a ausência de espanto não se confunde com falta de indignação, o que exige, portanto, mobilização de todos os setores que julguem a medida como ameaça ao que sobra de liberdade no mundo contemporâneo cujo destino – ao que parece – sinaliza novo ciclo de ‘medievalização’, inspirado pelo princípio da lógica binária, principalmente a partir do 11 de Setembro. No Brasil, não há sequer o pretexto que tanto auxiliou a escalada militarista do governo Bush.

O projeto entra na pauta, como já alertara Alberto Dines, em depoimento a O Globo (7/8), justamente no centro de uma campanha eleitoral, período propício para as oposições explorarem as irregularidades que julgam existirem. Outro aspecto, porém, a esse se soma: a grave situação financeira por que passam as empresas de comunicação, o que possibilita insinuar estratégia de pressão. A junção desses dois fatos não pode ser negligenciada, em razão do que eles podem sugerir. Nos EUA, em nome do temor ao terror, foram violentadas inúmeras garantias à secular liberdade do indivíduo. No caso brasileiro, quem tem a temer? E por quê?

Salvo qualquer equívoco de percepção, os jornais têm sido extremamente cordiais com a esfera governamental, desde a posse, para não incluir o período de campanha em 2002. Considerando-se o noticiário diário, tanto impresso quanto eletrônico, deduz-se que a parte mais expressiva e influente da mídia nada faz senão divulgar (e com destaque) os favoráveis resultados decorrentes do continuado modelo econômico. A imprensa não produziu nenhum factóide contra a imagem governista. Todavia, a julgar pelos três verbos que constam na redação do projeto, conclui-se que o jornalismo atual é exercido por profissionais indisciplinados, desorientados e corruptos.

Afronta à autonomia crítica

A depender das principais manchetes, incansáveis na divulgação da ‘onda de crescimento’, o partido do governo deverá tomar posse das quase 6.000 prefeituras. A propósito, devemos concluir que nenhum país é dedicado a pesquisas como o Brasil. A velocidade e variedade com que são aplicadas e interpretadas é algo realmente digno de espanto. Esses ‘pesquisadores’ e ‘analistas’ devem varar noites de incessante insônia, tamanha a sucessão de cálculos, porcentuais, comparações, leitura criteriosa das respostas, exame de planilhas, entre outros derivados. Tudo com o aval de ‘metodologia científica’. É pena que tal eficiência não se dê em setores de primeira necessidade. Algo está fora de lugar…

Que incômodos maiores, afinal, sente o governo quanto à atuação da imprensa? Será o contraponto das denúncias de práticas revestidas de ética suspeita? Até o presente momento, tudo que a imprensa tem noticiado a respeito de fatos irregulares é simplesmente fruto de materialidades deixadas (ou esquecidas) no meio do caminho. Os responsáveis existem e a imprensa tem a obrigação de identificá-los e de pressioná-los a fim de se explicarem (ou defenderem-se). Isto é princípio elementar no trato da coisa pública, como igualmente o deve ser numa República democrática.

A proposta de criação de um conselho para monitorar a imprensa representa total inversão de papéis. Desculpem, senhores governantes. Na condução de seus cargos – doação da vontade majoritária dos eleitores – é que devem cuidar melhor quanto ao que fazem e dizem, em face de, na outra ponta, estar a imprensa pronta a fiscalizar, cobrar disciplina e divulgar, sim, tudo que se desvia do rumo correto ou prometido.

Como se deve comportar a imprensa, somente ao leitor deve caber o julgamento, seja na condição de mero usuário do jornal, seja na condição de personalidade atingida por essa ou aquela matéria. Aliás, quanto a este particular, Alberto Dines sentenciou com maior propriedade no artigo ‘Contra o denuncismo, o peleguismo’ do qual O Globo (7/8) extraiu o trecho seguinte:

‘Jornalistas não precisam ser protegidos pelo Executivo; ao contrário, precisam libertar-se das amarras do poder político.’

Não bastasse a impertinência declarada na proposição do projeto, fica outra questão não menos preocupante. Esta diz respeito a quem seriam os membros integrantes do Conselho. Que critérios norteariam as indicações? Quem fiscalizaria os membros do Conselho para possíveis práticas de cooptação? Como ardorosa defensora do projeto, cabe assinalar a deplorável declaração da presidente da Federação Nacional de Jornalistas, reproduzida pelo Globo e subtraída do site da Fenaj. Investida do mais alto estilo paternalista (ou, no caso, ‘maternalista’), a presidente Beth Costa afirma:

‘Não é uma luta corporativa, pois os conselhos vão atuar em defesa da sociedade ao disciplinar e fiscalizar a prática do jornalismo.’

Cabe esclarecer que, até a conclusão do presente artigo, a ‘sociedade’ não promoveu nenhum ato capaz de revelar (ou sugerir) tal demanda. Segundo consta, a ‘sociedade’ se encontra às voltas com graves problemas de outra ordem e, portanto, carente de sérios e intensos projetos direcionados às suas profundas vicissitudes, antes que ela desapareça ou se extermine.

Da ‘lei da mordaça’ à ‘máscara de ferro’

Qual foi, ao longo de ano e meio de governo, a crítica veiculada pela imprensa brasileira que se revelasse inverídica? Será que, na ânsia de esmero em copiar a gestão anterior, alvo sempre de ‘satanização’, o atual governo deseja aprimorar a ‘lei da mordaça’, pondo ‘máscara de ferro’ na cabeça de jornalistas, em nome da ‘divinização’ de um Executivo que, ungido pela graça suprema, está acima de qualquer contrariedade?

A imprensa tem a obrigação de manter, sob severa vigilância, a atuação do Estado, se o regime é democrático. Em sendo um Estado de perfil tirânico, então é compreensível transformar jornalista em secretário particular ou em adulador servente. Nesse caso, o Estado deve, em lugar de conselhos fiscalizadores, estatizar os veículos de informação, destinando à população doses de liberdade em pequenas cápsulas. Quantas mais metamorfoses a política brasileira terá a oferecer?

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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro