Tuesday, 24 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Comentários e proposições ao debate

TV DIGITAL

Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação

1. Apresentação

O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) foi criado em 1991 com a proposição de mobilizar as entidades dos profissionais da área das comunicações e os mais diversos setores da sociedade civil preocupados com soluções para os problemas da áreas das comunicações no Brasil. Tal composição de forças sociais sempre esteve pautada por um esforço de superação de perspectivas corporativas e particularizadas e persistentemente orientou-se na busca da formulação de políticas públicas para a área das comunicações tendo como foco o interesse público e nacional, o reconhecimento da pluralidade como medida maior da democratização e a promoção do exercício da cidadania e da autonomia intelectual dos indivíduos como finalidade da cultura gerada pela mídia.

O Fórum tem a convicção de que a introdução da tecnologia digital na comunicação social eletrônica ? dada a importância crucial que esta tem na configuração das relações sociais, exercendo decisivas determinações sobre a economia, a política e a cultura ? é a mais importante questão desta área com que o país se defronta no últimos 50 anos. Foi em 1950 que a televisão começou a ser implantada no Brasil, sob o signo da improvisação, sem que então se vislumbrasse seus efeitos e potencialidades, originando uma singular experiência brasileira, com resultados inovadores e criativos mas, também, com componentes nocivos, notadamente no seu papel político e em vários aspectos dos seus efeitos culturais.

As decisões que agora serão tomadas sobre a introdução da tecnologia digital na mídia eletrônica, em especial sobre a TV aberta, vão reconfigurar os sistemas de mídia como um todo, com repercussões que se projetam para as próximas décadas. Não é possível, evidentemente, antecipar todos os desdobramentos deste processo porque a história ensina que os meios sempre excedem as finalidades particulares para as quais foram concebidos, tanto no sentido positivo, como no negativo. Por isso, cabe às sociedades organizadas e democráticas estabelecer um permanente esforço para assegurar o predomínio das finalidade humanas sobre a “lógica das coisas” ? isto é, sobre a até certo ponto incontrolável dinâmica das forças sociais, em especial aquelas geradas pelo mercado ? procurando evitar desdobramentos que se contrapuserem aos fins estabelecidos.

As relações de mercado apresentam uma extraordinária vitalidade para produzir impulso à criação de meios para o alcance de fins. O problema é não se deixar a definição dos fins sujeita a esta lógica do mercado, através da qual sempre se impõem interesses particulares. Dado que o mercado tem se mostrado, através da história, uma esfera incontornável para a produção de bases materiais que conduzam ao alcance de fins, trata-se de articular o seu desenvolvimento com as perspectivas públicas e sociais. A dinâmica a ser perseguida parte do reconhecimento de que esta vitalidade do mercado deve ser preservada e que seu condicionamento deve ter limites, assegurando-se à sociedade, entretanto, meios democráticos de incidência, de modo a se buscar permanentemente a referida adequação entre os meios desenvolvidos e as finalidades humanas projetadas.

Este é o desafio que teremos de enfrentar na formulação das políticas públicas para a etapa crucial da reconfiguração dos sistemas de mídia no país. É uma oportunidade única para o desenvolvimento de sistemas que expressem uma relação mais adequada entre o interesse público e o particularismo com que se movem as forças de mercado. É um dos raros momentos em que se poderá fazer, conscientemente, opções de longo curso. As decisões que serão tomadas poderão reproduzir as atuais distorções, criar outras, ou gerar um alinhamento dos sistemas de mídia com o interesse público e estimular nestes a contribuição que efetivamente possa dar para o desenvolvimento do país, de nosso povo e para a afirmação da soberania e da nacionalidade.

Com satisfação reconhecemos que o Ministério das Comunicações está mudando o enfoque restritivo e objetivamente pouco comprometido com o interesse público verificado no governo anterior.

Expressam esta mudança de posição a minuta de Decreto que “cria o Grupo Executivo do Projeto Televisão Digital, estabelece diretrizes para a realização de estudos e pesquisas visando à introdução, no País, da tecnologia digital no serviço de radiodifusão de sons e imagens e dá outras providências” [minuta de decreto, versão de 25/6/03, publicada pelo Ministério das Comunicações]; a minuta de Anexo ao Decreto, estabelecendo “diretrizes para a realização de estudos e pesquisas visando à introdução, no país, da tecnologia digital no serviço de radiodifusão de sons e imagens” [minuta do anexo ao decreto, versão de 25/6/03, publicada pelo Ministério das Comunicações]; e a minuta da Exposição de Motivos [minuta da exposição de motivos, versão de 25/6/03, publicada pelo Ministério das Comunicações] com que o Ministro de Estado das Comunicações encaminhará estes documentos à apreciação do Presidente da República.

Sem obscurecer os méritos contidos nos documentos divulgados publicamente na sua versão de 25 de junho de 2003, consideramos que o posicionamento que o Governo Federal está assumindo neste início de debate público ainda mostra debilidade e precisa ser revisto, em aspectos essenciais, que apontaremos nos comentários e proposições aqui apresentados.

2. Avanços no debate da digitalização da mídia eletrônica

A atual posição do Governo Federal, em especial a do Ministério das Comunicações, representa um significativo avanço em relação ao que vinha sendo apresentado pela gestão encerrada no final de 2002. Destacamos a seguir seis evidências desta evolução.

2.1. Retomada do papel do Ministério das Comunicações como formulador de políticas

Por omissão do Governo Federal e, especialmente do próprio Ministério das Comunicações, a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) estava conduzindo a introdução da tecnologia digital na TV aberta, com exorbitância de suas funções, indevidamente assumindo o papel de órgão formulador de políticas quando lhe cabe, constitucional e legalmente, as funções de órgão regulador e executor destas.

A atribuição deste papel à Anatel pelo Governo anterior, além de ser contraditória com o atual ordenamento constitucional e legal, resultou na hipertrofia do viés técnico nas definições preliminares da política de introdução da TV digital. Além do estreitamento de perspectivas, constata-se que este tratamento privilegiadamente técnico, ao pretender atribuir uma suposta objetividade ao processo de decisão acaba confinando aos bastidores as verdadeiras opções políticas sobre os fins a serem alcançados.

