Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

O preço da realidade

NOVOS TEMPOS

Luciano Martins Costa (*)

Três são os dois maiores males da imprensa nacional: a arrogância. Por conta desse modo de ver o mundo, os donos dos principais jornais do país não educaram seus sucessores, não investiram na formação de profissionais independentes e visionários, castraram todas as iniciativas dos outsiders que eram a alma do negócio e estimularam com grandes salários e radiosas oportunidades os mais servis e conservadores entre os integrantes de suas equipes.

Em todas as iniciativas dos últimos anos, a imprensa saiu atrasada ou investiu errado. Desde os magníficos portais de internet até os mais restritos negócios de informação dirigida, passando por megalomaníacas empresas de TV a cabo, em tudo se percebe o sinal da arrogância. Habituada a fazer na vida pública o que se faz na privada, dirigiu eleições, condicionou pacotes econômicos, estigmatizou quem se opôs aos seus interesses. Só não conseguiu editar a realidade.

E a realidade agora cobra seu preço: as empresas de comunicação não possuem massa crítica interna, nem mesmo para avaliar a qualidade dos seus textos ou para analisar a viabilidade de seus projetos de redenção. Do meio social de onde se originam seus proprietários já não brota a solidariedade que se baseava no projeto comum de poder, porque, afinal, o parceiro industrial ou dono de banco já tem o poder que antes lhe era emprestado pela mídia. Tem mais do que isso: pode a qualquer momento estrangular a empresa de comunicação com suas mãos forradas de títulos vencidos. A imprensa nacional perdeu sua independência e perdeu sua alma.

Os projetos de modernização tecnológica, quando aplicados sobre premissas conservadoras, acabam se transformando em um mero verniz e sua função passa a ser apenas a de encobrir aquilo que não quer mudar. Ao que tudo indica, os três pilares que classicamente fazem uma empresa bem sucedida ? a estratégia, a organização e a comunicação ? se tornaram nas empresas de mídia brasileiras apenas um discurso para outras empresas que são temas de seu noticiário. Ao insistir na manutenção de uma visão conservadora, antiprogressista, em sua gestão, a mídia acabou por enroscar-se em uma armadilha da qual só poderá sair com um exercício de humildade que a leve a reconstruir esses três pilares.

Sem diálogo com os liderados

Em primeiro lugar, a estratégia: sabe-se que a ênfase em entretenimento e serviços, em detrimento da função de educação que é fundamento da imprensa, eliminou a mídia de qualidade e nivelou pelo rés-do-chão praticamente todos os títulos. Leia-se com atenção, por exemplo, o episódio grotesco da brincadeira do empresário "Sílvio Santos" e a seriedade com que as editorias de negócios ? quase todas ? se empenharam em confirmar e comentar a suposta venda da rede SBT. Observe-se a subserviência com que a mídia saúda os ícones criados pela indústria do espetáculo, elevando a patamares de gênio indivíduos que, sem saber distinguir um ré de um dó, são anunciados como redentores da arte musical. Só para lembrar: alguém aí tem ouvido um tal Júpiter Maçã, saudado no fim dos anos 90 como o novo gênio pop?

Em segundo lugar, a organização ou processos ? que hoje deve ser entendida como tecnologia. Com a exceção de algumas emissoras de TV, a maioria das redações de grandes jornais está defasada pelo menos cinco anos nos processos de captação e edição de notícias e no conhecimento de seus clientes. O menor dos escritórios de gestão de investimentos na Avenida Paulista tem mais tecnologia digital de relacionamento com o mercado do que qualquer dos grandes jornais. Para piorar, uma pesquisa recente da Benden Associates, citada pelo Poynter Institute, da Flórida (www.poynter.org), anuncia que os noticiários online estão começando a canibalizar para valer as edições impressas dos jornais. Sabendo-se que os sites não oferecem nem uma vigésima parte da receita que os jornais podem ter com suas edições impressas, imagine-se o dano. Calcule-se agora o dano multiplicado pela pulverização das mídias online, pelos milhares de outras fontes de informação que proliferam na internet, pelos blogs que pipocam a cada momento na rede, muitos deles mais ágeis, mais bem informados, mais confiáveis do que muitos jornais. Ainda falando em organização e processos, imagine-se a distância tecnológica entre um grande banco e um grande jornal: o banco sabe quanto o cliente gasta em supermercado; o jornal não tem idéia de que páginas seu leitor prefere e que efeitos tem, para a fidelidade do assinante, a manchete catastrófica de uma edição de domingo.

Em terceiro, a comunicação. Quem já freqüentou a sala de diretoria de qualquer grande jornal, sabe que a realidade tomada por base para as decisões de gestão guarda pouca ou nenhuma relação com a realidade que corre pela rádio-peão. Os gestores não conhecem seus liderados, o editor não tem tempo para conversar com o repórter. Depois, estranha-se um episódio como o do jornalista Jayson Blair. A propósito, o Poynter Institute, citado ali atrás, é a organização que, há dez anos, ofereceu aos jornais latino-americanos o programa chamado coaching writers, pelo qual seria possível transformar as redações em verdadeiras universidades, com a troca permanente de experiências entre os jornalistas, para a recuperação da capacidade de contar histórias e estímulo ao texto de qualidade. Alguém aí lembra de ter passado por esse programa em algum jornal brasileiro?

(*) Jornalista