Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Ana Maria Bahiana

CRÍTICA CULTURAL

“O dia em que a música rachou”, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 8/7/03

“Uma pessoa considerando uma publicação de música, hoje – não um site, portal ou blog, mas um produto de banca – deve levar em consideração alguns fatores essenciais:

– Música não existe num vácuo. Os melhores momentos para publicações do gênero vieram quando um ou vários estilos de música tinham suas velas infladas por poderosos ventos sociais, culturais e econômicos – o que hoje os marketeiros chamariam de ?estilo de vida?. Isso era verdadeiro para a Crawdaddy!, avózinha de todas; e é verdadeiro para a Uncut, a Vibe ou a Blender.

– Consumir música e consumir publicações que falem sobre música são duas coisas inteiramente diferentes. Já eram diferentes nos tempos da Crawdaddy!, mas hoje são radicalmente opostas.

Detenho-me aqui sobre este último elemento. A digitalização da música e a expansão da Internet provocaram, na última década, uma rachadura de proporções épicas. Em linhas gerais, já temos hoje – parafraseando um dos debatedores num ótimo programa recente da série To the Point, na National Public Radio americana – uma geração inteira que não tem a menor noção de que música é um produto que se compre. Ingressos para shows, ou clubes, sim. Canções, não.

Por extensão, esta é uma geração que não consome discos – ou os consome marginal e ocasionalmente. Que não se interessa por (aliás, não tem o menor interesse pelo conceito em si) coleções coerentes de canções numa única embalagem – a noção de ?álbum?, essencial ?a maior parte da produção musical de massa pós 1965. Que não dá grande valor a autoria, griffe, identidade. Que não tem o hábito de leitura musical das gerações anteriores – e aí me refiro tanto a ler a música em si, como um ?trabalho? assinado/criado por alguém com uma história pessoal e referências coletivas – quanto a ler sobre a música – algo que só pode interessar a quem reconhece valores intrínsecos em conceitos como ?álbum?, ?história?,?autoria? e ?criador?.

Muito em breve teremos duas gerações inteiras com este perfil.

Quem consome discos, hoje, tem mais de 30 anos. Não tirei isto da minha cabeça. Um estudo recente publicado nos Estados Unidos (e me perdoem por não citar os detalhes, mas estou trabalhando no meu computador-da-estrada, em cujos arquivos não está o tal texto) disse, sem meias palavras, que a tentativa da indústria do disco em correr atrás do chamado ?público jovem? era uma ilusão que poderia se tornar fatal se não fosse revertida. Entre muitos exemplos e estatísticas, o estudo apontava o maior sucesso recente em vendagem de Cds: a antologia ?One?, dos Beatles.

Indústria de música, hoje, é uma coisa – uma coisa em formação, que exige modelos novos e, a julgar pelo estado de pânico das gravadoras, ainda longe de serem desenhados.

Mediaticamente (vocês me relevam o francesismo?) suspeito que a Internet seja o veículo mais adequado a este admirável mundo novo.

Indústria de discos é outra coisa, completamente diferente.

Ao imaginar uma publicação de banca com inclinações musicais, com quem e de quem estaríamos falando?

Estatisticamente, o tempo está a favor dos coroas. A geração nascida entre 1945 e 1965 – os chamados ?baby boomers? – é, ainda, a maior fatia demográfica do mundo. E, graças aos avanços da medicina e da higiene, vai viver muito, mas muito além de seus antepassados. Além e melhor .

A ela se somam os nascidos entre 1965 e 1975, que ainda tiveram seus anos decisivos – adolescência e juventude – marcados por coleções identificáveis de canções, assinadas e interpretadas por personalidades distintas, com referências históricas precisas, e contidas em objetos chamados ?discos?, produtos tão únicos e nobres que merecem ser adquiridos e pagos em moeda corrente no país.

Suspeito que quem não entender o racha da música vai, como se dizia antigamente, dançar.”

“Cultura nossa de cada dia”, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 11/7/03

“O poeta Vinícius de Moraes escreveu, em certa ocasião, que ?um jornal é um pouco como o organismo humano. Se o editorial é o cérebro; os tópicos e notícias, as artérias e veias; as reportagens, os pulmões, o artigo de fundo, o fígado; as seções, o aparelho digestivo – a crônica é o coração?.

Muita gente não se dá conta da riqueza cultural contida num único exemplar diário. Alguns dão uma olhada por cima, nas manchetes, detêm-se numa ou em outra notícia mais pitoresca (ou escandalosa), talvez leiam as legendas das fotos, e pronto. Feito isso, passam a considerar o jornal como coisa ultrapassada. Ou, no máximo, utilizam-no para embrulhar mercadorias ou forrar o piso do automóvel.

Quem age assim não se dá conta da quantidade de informações preciosas (que certamente farão falta mais para a frente) que está desperdiçando. Há, no entanto, muitas, muitíssimas pessoas que fazem seu exemplar diário render como nunca. São os colecionadores de recortes.

Alguns fazem isso sem método. Simplesmente cortam o que lhes interessou e acumulam esses papéis numa caixa. Outros, todavia, organizam hemerotecas sofisticadíssimas, tanto no que se refere à apresentação quanto à classificação por assuntos.

Adquirem pastas classificadoras de couro, com 50 lâminas, em forma de sacos (plásticos) onde colocam os recortes, ou colados numa folha de papel sulfite, ou através de cópias xerografadas dos artigos ou reportagens que lhes interessam.

Conheço pessoas que têm estantes repletas de volumes organizados dessa forma. O acervo cultural que juntam, dessa maneira, econômica, é inestimável. Mas não é preciso tanta sofisticação para formar uma boa hemeroteca.

Podem ser utilizadas pastas classificadoras mais simples, guardadas, ao invés de em estantes de madeira ricamente trabalhadas, em arquivos de aço. Tais coleções, com o passar dos anos, adquirem um valor impossível de se quantificar. Maior até do que o de uma boa biblioteca.

As informações contidas em livro nos permitem o acesso em qualquer oportunidade. Mesmo quando se trata de edições esgotadas. Basta procurar em algum ?sebo? para encontrar o volume desejado. Ou então, recorrer às bibliotecas públicas. Mas as colecionadas em jornal logo se tornam virtualmente ?inéditas?. Afinal, ainda são poucos os que adquiriram este saudável hábito de recortar o que lêem.

O leitor já imaginou, por exemplo, que preciosidade possui quem colecionou as crônicas que Machado de Assis escreveu na imprensa carioca em fins do século retrasado? Muitas foram reunidas em livros, mas não todas. Quem herdou uma hemeroteca dessas possui hoje um material tão precioso, a ponto de não ter preço, em termos econômicos.

No aspecto cultural, nem é possível avaliar a importância desse acervo. O mesmo vale para textos de João do Rio, de Rubem Braga, de Guilherme de Almeida (que por muitos anos assinou a coluna ?Eco ao Longo dos Meus Passos? em ?O Estado de São Paulo?), de Luís Martins, Sérgio Milliet, Fernando Sabino, Carlos Drummond de Andrade, Sérgio Porto (o Stanislaw Ponte Preta), Guilherme de Figueiredo, Otto Lara de Rezende, Affonso Romano de Sant?Anna e tantos outros nomes ilustres da cultura nacional. Portanto, antes de descartar como lixo o seu jornal preferido, pondere o quanto de informação útil e preciosa você pode estar jogando fora. Pense nisto!

(*) Editor-chefe do jornal Roteiro (SP).”

 

JORNALISMO & VANGUARDA

“Os industriários da sopa de letrinhas”, copyright Comunique-se (www.comuniquese.com.br), 10/7/03

“Havia um tempo em que a palavra jornalismo evocava o espírito das transformações. Resistência, vanguarda, revolução. Uma época em que saber escrever era secundário. Ora, é evidente que um salva-vidas (guarda-vidas em algumas regiões) tem de saber nadar. O jornalista há de saber escrever. Isso é apenas um princípio, uma condição. Não é nenhum favor que se faça a si mesmo e aos outros. ?Por que você resolveu fazer jornalismo?? – pergunta clássica nos primeiros dias de aula. ?Porque gosto de escrever? – esta é uma resposta-padrão.

Lembro-me dos meus anos de faculdade. Dei sorte, minha turma congregava gente mais velha do que eu. Alguns cursavam o segundo ou terceiro curso superior. Vinham das letras, da sociologia, do direito. Era uma turma idealista. Sim, queríamos mudar o mundo. Debatíamos várias dessas correntes de pensamento que se usa discutir à mesa do bar dos insatisfeitos. Às vezes, o discurso agredia. Pessoas deixavam de conversar, de olhar para a face do outro. Eu mesmo ?batia? e ?apanhava? muito. Mas, fosse quem fosse, respeitava e era respeitado. Não havia ladrões, não havia delatores, não havia má-intenção, não havia perfídia. A discordância regava-nos a bela trilha que antevíamos: a da revolução do pensamento; da revolução dos costumes; da revolução da sociedade. JORNALISMO, assim, em caixa alta: era como pensávamos, sonhávamos e buscávamos agir. O passado dos grandes, o aval de um futuro de glórias. O bom combate nos esperava.

Outro dia conversei com um amigo sobre essas coisas. Ambos percebemos o encorpar de um fenômeno que nos inquieta: o jornalismo tornou-se um negócio, também para o empregado. Tornou-se um parco meio de vida, um bater de ponto (para os que ainda têm carteira assinada), um mecanismo de sobrevivência (para os que ainda conseguem resistir).

Não há debate, não há reação, não há nem mesmo a curiosidade de saber como seria uma rotina diferente; como seria, afinal, um dia-a-dia em que os novos pensamentos fossem considerados; como seria se houvesse diálogo, se houvesse respeito ou, ao menos, interesse em saber o que um indivíduo, um cidadão, um jornalista pensa sobre determinado assunto, sobre o rumo do próprio grupo – de forma mais ampla, do município, do estado, do país, do mundo em que se vive.

Fomos tragados pela cultura industrial. Temos de produzir, produzir, produzir, produzir… Dois ou três pensam por todos, dois ou três arrogam-se a sapiência e a decisão. Os demais são cativos, são fazedores de dinheiro alheio. Como o são os incontáveis empregados de um sistema cujos tentáculos viscosos aprisionam a tudo e a todos. Bancário? Não, jornalista. Tanto faz.

Repórteres viraram produtores de informação descartável, da sopa de letrinhas consumível por uns dois ou três instantes de atenção compartilhada por um leitor, por um ouvinte, por um telespectador ensandecido. Somos agentes e pacientes desnorteados pelo farfalhar de tantas informações de que não precisaremos – embora os veículos as vendam como a panacéia contra a ignorância e a infelicidade hodiernas. Não raro servem-nos placebos.

Somos os industriários da sopa de letrinhas. Há embalagens para todos os gostos. Muita gente vai querer provar aquele novo sabor de todo o sempre. O controle de qualidade é rígido. Uma sopa dessa linha tem de ser igualzinha à da unidade anterior. Senão o senhor, a senhora, a dona de casa, as crianças não compram. ?O quê? Conteúdo novo? Adição de valores nutritivos urgentes? Cale-se! Cale-se! Já para a sua unidade, funcionário!?.

Bom, hora de bater o ponto. O outro emprego me chama.”