O reposicionamento do Ministério das Comunicações restabelece o primado das decisões políticas sobre a suposta neutralidade e objetividade das decisões técnicas. Como afirmação da democracia, este novo posicionamento favorece a que os mais diversos setores sociais possam se manifestar a disputar aquilo que consideram as melhores possibilidades para o país nas opções que deverão ser feitas.

2.2. Definição do modelo como base da escolha do sistema e do padrão, com as opções sendo desenvolvidas a partir da identificação das necessidades sociais

A abordagem tecnicista da Anatel priorizou a escolha da tecnologia em detrimento das definições sobre os modelos de serviços e negócios que se desenvolverão com a digitalização da TV aberta no Brasil.

Nesta inversão irracional, o modelo seria aquele viabilizado pela tecnologia. No atual enfoque, é restabelecida a correta abordagem. Não só as definições sobre o modelo ? que TV aberta digital queremos para o país ? ? presidem a escolha do sistema e do padrão, como afirmam as necessidades sociais como referência essencial e preliminar em relação a todas estas definições a serem tomadas, inclusive sobre o próprio modelo.

2.3. Ênfase na inclusão digital e valorização da interatividade como um elemento essencial da nova TV aberta

O Governo anterior já citava a promoção da inclusão digital como um dos objetivos da digitalização da TV aberta. Tal objetivo, no contexto da abordagem então desenvolvida, revelou-se mais retórico do que real. No posicionamento do atual Governo não há sombra de dúvida em relação à importância real que está sendo dada à mobilização da nova TV aberta digitalizada para o enfrentamento da exclusão digital, ressaltando-se a valorização da interatividade como elemento decisivo para a viabilização deste objetivo.

2.4. Preocupação com o desenvolvimento da tecnologia e da indústria nacional e com o impacto da digitalização na balança comercial do país

Estava bastante explícita, na abordagem desenvolvida pelo Governo anterior, em especial nas diretrizes contidas na Exposição de Motivos do Ministro das Comunicações aprovada pelo Presidente Fernando Henrique Cardoso em 12 de setembro de 2002 [exposição de motivos N? 1247, de 6 de setembro de 2002, apresentada pelo ministro das Comunicações, Juarez Quadros, e aprovada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, em 11 de setembro do mesmo ano], a aceitação de um papel subordinado do Brasil em relação às tecnologias atualmente predominantes no cenário internacional. Caberia ao país, apenas, negociar situações mais vantajosas com os consórcios internacionais representantes destas tecnologias.

No enfoque do atual Governo, corretamente, parte-se da proposição de que precisamos identificar até onde podemos e queremos ir ? no limite, chegar ao desenvolvimento de um padrão tecnológico próprio. Tal posicionamento rejeita a idéia de aceitarmos passivamente a exportação de empregos e renda, com a mera importação de pacotes de soluções prontas, e se atribui um papel ativo para a indústria, a engenharia e as instituições de pesquisa e desenvolvimento do país.

2.5. Mobilização das forças ativas da sociedade para a formulação de um projeto nacional para a digitalização da TV aberta

Diferentemente do Governo anterior, que tratou da questão com sentido meramente técnico, a atual gestão do Ministério das Comunicações está mostrando disposição para promover uma efetiva e ampla mobilização da sociedade para um processo público de definição de fins em relação à introdução da tecnologia digital na TV aberta, criando bases para a constituição de um verdadeiro projeto nacional.

2.6. Disposição para aproximar o Brasil do restante da América do Sul na definição de uma solução conjunta

Apesar da necessidade de articulação com os países da América do Sul na introdução da tecnologia digital na TV aberta ser referida pelo Governo anterior, as posições e iniciativas adotadas foram tímidas e revelaram-se essencialmente retóricas.

No atual posicionamento do Ministério das Comunicações está categoricamente afirmada a importância desta articulação e esperamos que as iniciativas a serem adotadas efetivamente correspondam a esta intenção.

3. Limitações na abordagem do Governo Federal

A despeito dos méritos aqui referidos, as posições expressas nos três documentos publicados para debate ainda precisam ser repensadas, com uma abordagem mais ampla e refinada, capaz de melhor corresponder às próprias finalidades sociais que o Ministério das Comunicações está propondo. Constata-se que, com a formulação atual, além das finalidades apontadas estarem aquém do que a introdução da tecnologia digital pode e deve proporcionar ao país, os meios cogitados pelo Ministério das Comunicações estão, em larga medida, em contradição com os fins propostos.

Neste sentido, propomos soluções concretas para resolver o que identificamos como os oito principais problemas das formulações apresentadas pelo Ministério e, também, ressaltamos algumas outras propostas específicas em relação a inadequações e omissões verificadas nos textos colocados em debate.

4. Subestimação da Cultura como elemento de potência

A abordagem programática desenvolvida pelo Fórum afirma que a democratização da comunicação só avançará com o estabelecimento de condições de assimilação crítica, pelos cidadãos e pela sociedade dos conteúdos dos meios de comunicação social [o terceiro dos quatro objetivos estratégicos do Fórum é o “de capacitação da sociedade e dos cidadãos, imprescindível para uma mobilização crescente da sociedade, do setor privado e do Estado na realização das tarefas gigantescas e complexas, mas perfeitamente exeqüíveis, de revolucionar estruturalmente os sistemas de comunicações do país. É uma mobilização que deve conferir legitimidade e sentido social à atuação do setor privado, e estabelecer uma ampla representação da pluralidade nos sistemas de comunicações. São medidas que vão da disseminação da capacidade de produção de inteligência pelos setores organizados da sociedade, sobre a área das comunicações, até o estímulo à autonomia intelectual dos indivíduos”. In: FÓRUM Nacional pela Democratização da Comunicação. Bases De Um Programa Para A Democratização Da Comunicação No Brasil. Documento aprovado na sua V Plenária Nacional, realizada de 29 a 31 de julho de 1994, em Salvador.], e também, com a criação de formas institucionais de incidência, democrática e afirmativa da pluralidade, sobre os meios de comunicação social ? sejam quais forem os seus operadores ? de modo que estes possam ser orientados e estimulados a contribuir com o desenvolvimento do país. [O primeiro dos quatro objetivos estratégicos do Fórum é o de “construção do controle público, como base de relações democráticas que atribuam à sociedade condição de iniciativa diante do Estado e do setor privado. Estas novas relações pretendem revolucionar as bases do poder real, neste país, com a superação da mistificação do Estado como encarnação onisciente e onipotente da universalidade e detentor exclusivo do monopólio da representação do Público. E também com o compartilhamento, entre os setores organizados da sociedade e o setor privado, das responsabilidades na construção e orientação dos sistemas de comunicações. Neste contexto, o Estado deverá ser afirmado e fortalecido no seu papel de regulador e qualificador das práticas sociais, com uma ação substantivamente legitimada pelas novas relações. Estas transformações serão buscadas com o estabelecimento de relações multilaterais, nas quais se destaca um sistema de mediações institucionais que deverá permitir a interação da sociedade com o Legislativo, com os órgãos administrativos do Governo Federal, com as ‘entidades pensantes’ do Estado, com a representação do setor privado e com as massas de consumidores de meios de comunicação. Também deverão possibilitar a capacitação e a integração dos setores organizados da sociedade entre si. A construção do controle público deverá corresponder ao advento de práticas democráticas na elaboração de políticas públicas para a área das comunicações, gerando critérios para a concessão, posse e uso dos veículos e, sobretudo, a possibilidade de incidência democrática da sociedade sobre o conteúdo dos veículos de comunicação”. O programa, assim, se propõe a estabelecer formas de controle público sobre os meios de comunicação de massa – sendo controle aqui entendido como um processo eminentemente político, não burocrático, formalista ou censório – como condição para orientar as decisivas determinações do conteúdo destes meios no desenvolvimento da cultura e da democracia no país”. In: FÓRUM Nacional pela Democratização da Comunicação. Bases De Um Programa para a Democratização da Comunicação no Brasil. op. cit.] Esta última perspectiva caracteriza o original conceito de controle público formulado pelo Fórum para aplicação na área das comunicações [ver texto da nota anterior.]

O fim último da luta pela democratização da comunicação, porém, é obter para os cidadãos e para a sociedade, como resultado destas referidas condições de avanço, um papel de protagonistas na orientação dos rumos da cultura que se produz no país avanço. [O quarto dos quatro objetivos estratégicos do Fórum é “a necessidade de ampliar ao máximo a incidência do Público sobre estes meios que hoje exercem decisivas determinações sobre a construção da cultura do país. O país necessita de uma política de desenvolvimento da cultura para alcançar autonomia estratégica e exercer sua soberania, num contexto internacional particularmente adverso. É necessário deflagrar um processo civilizatório, com o concurso dos meios de comunicação de massa para que o país, democraticamente, possa arbitrar seu destino e suas finalidades”. In: FÓRUM Nacional pela Democratização da Comunicação. Bases De Um Programa para a Democratização da Comunicação no Brasil. op. cit.] Parte-se do princípio que um povo que não se preocupa com o papel desempenhado por seus meios de produção de cultura, está abdicando da sua identidade e da sua própria soberania. Evidentemente, operacionalizar isto não é algo fácil e este é o problema crucial da luta pela democratização da comunicação.

Um elemento de novidade desta abordagem é o enfoque de que a luta pela democratização da comunicação não é considerada um fim em si mesmo, mas um meio para que os cidadãos e a sociedade sejam ativos na construção da cultura do pa&iiacute;s, mesmo que não sejam produtores culturais.

Por outro lado, vale ressaltar que a produção de sentido caracterizadamente cultural ? incluindo as expressões artísticas, informativas e de entretenimento ?adquire nas sociedades contemporâneas, crescente importância econômica, gerando mercados que, em escala mundial, alcançam a casa das centenas de bilhões de dólares.

As diretrizes constantes do Anexo ao Decreto reconhecem que “o processo de digitalização dos meios de comunicação tem se mostrado um fator determinante de mudanças nas relações sociais, no modo de vida dos cidadãos e no modo de organização do trabalho e da produção” e que “o extraordinário avanço da eletrônica nas últimas décadas tem aberto, para as nações, novas oportunidades que transcendem os aspectos exclusivamente tecnológicos e industriais, e transbordam rapidamente para outros domínios” [minuta do anexo ao decreto, op. cit.].

O mesmo documento, que teve seu conteúdo reproduzido quase integralmente na Exposição de Motivos, ressalta ser a “inclusão digital o meio mais eficaz e rápido de se alcançar a inclusão social, proporcionando ao povo educação, cultura, informação e entretenimento e contribuindo para garantir a universalidade do idioma, a integração nacional e o exercício da cidadania” [minuta da exposição de motivos, op. cit.]. O mesmo documento salienta a necessidade do “desenvolvimento de novas aplicações que proporcionem entretenimento à população, promovam a educação e a cultura e, ainda, contribuam para a formação de uma sociedade apta a enfrentar os desafios de um mundo onde a informação e o conhecimento são cada vez mais importantes para alcançar o progresso econômico e o bem-estar social” [idem.].

Tais considerações, entretanto, não chegam a se materializar nos desdobramentos concretos das diretrizes e a dimensão cultural é subestimada como verdadeiro fator de potência do país e como elemento catalisador da maior riqueza de uma nação, que é seu povo, uma idéia tão antiga, quanto poderosa e válida.

As “oportunidades que transcendem os aspectos exclusivamente tecnológicos e industriais, e transbordam rapidamente para outros domínios” [minuta do anexo ao decreto, op. cit.], tal como afirma o próprio Ministério das Comunicações, por isso, ainda precisam ser adequadamente reconhecidas e desenvolvidas para que a formação da cultura do país seja adequadamente tratada como um fator de potência não só humana mas, também, material e econômica.

5. A omissão em relação à produção de conteúdo

Uma das decorrências práticas da inadequada percepção do papel da cultura como elemento ativo na configuração das relações sociais e como fator de potência da nação, aqui referida no item anterior, é a total omissão da abordagem inicial do Ministério das Comunicações em relação ao conteúdo da mídia neste contexto de reconfiguração dos sistemas eletrônicos de comunicação social.

A formulação do Governo parece esquecer que toda a infra-estrutura e a instrumentação tecnológica e técnica necessária à digitalização da comunicação social eletrônica ? não só na televisão, mas também no rádio e das diversas modalidade de TV por assinatura ? têm a finalidade precípua de constituir base para o trânsito de conteúdo.

A origem, a natureza e as condições de produção do conteúdo da mídia eletrônica, portanto, não podem ficar à margem das definições da política que agora se necessita formular. Este conteúdo não pode ser encarado como um elemento acessório ou algo que possa ser tratado de forma secundária. É justamente a sua circulação que está requisitando o sistema tecnológico em constituição. Ao contrário, uma política em relação ao conteúdo deve orientar aspectos fundamentais da própria concepção do modelo que se vai desenvolver, o que as Diretrizes apresentadas pelo Ministério das Comunicações deixaram de considerar.

Tal preocupação com o conteúdo não se cinge apenas ao seu decisivo aspecto cultural, como já referido. A produção de conteúdo, em especial a produção audiovisual, vem adquirindo crescente peso na economia contemporânea.

A mesma atenção que a Exposição de Motivos e as Diretrizes do Anexo ao Decreto mostraram com o desenvolvimento de tecnologia e capacitação do país para o desenvolvimento e produção industrial de semicondutores (ver próxima nota) e eletroeletrônicos deve ser voltada à produção brasileira de audiovisual e de tudo que se fizer necessário à implementação dos demais serviços de informação viabilizados pela digitalização. [Semicondutor é um termo que designa, genericamente, o “conjunto de chips, de circuitos integrados que são os “novos componentes que se tornam cada vez menores e mais potentes” na indústria eletrônica. “Os semicondutores são importantes não só para a área de telecomunicações, para a informática ou para os televisores, mas para quase todos os equipamentos que nos cercam. Por exemplo: nos automóveis, a eletrônica embarcada é calcada fundamentalmente em semicondutores. A tendência é crescer cada vez mais. Hoje, a expressão utilizada é ‘convergência tecnológica’. Em palavras grosseiras: tudo está caminhando para a dependência do chip, até os aparelhos domésticos mais simples. E não temos uma indústria de semicondutores no País, este é o grande drama. A nossa indústria de componentes é fraca. Temos capacitores e transformadores, mas quando começa a se sofisticar um pouquinho o componente” nossas limitações aparecem. In: Arnaldo Gomes Serrão, Coordenador-Geral das Indústrias Intensivas em Tecnologia da Secretaria do Desenvolvimento da Produção do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, em depoimento prestado na audiência pública realizada pela Comissão de Tecnologia Digital do Conselho de Comunicação Social em 10/10/2002.]

Tais cuidados são igualmente relevantes para se evitar a atual exportação de emprego e renda contida na maciça importação de produtos audiovisuais praticada no país. Só o segmento de TV a cabo despende anualmente cerca de R$ 1 bilhão com a aquisição de programação, majoritariamente produzida no exterior. [Dados apresentados pela Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA) ao Conselho de Comunicação Social.] Ou seja a importação de conteúdo para a TV aberta e por assinatura se soma às importações de semicondutores e eletroeletrônicos para gerar um calamitoso déficit no saldo comercial do país.

A multiplicação de meios e serviços de comunicação social possibilitada pela digitalização aumentará dramaticamente a demanda por conteúdo que, se não encontrar o país preparado para produzi-lo, provocará um aumento ainda maior das importações.

É necessário buscarmos não só um maior equilíbrio entre as exportações e importações de produtos audiovisuais, como também desenvolvermos um esforço voltado à capacitação do país para protagonizar a disputa do mercado audiovisual no plano internacional, considerando inclusive a vocação já demonstrada pelo Brasil neste campo.

O jornalista e diretor de TV Nelson Hoineff lembra que “o Brasil é hoje um dos maiores consumidores de televisão do mundo e um dos menos ativos produtores de programação. O brasileiro vê mais televisão do que quase todos os outros povos, mas se reconhece muito pouco nela” [HOINEFF, Nelson. Produção de conteúdo, eis a questão, texto adaptado do pronunciamento durante audiência pública sobre TV digital no Senado Federal, em 24/6/03], pois mesmo as poucas emissoras “que exibem um nível satisfatório de produção nacional, essa produção limita-se quase que inteiramente ao que é feito em seus próprios estúdios”, sem incorporar uma produção diversificada e independente e, menos ainda, a produção regional [HOINEFF, op. cit. idem].

Este o momento no qual “temos que definir agora se seremos produtores e exportadores de imagens brasileiras, de um conteúdo diversificado, plural e original, ou se simplesmente ampliaremos nossa já enorme capacidade de importar programação” [idem]. Hoineff por isso ressalta a necessidade de aproveitarmos a oportunidade “que não se repetirá em muitas décadas” gerada pela demanda por conteúdo digital, isto é, “conteúdo que reconheça as peculiaridades do sistema (formas interativas, entre outras) e crie a partir daí”, sendo que “para migrar de importadores para exportadores de conteúdo ? para desenvolver a vocação brasileira de produção e invenção” precisamos “estar na primeira linha dos que pesquisam o desenvolvimento de conteúdos originais para a era digital” [idem].

No seu programa para a democratização da Comunicação lançado em 1994, o Fórum já apresentava um conjunto de proposições que persistem atuais, entre as quais destacamos:

** “Capacitação da Nação e a cidadania para fazer frente à enorme quantidade de produção audiovisual internacional que está sendo introduzida no país – especialmente através das novas tecnologias de comunicação – com o desenvolvimento de condições para a assimilação dos aspectos humanizadores da cultura universal, resistência crítica a elementos desagregadores e, sobretudo, com a incremento de meios e recursos para afirmação positiva da cultura e da autonomia estratégica e da soberania nacional”.

** “Capacitação do Brasil para ser um pólo mundial de elaboração teórica, técnico-científica e política sobre comunicação e, em particular, sobre a produção audiovisual, de modo a que o país se prepare adequadamente não apenas para ser informado pela cultura universal, mas também para informá-la”.

** “Preparação do país para ser um grande exportador de produção audiovisual e de multimídia, realizando uma vocação já demonstrada no mercado de televisão pela alta qualidade e competitividade dos seus produtos, perseguindo objetivos econômicos, de projeção de potência e de posicionamento geo-estratégico no Sistema Internacional”. [Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação. Bases De Um Programa para a Democratização da Comunicação no Brasil. op. cit.]

Como exemplo para operacionalizar estas proposições o mesmo programa, elaborado há nove anos apresentava uma série de iniciativas, entre as quais destacamos aqui as seguintes:

** “Programa de criação do Circuito Nacional de Exibição Audiovisual, as Salas Multimídia de Cultura Contemporânea, com a abertura de linhas de crédito para instalação, por pessoas físicas e jurídicas (micro e pequenas empresas, ONGs, sindicatos, escolas, etc.), de pelo menos dez mil salas com recursos técnicos (projetor de vídeo, telão, videocassete, DVD, amplificadores de som e cadeiras, e conexão às redes de TV a Cabo, MMDS, DTH e internet) para exibição coletiva de cinema, televisão e vídeo e realização de teleconferências, priorizando o atendimento dos 92% de municípios brasileiros que não dispõem de salas de cinema. O Programa visa a criação de um mercado nacional massivo para os serviços de TV por assinatura e para exibição da produção independente e regional brasileira de vídeo e cinema. Também busca a indução de inovadoras possibilidades culturais proporcionadas pela constituição de “auditórios eletrônicos” (em âmbito municipal, regional ou nacional) com os serviços de teleconferência. Este Programa tem ainda como objetivo a deflagração de um grande movimento cultural em torno da televisão, do vídeo e do cinema, criando uma experiência socialmente partilhada de audiência crítica e debate da estética da produção audiovisual, através de exibições acompanhadas de debates e avaliações críticas”.

** “Programa de disseminação de recursos de produção e tecnologia de cinema, televisão e vídeo, com ênfase na constituição de pólos regionais de meios de produção (estúdios e equipamentos) privados ou públicos, bem como tecnologia de operação destes meios, capazes de apoiar a realização, em larga escala, de produções de cinema, televisão, vídeo e multimídia, como base de um conceito de regionalização da produção com condições de ter acesso ao mercado nacional, pelas redes nacionais e regionais de televisão e pelos serviços baseados nas novas tecnologias. Trata-se de um programa voltado para a superação da distância entre a atual produção alternativa e o mercado, criando condições para sua viabilização econômica e qualificação técnica, também favorecendo a pluralidade de expressão. Neste sentido, os estímulos econômicos e legais previstos no programa também se voltarão para favorecer o acesso de grupos e setores sociais representativos à tecnologia de produção, à formação de recursos humanos e à veiculação, em caráter comercial ou como exercício do direito de expressão”.

** “Programa de formação de recursos humanos para produção de cinema, televisão, vídeo e multimídia” [idem].

Seria pior do que irônico, seria trágico se o Brasil chegasse a se qualificar como “um eventual produtor de hardware“, mas permanecesse “como um eterno consumidor de idéias e de informação” [HOINEFF, op. cit. idem].

6. A injustificável concentração na digitalização da TV aberta

O Grupo Executivo do Projeto Televisão Digital (GET) que o Ministério das Comunicações pretende criar está sendo orientado a se concentrar exclusivamente, conforme explicita a minuta de Decreto, bem como as diretrizes contidas na minuta do Anexo ao Decreto, nos “estudos e pesquisas visando a introdução, no país, da tecnologia digital no serviço de radiodifusão de sons e imagens”.

As diretrizes para a realização dos estudos e pesquisas admitem estar tratando de um contexto amplo, ao destacar que “a digitalização da comunicação social eletrônica, na qual se inclui o serviço de radiodifusão de sons e imagens (televisão aberta), se constitui na mais avançada etapa deste processo de convergência tecnológica das telecomunicações, da informação e dos meios de comunicação social” [minuta de anexo ao decreto, op. cit]. Objetivamente, entretanto, estas diretrizes limitam-se aos estudos sobre a TV digital aberta, renunciando à abordagem dos demais serviços de comunicação social eletrônica (rádio e as modalidades de TV por assinatura).

Consideramos esta orientação equivocada e prejudicial, não só ao desenvolvimento adequado de processo global da digitalização da mídia eletrônica como, também, especificamente ao desenvolvimento da própria TV digital aberta no país.

Defendemos que a digitalização da comunicação social eletrônica seja abordada no seu conjunto. Afinal, tanto a TV por assinatura (TV a cabo, MMDS e DTH) como o rádio, necessitam do equacionamento tecnológico, econômico e político que se está atribuindo à TV aberta. O modelo a ser criado para a TV digital aberta não ficará indiferente à recomposição digital das demais modalidades de comunicação social e, vice-versa, afetará fortemente os demais serviços. Parece-nos um contra-senso abdicar da formulação de um modelo global para a digitalização, desotimizando esforços, recursos e desconsiderando o conjunto dos fatores que compõem o contexto da digitalização.

6.1. A necessidade de um tratamento abrangente da digitalização

Todo o quadro da comunicação social eletrônica digitalizada deve ser equacionado no seu conjunto, com a definição das suas bases de mercado, assegurando-se um adequado posicionamento para a viabilização de cada um dos serviços. Do mesmo modo, tão importante quanto este cenário de competição e complementaridade, é o impulso para que todo os sistemas de mídia eletrônica ? sejam quais forem seus operadores, privados, públicos ou estatais ? se orientem adequadamente a fim de atender as demandas sociais de entretenimento, informação e exercício do direito de expressão.

Do mesmo modo, é preciso reconhecer que a cada um destes serviços cabem tarefas específicas, ainda que conjugadas, de promoção da inclusão digital e social que se tornará possível com a digitalização. Isto não é algo que se pode, nem se deve, atribuir exclusiva ou mesmo privilegiadamente à TV digital aberta.

Consideramos, portanto, verdadeiramente inconcebível, constituir um esforço com a dimensão pretendida pelo Ministério das Comunicações focado em um aspecto parcial, embora importante, da digitalização da comunicação social eletrônica, fragmentando não só sua abordagem, mas a gestão do processo econômico, cultural e político decorrente da digitalização.

Ao tratar da introdução da tecnologia digital nos principais segmentos da mídia nacional de forma simultânea, o Brasil estaria adotando uma forma inédita de equacionar o problema da transição do analógico para o digital, antecipando-se aos impactos negativos que o tratamento isolado da questão fatalmente ocasionará. Contribui para esta possibilidade, a inesperada sincronia dos calendários de implantação do rádio e da TV digital, e a lentidão e os problemas encontrados na implantação da TV digital em todo o mundo.

6.2. Os prejuízos da descoordenação e da falta de políticas públicas

O serviço de TV a cabo está preparando o seu processo de digitalização, até agora com critérios definidos apenas pelo próprio empresariado do segmento, sem nenhuma política pública a lhes orientar. Com esta ausência, deve repetir-se o ocorrido no início das atuais operações com a tecnologia analógica, quando as soluções adotadas não só ficaram sujeitas ao próprio segmento, como foram resolvidas no plano de cada empresa. Assim, as alternativas tecnológicas e os equipamentos- inclusive os milhões de decodificadores instalados nos domicílios dos assinantes ? foram negociados diretamente pelas empresas no mercado internacional e simplesmente importados. Como resultado, montou-se um sistema sem perfil nacional, com disparidade e incompatibilidade de equipamentos e software. A gestão passada do Governo Federal omitiu-se de formular uma política para orientar o desenvolvimento do serviço, determinada pelo artigo 4?da Lei 8.977, a Lei da TV a cabo, e não teve a iniciativa de mobilizar a indústria nacional para produzir os equipamentos no país. Foi mais uma conseqüência da atitude negligente com o interesse público deste Governo para ampliar o assustador déficit comercial causado pela importação de produtos e componentes eletroeletrônicos que, em 2001, superou o do petróleo, atingindo US$ 8 bilhões [Arnaldo Gomes Serrão, depoimento citado.].

Agora o empresariado de TV a cabo, através da Associação Brasileira de TV por Assinatura (ABTA), está propondo a adoção de um decodificador digital ? o DSTB (Digital Set-Top Box) ? em comum com a TV aberta, com a orientação de uma política pública.

Caso isto não ocorra, e os decodificadores da TV a cabo e da TV digital aberta sejam diferentes, a primeira conseqüência será uma situação visivelmente prejudicial para a implantação desta última junto ao segmento de mais alta renda, que são os atuais dois milhões de assinantes da TV a cabo e os que se agregarem até o início da implantação da TV digital que, segundo uma estimativa otimista do segmento, poderiam chegar a quatro milhões. Estes são os que tenderiam a proporcionar a arrancada na aquisição de monitores-receptores digitais ou decodificadores para uso com receptores analógicos. O problema é que os mesmos teriam de ter um segundo decodificador, específico para a TV digital aberta e instalar uma antena, justamente do que tinham se livrado com a instalação do cabo. Deste modo, a adesão deste segmento, que poderia constituir uma base inicial para gerar escala de produção para as indústrias, tende a ficar comprometida.

A competição entre a TV aberta e a TV a cabo no cenário digital só vai complicar um processo de unificação “de fato” dos serviços no cenário analógico determinado pela Lei 8.977, a Lei da TV a cabo, que determina que o operador de cabo é obrigado a retransmitir o sinal da TV a aberta em sua área de prestação de serviço e o operador da TV aberta não pode negar que seu sinal seja retransmitido. Esta complementaridade, se não continuar a ser tratada por políticas públicas, tende a se transformar em concorrência predatória, prejudicial para os dois serviços e para a sociedade.

O setor de TV aberta tem considerado a argumentação do empresariado de TV a cabo, mas percebe com certo temor a proposta, o que é algo compreensível. O problema é que este assunto não pode ser tratado exclusivamente no interior do próprio segmento. Estes são temas que devem vir a público, são problemas da sociedade que é a destinatária destes serviços, não são preocupações apenas do empresariado de comunicação, e as eventuais dificuldades surgidas para um ou outro segmento devem resolvidas, legítima e democraticamente, no ambiente público.

Este é só um dos exemplos de como uma implantação descoordenada da digitalização pode ser prejudicial para o país e, diretamente, para os cidadãos.

6.3. A potencialidade do rádio

Até agora as manifestações do Ministério das Comunicações têm referido a digitalização do rádio como uma mera forma de se produzir soluções tópicas para problemas como, por exemplo, a crise do segmento AM. Na verdade, a crise do rádio, que hoje absorve apenas 4,5% das verbas publicitárias investidas no país, não se restringe ao segmento AM. Também a absoluta maioria das emissoras FM que não pertencem aos grupos controladores das seis grandes redes de TV do país, ou que não integram os grupos regionais operadores das emissoras afiliadas destas redes, encontram-se em situação de extrema penúria.

Agregam-se a este cenário as dificuldades existentes para se viabilizar o serviço de radiodifusão comunitária que, até o final da gestão passada, vinha sendo objetivamente sabotado pelo próprio Ministério das Comunicações. A atual gestão está dando passos largos para enfrentar o problema, destacando-se a iniciativa de constituição de um Grupo de Trabalho, no qual o governo recorreu à participação da sociedade para buscar soluções aos problemas do segmento. [Grupo de Trabalho criado pela Portaria n? 83, de 24 de março de 2003, do Ministério das Comunicações, publicada no Diário Oficial da União de 25 de março, para, em caráter emergencial e extraordinário, realizar todos os atos necessários à instrução, ao saneamento e ao desenvolvimento dos processos em andamento no âmbito do Ministério das Comunicações, relativos aos pedidos de autorização para o Serviço de Radiodifusão Comunitária, incluindo o acompanhamento e a análise desses processos, com o objetivo de estabelecer procedimentos específicos relativos ao Serviço.] O Ministério tem pela frente, entretanto, o gigantesco problema de atender à demanda, já manifesta, por cerca de 10 mil pedidos de autorização para execução do serviço de radiodifusão comunitária.

Todo este quadro, nos seus componentes tecnológicos, comerciais, econômicos e sociais, precisa ser reequacionado no contexto da digitalização. O rádio digitalizado poderá competir com a televisão aberta em determinados serviços de informação veiculados além do áudio e não deve ser desconsiderado nas possibilidades de interatividade que pode proporcionar, constituindo também um instrumento de promoção da inclusão digital e social por ser um meio acessível e preferido pelas populações situadas no interior do país e em regiões de fronteira.

