Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Liberdade e a tentação monopolista

SOFTWARE LIVRE

Pedro Antônio Dourado de Rezende
(*)

A “Coalizão pela Livre Escolha do Software”, apoiada pela
Comptia (inclui Microsoft, Intel e Dell), em entrevista e artigo
recente de Raphael Mandarino Jr. na Gazeta Mercantil (9 de
julho) defende que “o governo pode comprar Linux se quiser, mas
não deve aprovar leis dizendo que preferencialmente tem que
usar software livre, [pois] isso é inconstitucional”. Dizendo-se
“a favor do usuário”, compara a preferência por software
livre à experiência de reserva de mercado de informática.

Essas afirmações, repetidas em vários cantos
na mídia e em portais sobre informática, merecem análise.
Tais leis terão como único efeito prático trazer
ao debate o negócio do software. O que é software?
O que é liberdade? Nisso já surtem efeito, mesmo antes
de promulgadas. Quem defende o status quo já se vê
obrigado a expor argumentos, diante de inequívocos sinais
de fadiga do modelo de negócio que desejam preservar. Ao
expô-los, entretanto, não evitam falácias e
sofismas, que talvez decorram de falhas na compreensão do
que está em jogo.

A pior delas talvez seja a comparação acima, que
passamos a analisar. Primeiro, o que essas leis instituem não
é reserva. O mercado de software é não-rival
(non-rivourous). Ao contrário do hardware, alvo da citada
reserva, a venda de uma cópia nada subtrai do estoque. O
autor continua autor, e, querendo, também proprietário
do mesmo software. Por isso, nos modelos de negócio com software
livre, uma cópia em uso é vista como ativo investido
em marketing. Não só do software em si, mas nos seus
mercados de suporte, serviço e agregação, e
por isso pode ser gratuita.

Enquanto o modelo proprietário despreza tal característica.
Neste modelo, software é propriedade antes de mais nada,
e cópia vendida é passivo: DRM (digital rights
management
), pirataria, engenharia reversa, bugfixes,
compatibilidade retroativa versus obsolescência programada
etc. O debate surge justamente porque, esgotado o ciclo útil
deste desprezo, começam a vazar ineficiências do negócio
nele baseado. É certo que tais ineficiências ainda
não atingem todo tipo de software. Mas já um espectro
importante, e crescente, principalmente os de larga escala, como
os sistemas operacionais, os middleware de rede, as suites
de escritório, de programação etc.

Segundo, se o que essas leis instituem fosse reserva não
seria de mercado. Ver no software antes uma ferramenta de linguagem
digital do que uma mercadoria, se for ato de reserva o será
de conhecimento, não de mercado. Prioriza-se o direito ao
conhecimento das linguagens digitais, e não os interesses
de fornecedores ou os modelos monopolistas baseados em padrões
digitais proprietários. Padrões e formatos digitais
vêm, progressivamente, sendo havidos como propriedade em uma
corrida pela “posse” de idéias, numa esquema de pirâmide
da avareza que desabará sob o peso da sua própria
incoerência, tornada insana pela lógica monopolista.

Guerra quase religiosa

Terceiro, se vista como regulamentação, não
seria “de reserva”. Qualquer empresa poderia vencer licitações
para fornecimento de software, suporte e serviços correspondentes,
inclusive as que já se encontram confortavelmente estabelecidas
e irrigadas com generosos contratos. Desde que não exijam
que o edital contemple, casado aos dois últimos itens, licenças
de uso do software ditadas pelo fornecedor, prática corrente
no status quo. Esta exigência é tão absurda
que governos frouxos e clientes sem cacife vêm assinando contratos
de fornecimento de software sem o direito de conhecer previamente
os termos da licença de uso desses softwares Exemplo: Microsoft.
[Ver <http://www.cybersource.com.au/cyber/
about/comparing_the_gpl_to_eula.pdf>].

Se o negócio duma fornecedora se baseia na venda de contratos
para uso de software, chamados indevidamente de licenças
de uso (EULAs), quando na verdade são contratos de adesão,
e estes se baseiam no fato de o produtor considerar o código-fonte
do software segredo de negócio (modelo proprietário),
não há que se imputar automaticamente ideologia, pirataria,
emocionalismo ou radicalismo a novas práticas licitatórias,
se algum concorrente no modelo livre nelas se puser em vantagem.
A tais imputações, sim. Afinal, por que razão
as licenças de uso não podem ser negociadas, ou mesmo
conhecidas de antemão pelo contratante? E se podem, por que
o contratante não pode exigir critérios mínimos
para essas licenças, e critérios que reflitam interesse
público, no caso de o contratante ser o Estado, se é
ele quem estará pagando por elas?

O que as tais leis instituem é uma nova política
pública, que valoriza a dimensão social da licença
de uso do software. Trata-se de critérios para negociação
de licenças de uso. E o que a coalizão quer, na verdade,
é manter a velha política, que só valoriza
o conceito de propriedade imaterial conforme ditado pelo fornecedor.
Diante do discurso do novo governo, a coalizão tenta seqüestrar
a palavra-chave desse discurso ? liberdade ? para forçá-lo
a adotar, como “livre escolha” do conceito de software, o seu conceito,
que por sua vez descarta outros (Exemplo: Mandarino é citado,
em lapso freudiano, ao dizer “comprar linux”).

Ocorre que tal fundamentalismo não fornece conceito adequado
para a realidade atual que vivemos, e a estratégia da coalizão
exalta os que mal conseguem controlar os efeitos da sua própria
ignorância. Software livre é uma realidade que emoldura
o mundo de hoje. A internet está aí, tendo surgido
com ele. Mesmo com grandes monopólios buscando fórmulas
para dela se apoderar, de cada três endereços web digitados
hoje, dois serão servidos por um software livre (Apache),
e quase três resolvidos por outro (Bind). O conceito de software
que esta coalizão quer enaltecer fornece, outrossim, escravidão
semiológica: se fosse proprietária, a internet teria
surgido? Se todo software fosse proprietário, como os programadores
aprenderiam a programar?

Precisamos libertar a palavra liberdade do seu cativeiro de dólares.
Ninguém é contra liberdade de escolha, desde que ela
comece pela definição de software. Software é
mistério. O mistério da virtualíssima trindade.
Para o produtor (pai) é produto intelectual, para o usuário
(filho) é inteligência intermediadora, e no ciberespaço
(espírito santo dos bits) é a lei. A qual das pessoas
desta trindade se privilegia, eis a questão.

Ninguém, portanto, pode se arvorar dono do conceito “software”
sem promover uma guerra quase religiosa. Para evitá-la, só
com o respeito de todos à liberdade primeva frente ao mistério.
Quem quiser ser apenas usuário, e não antes inquilino,
que seja. Quem quiser separar autoria de posse, retendo e respeitando
a autoria e desmascarando a farsa da propriedade do que só
existe na mente, que o faça. Não é essa, entretanto,
a liberdade que a coalizão defende, ao pregar seu bloqueio
na mais alta instância, a do Estado.

Espírito público

Comparar leis que dão preferência ao software livre
nos poderes públicos com a antiga reserva de mercado do hardware,
para desacreditá-la, é sofismar sobre a ignorância
de fatos essenciais, municiando a retórica que oculta sentidos
diversos sob a palavra seqüestrada. