TESOUROS ESCONDIDOS
Deonísio da Silva
Correm lendas literárias, muito difundidas nesses tempos por audazes navegantes dos mares, às vezes procelosos, da internet.
Quanto às tormentas, os editores deste Observatório enfrentaram Adamastor semana passada e dobraram o cabo da Boa Esperança, enfrentando as costas escuras do anonimato irresponsável. E foram ao limite do que poderiam fazer para proteger os leitores. O resto é com a polícia, como concluíram, não apenas eles, mas certamente também o leitorado e os colaboradores, regulares ou eventuais.
Como ler e escrever num território minado, onde autores e leitores podem ser, não apenas vítimas de plágio, mas de uma coisa muito mais insensata: um salafrário escrever ? e o que é pior, não em vão ? em nome do autor? E a Verdade triunfou em tempo, ao contrário do que ocorre com a Justiça que, com freqüência, como reza o brocardo, não falha, mas tarda. E às vezes, justamente nesse tardar é que está sua ineficiência.
A lenda é a seguinte. O dono de um sítio disse a Olavo Bilac: “Estou precisando vender o meu sítio, que o senhor tão bem conhece. Será que o senhor poderia redigir o anúncio para o jornal?”
Olavo Bilac apanhou o papel e escreveu: “Vende-se encantadora propriedade, onde cantam os pássaros ao amanhecer no extenso arvoredo, cortada por cristalinas e arejantes águas de um ribeirão. A casa é banhada pelo sol nascente, oferece a sombra tranqüila das tardes, na varanda”.
Algum tempo depois, Bilac encontra o homem para quem redigira o anúncio e lhe pergunta se vendera o sítio. O dono tinha mudado de idéia: “Quando li o anúncio é que percebi a maravilha que tinha! E resolvi não vender mais!”
Aludo a essa lenda com algum temor de que talvez não seja lenda! O professor Antonio Dimas, entre poucos outros, conhece muito bem a obra de Olavo Bilac. Aproveito este artigo para perguntar-lhe: é lenda, meu caro Dimas?
De todo modo, a historieta levou-me a uma pequena reflexão sobre novos livros, muito bons, que entretanto estão submetidos a um silêncio que contrasta com a algaravia com que a mídia brinda outros, entre os quais alguns cuja qualidade não chega aos pés do silenciados. E, claro, não por juízos subjetivos, embora nem eles possam ser desprezados, pois também nos bastidores dos subjetivismos, principalmente em literatura, há verdades que não podem ser demonstradas.
Matéria viva
Refiro-me a obras complicadas por revelarem à simples leitura a falta de preparo do autor, por exemplo, que parece achar, como lembrou Millôr Fernandes, que a República aboliu a Regência Verbal! E deve ter levado de roldão também outras normas, fazendo com que nossas letras se tornem terra de ninguém. Ainda hoje, e não apenas em escolas sem reputação, há gente ilustre ensinando o clássico “tanto faz”.
Para tais espíritos, “tanto faz” tudo. Quanto ao signatário, começa por respeitar o autor, ainda que para dele eventualmente discordar. Sem concessão, não há diálogo. Às vezes, porém, há uma linha vermelha que não pode ser ultrapassada. Por isso, o “tanto faz” não pode ser aplicado indistintamente a quem escreve bem e a quem não sabe escrever. Os mesmos juízes que dizem não existir falta alguma na linguagem desjeitosa que eles abonam em certos autores e livros, quando assistem a uma partida de futebol conseguem discernir claramente quem fez falta, ainda que o juiz tenha tido outro entendimento da trombada. E, diante de uma jogada de craque e de um lance bisonho de um perna-de-pau, conseguem identificar perfeitamente a autoria. Isto é, entendem de futebol! Mas e de língua e de literatura?
Os critérios de avaliação vêm sendo substituídos no mundo dos livros numa rapidez espantosa. Também nesse campo o mercado vem triunfando. O mercado e a mídia. Pois o Brasil tem cerca de 3.000 editoras, mas o número de livrarias oscila entre 600 e 900. Por razões compreensíveis, nem a Câmara Brasileira do Livro sabe ao certo quantos estabelecimentos podem ser identificados como livrarias. E já surgiu, bem brasileira, uma outra designação: pontos de venda.
Com tão vaga identificação, há um trabalho urgente no horizonte: definir e contar nossas livrarias. Afinal, no princípio era o verbo. E no meio e no fim também será. Vêm ocorrendo, entretanto, na escassez do escoamento de tão vasta e complexa produção editorial, alternativas promissoras. Quiosques, bancas de jornais e revistas, mercados, supermercados, farmácias e lojas diversas estão vendendo livros! A coleção pocket, da LPM Editores, rompeu o círculo de ferro que circunscreve o mercado editorial ao universo reduzido de sempre. Dante, Shakespeare, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, Machado de Assis e vários autores brasileiros, do passado ou contemporâneos, podem ser encontrados em farmácias! A Martin Claret também está produzindo livros de alta qualidade, em formato pequeno, ainda que não pareça ter a difusão da LPM.
Ao lado delas, outras editoras, cujos lançamentos raramente estão na Galáxia Gutenberg, merecem ter seus catálogos consultados ? como é o caso, em São Paulo, da Imprensa Oficial, com destaque para o verdadeiro monumento que erigiu: os 31 volumes de Hipólito José da Costa e o Correio Braziliense, cuja publicação contou com a parceria do Instituto Uniemp, do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (Labjor) e deste Observatório da Imprensa. Nenhum dos nossos mais de 5.000 municípios poderia ficar sem ao menos um exemplar desta última obra. Entre outros motivos porque esses 31 volumes representam um memorial que brota, compõem matéria viva, em muitos casos, aliás, lavas incandescentes, labaredas a iluminar a história de autores e leitores, alguns dos quais pagaram com a morte, a tortura, o exílio, o desterro e outros sofrimentos atrozes pelo direito que lhes quiseram surripiar ? de que somos beneficiários ? de expressar o que o pensavam.
Perguntas incômodas
** Origens do discurso democrático (pocket, LPM), de Donaldo Schüller, não merece algumas linhas e mais atenção? Lançado em 2001, mostra como ação e reflexão política nasceram e se desenvolveram juntas na antiga democracia grega que nos serve de modelo até hoje.
** O momento literário: João do Rio, organizado por Rosa Gens (Fundação Biblioteca Nacional/ DNL), é um verdadeiro curso conciso de literatura brasileira, mercê das entrevistas que João do Rio fez com os escritores de seu tempo.
** Horizonte de Esgrimas, o mais recente livro do poeta e professor Mário Chamie vem com esses versos na capa: “O sangue de sua espada/ é sua palavra-poema./ Vamos poetizar a palavra/ com sua capa toureira:/ as vísceras da metáfora/ na sua espada vermelha”. Já o jovem poeta Fabrício Carpinejar teve seu celebrado Biografia de uma árvore incluído na lista dos vinte livros selecionados por críticos de todo o país, com vistas a um dos maiores prêmios da literatura brasileira neste 2003, o Portugal Telecom, que vai distribuir 150 mil reais aos três melhores livros publicados em 2002. Nada mais justo. O livro não é uma surpresa para quem já conhecia outros momentos do autor, que veio para renovar nossa vida literária, não apenas como criador, mas também como aquele tipo de escritor que tanto pode contribuir, atuando para além dos livros que escreve.
** Ó ser de espanto, de Vicente Franz Cecim, traz versos como esses: “das nascentes das fontes/ sem areias na garganta,/ ó Filho, bebe e fala a água que não cala”.
** Há vários outros, igualmente silenciados. A um deles, O riso da agonia, romance de Plínio Cabral, nem a atribuição, pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA), de melhor romance de 2002, conseguiu dar a indispensável transparência. A Santa do Cabaré, de Moacir Japiassu, em linguagem que não perde a irreverência e a verve habituais dos textos do conhecido jornalista, entretém e diverte o leitor. É uma história bem escrita, capaz de ser lida e entendida por qualquer pessoa ou, segundo a apresentação do crítico Fábio Lucas, “por qualquer mortal alfabetizado”. Moacir Japiassu está para nossas letras o que foi Osvaldo Aranha em nossa vida política, assim resumido em episódio que o jornalista Augusto Nunes trouxe à luz em na revista eletrônica no mínimo <www.nominimo.com.br>:
“Ele foi permanentemente contemporâneo, sem permitir-se mudanças na essência do pensamento. Mudavam o estilo, os métodos, as técnicas de persuasão, o linguajar. O fronteiriço pouco inclinado a minuetos retóricos era inteligível em qualquer roda de peões. A um amigo impressionado com as semelhanças fisionômicas notadas no fruto de um romance fugaz, Aranha ofereceu a explicação que o cosmopolita não enunciaria nos salões elegantes aos quais vivia comparecendo. ?A cusparada que cai fora da escarradeira sempre lembra muito mais a cara do dono?, resumiu”.
** Lilian Fontes apareceu com um romance igualmente imperdível: Santo do Dia (Editora Record). A autora tem seus próprios méritos, mas não será demais lembrar que é neta de Amando Fontes, o glorioso autor de Os Corumbas e Rua do Siriri.
** Outros autores e romances a considerar: Charles Kiefer, com O escorpião de sexta-feira (Mercado Aberto); Menalton Braff, com Castelos de Papel (Nova Fronteira), Carlos Heitor Cony, com O indigitado; Invasões no Carrossel (Mandarim, do grupo Siciliano, romance em que avulta a presença de Carlos Lamarca) e Waldo César, com Tenente Pacífico, romance ambientado na Revolução de 1932.
** Um bom livro de contos: Quase Ficção, de Oscar Dias Corrêa (edição da ABL).
** E por último, uma de minhas melhores leituras dos últimos meses: Ora direis…ouvir orelhas que falam de livros, homens e idéias, do editor que lançou Rubem Fonseca, o ousado Gumercindo Rocha Dórea, que merece há muito tempo um reconhecimento que não lhe dão: ao lado de José Olympio, acreditou no autor nacional!
Temos o que ler, como se vê. E talvez estejamos jogando esses sítios fora, sem sequer anúncio escrito por algum Olavo Bilac. A pergunta que não quer calar é a seguinte: no caso de muitos dos citados, por que tanto silêncio? Estará Moacir Japiassu pagando o preço de suas críticas à imprensa? Alguns terão cometido o supremo pecado de pertencer à ABL? O fato de o gaúcho Menalton Braff morar na região de Ribeirão Preto e ser professor de primeiro e segundo graus atrapalha seu reconhecimento? Bem, lembremos que o professor, de ensino médio e escola secundária, Adelino Magalhães inventou o monólogo interior antes de James Joyce. Mas em português, em Niterói. Sabe-se lá se não pensaram os avôs dos críticos de hoje que se tratava de monólogo do interior!