A vantagem do rádio, neste sentido, é que a sua digitalização, e a correspondente transição do analógico para o digital, pode ser mais rápida e incomparavelmente mais barata, do que a da televisão aberta, em função do menor custo dos equipamentos de transmissão mas, sobretudo, pelo proporcionalmente reduzido custo dos aparelhos receptores. Este custo, considerando dados das implementações iniciais em desenvolvimento no Estados Unidos e na União Européia, ainda seriam proibitivos no Brasil, sendo em torno de US$ 100 o receptor (cerca de R$ 300 em junho de 2003, quase duas vezes o salário mínimo). O desenvolvimento de tecnologia nacional e a produção em escala de dezenas de milhões por indústrias nacionais, com a compactação do processamento dos sinais em chips altamente concentrados, poderia nos levar a receptores custando R$ 10 a R$ 20, como se vê nas ruas das cidades brasileiras com os minúsculos receptores AM e FM para serem usados com fones de ouvidos. Esta seria a diferença da intervenção de uma política pública: enquanto nos países centrais o pagamento do desenvolvimento da tecnologia é inicialmente jogado nos segmentos de alta de uma sociedade que já tem elevado poder de consumo, no Brasil, diferentemente, este custo seria rateado já no início do processo ? em bases socialmente mais viáveis e justas ? por um mercado de massas. Estamos falando de uma expansão do serviço de rádio digital que pode se tornar mais rápida no Brasil do que nos países centrais. Pensemos no que isto poderia representar para resolver os problemas do rádio AM e FM e da radiodifusão comunitária para se ter uma idéia da importância de tratarmos conjuntamente da digitalização dos diversos serviços de comunicação social eletrônica.

7. A omissão em relação à importância do software no processo de digitalização

Em nenhum dos textos publicados pelo Ministério das Comunicações, aqui examinados consta o termo software. Nem a minuta do Decreto e nem o Anexo ao Decreto citam o termo “programas” de informática, que serão necessários à viabilização da digitalização. Sua existência é apenas evocada de forma indireta quando o Anexo ao Decreto refere-se à “possibilidade de serem desenvolvidas camadas dos subsistemas de recepção e transmissão, que permitam a convergência de várias tecnologias” [minuta de anexo ao decreto, op. cit.].

Apenas a minuta da Exposição de Motivos do Ministro das Comunicações toca no assunto, ainda que incidentalmente, nos seus itens 14 e 16. No primeiro, ao referir a promoção da “integração entre universidade, centros de pesquisa e empresas privadas, sem a qual não se conquista um efetivo desenvolvimento industrial, tecnológico e social”, a minuta da Exposição de Motivos manifesta a intenção de “formar um consórcio de universidades brasileiras, públicas e privadas, para se encarregar da pesquisa básica de possíveis soluções tecnológicas, tanto em componentes, quanto em programação” [minuta de exposição de motivos, versão de 25/6/03, publicada pelo Ministério das Comunicações].

No segundo item referido, ao manifestar confiança de que “a indústria eletroeletrônica brasileira saberá muito bem enxergar, nesse arranjo institucional, uma extraordinária janela de oportunidade para absorver e implementar tecnologias de produto e processo”, a minuta da Exposição de Motivos expressa a expectativa de que “assim, poderão ser consolidadas marcas industriais brasileiras neste que já nasce na condição de um dos maiores mercados mundiais futuros de componentes, programas e equipamentos digitais” [minuta de exposição de motivos, idem].

Com a tecnologia de televisão digital, entretanto, os aparelhos receptores deixarão de ser eletrodomésticos passivos e farão muito mais do que exibir imagens e sons. Serão transformados em “verdadeiros microcomputadores em rede com várias possibilidades de interação, capazes de processamentos gráficos sofisticados”. [Fundação Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações ? CPqD. Relatório integrador dos aspectos técnicos e mercadológicos da televisão digital. São Paulo, CPqD, 23 mar. 2001. p.76.] O “novo sistema possibilitará o desenvolvimento de vários serviços, como jogos e diversas outras facilidades não oferecidas pela TV analógica e que serão oferecidas pela TV digital” [Ara Apkar Minassian, Superintendente do Serviço de Comunicação de Massa da Anatel, em depoimento prestado na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados, em 24/4/2002] e com estas aplicações típicas de software serão geradas oportunidades, empregos, e interesses. O “desenvolvimento ligado à televisão digital” passa a ser estreitamente relacionado ao “desenvolvimento da área de informática. São desenvolvimentos que não podem ser separados”. [Max Henrique Machado Costa, engenheiro elétrico, professor da UNICAMP, em depoimento prestado na audiência pública realizada pela Comissão Tecnologia Digital do Conselho de Comunicação Social em 10/10/2002]

Por isso, tanto o software que é embutido nos chips [Arnaldo Gomes Serrão, Coordenador-Geral das Indústrias Intensivas em Tecnologia da Secretaria do Desenvolvimento da Produção do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, em depoimento prestado na audiência pública realizada pela Comissão de Tecnologia Digital do Conselho de Comunicação Social em 10/10/2002], como o que passa a ser acrescentado ao sistema por outros meios (cartões, meios magnéticos e ópticos, etc.), serão elementos decisivos no desenvolvimento da TV digital, em torno dos quais já se estabeleceram intensas disputas de interesses internacionais.

Na gestão anterior já se verificava a desatenção com o problema do software, evidenciada pela inexplicável omissão da “Política para adoção de tecnologia digital no serviço de radiodifusão de sons e imagens no Brasil”, baixada pelo Governo Federal em setembro de 2002 [exposição de motivos n? 1247. op. cit.]. Esta também sequer citava o software como objeto de política pública relacionada com a TV digital.

“Devemos pensar” que nas emissoras de TV digital “teremos uma infra-estrutura de transmissão”, isto é, uma “infra-estrutura de hardware” que necessitará de software “para transmissão desses programas interativos e, na casa dos usuários, nas suas residências, para a recepção e o processamento desses programas e a sua apresentação aos usuários”. [Guido Lemos De Souza Filho, coordenador da Comissão Especial de Sistemas Multimídia e Hipermídia da Sociedade Brasileira de Computação e Diretor Executivo do Laboratório Nacional de Redes de Computadores ? LARC, em depoimento prestado na audiência pública realizada pela Comissão Tecnologia Digital do Conselho de Comunicação Social em 26/9/2002.] Deste modo, “associado à infra-estrutura de hardware, à elaboração e à produção desses conteúdos” [Guido Lemos De Souza Filho, idem], há o software. Esta necessidade fica ainda mais patente no caso dos conteúdos que explorem os recursos de interatividade. “Além da indústria de produção de conteúdo, mais ligada ao entretenimento de televisão, associada a isso, temos uma indústria de software que precisa se desenvolver no país” [idem]. O documento produzido pelo governo anterior, entretanto, simplesmente não contemplou aquilo que a formulação atual do Ministério das Comunicações prossegue subestimando.

A TV digital, lembram os especialistas, em pouco tempo será muito mais do que hoje concebemos como computador: “será um supercomputador” [Marcelo Knörich Zuffo, engenheiro eletricista, professor da USP, em depoimento prestado na audiência pública realizada pela Comissão Tecnologia Digital do Conselho de Comunicação Social em 26/9/2002]. A unidade receptora-decodificadora (URD) dos sinais da TV digital aberta, que poderá se encontrar dentro de um aparelho receptor digital ou em um adaptador externo, permitindo a utilização destes sinais mesmo em um aparelho receptor analógico, ilustra bem a situação gerada pela nova tecnologia.

No interior das URDs, ou DSTB como sugere a ABTA, estrutura-se uma complexa e sofisticada articulação de hardware e software, que bem ilustra o cenário gerado pela tecnologia digital. Inserem-se nas URDs as funções de um sistema operacional básico [o sistema operacional básico, ou RT-OS (Real Time Operational System), “complementa as funcionalidades do hardware executando funções elementares e disponibilizando uma biblioteca de funções, a API, para a camada de aplicações. Uma diferença do RT-OS quando comparado aos sistemas operacionais de microcomputadores convencionais é que ele deve ser compacto e veloz, capaz de manipular as instruções em tempo real. Exemplos de RT-OS comerciais são o OS-9 da Microware Systems Corp., o pSOS da Integrated Systems e nanoOS da Sony”. In: CPqD, Relatório Integrador, p.76.], que aciona a funcionalidade do hardware e a sua capacidade de transformar sinais digitais em imagens e sons. Além destas funções básicas, o hardware é mobilizado para viabilizar aplicativos por um programa denominado API (Application Programming Interface) [API ? Sigla de Application Programming Interface, “é a interface entre o sistema operacional da URD e as aplicações criadas para o usuário, como por exemplo jogos, comércio eletrônico, guia de programação, etc.”. In: CPqD, Relatório Integrador, p.76.]. Complementa as funções das URDs o Sistema de Acesso Condicional (Conditional Acess System ? CAS) (ver nota a seguir) que é essencial para a viabilização da interatividade nas URDs. [O Sistema de Acesso Condicional “pode ser definido como um sistema composto por hardware, software e fluxos de informação” e que possibilita que um assinante só “poderá decodificar e acessar o programa apenas se tiver direito ao serviço”. In: CPqD, Relatório Integrador, p.82.]

Das instruções que estão contidas no interior dos chips até os cartões e dispositivos que serão conectados às URDs esta tecnologia é permeada por software, firmware e middleware. [Por firmware designa-se “qualquer software armazenado sob a forma de memória de leitura (ROM, EPROM e EEPROM) e que, portanto, preserva seu conteúdo mesmo quando a eletricidade é desligada” (conforme o Dicionário de Informática , no site itudomais.com.br . O termo também pode ser definido como “programas gravados em memórias semi-permanentes. Os programas gravados no BIOS de um microcomputador são exemplos de firmware. A palavra designa um meio termo entre hardware (a parte física de um computador) e software (a parte lógica, os programas, de um computador)”, segundo o Dicionário de informática, encontrado no site www.mednet.com.br/users/ mateuspa/auxilio.htm.]; [Middleware refere-se a um “programa que permite que dois sistemas diferentes possam se comunicar. Por exemplo, permitir que um determinado programa, capaz de acessar um determinado banco de dados, possa acessar bancos de dados em outros formatos. Outro exemplo é a possibilidade de permitir que servidores de diferentes plataformas trabalhem em conjunto”. Como exemplo, poderia se citar a combinação de “servidores Alpha e Linux” em um “sistema de processamento paralelo” (Dicionário de informática no site www.guiadohardware.net/dicionario/dic-m.asp”. O termo também pode ser definido pela expressão “camada de transporte”, que “gerencia o transporte de informações pelo ambiente de redes. É usada para isolar aplicações, operacionais ou informacionais, do formato real dos dados nas duas extremidades. Também inclui a coleta de mensagens e transações e se encarrega de entregá-las em locais e tempos determinados”, segundo Maria Luiza Campos e Arnaldo Rocha Filho, in: CAMPOS, Maria Luiza & ROCHA FILHO, Arnaldo V. “Data warehouse”, in: genesis.nce.ufrj.br/dataware/tutorial/home.html.]

O software estará no sistema de transmissão das emissoras, nos aparelhos receptores, no guia interativo de programação, nos aplicativos que serão desenvolvidos, nos demais recursos de interatividade. Será o elemento mais dinâmico da cadeia envolvida pela digitalização.

Tal omissão na atual formulação do Ministério das Comunicações, por isso, é injustificável e deixa a descoberto um fator da digitalização tão importante quanto o do hardware, senão até proporcionalmente mais importante, porque está mais ao alcance de desenvolvimento pelo país. Destacamos, assim, que o impulso à tecnologia e à indústria brasileira de software é tão importante quanto o que se pretende dar à indústria eletroeletrônica.

[Continua; para ler a segunda e última parte deste documento, clique abaixo em PRÓXIMO TEXTO]

(*) FNDC <www.fndc.org.br>; e-mail <secretaria@fndc.org.br>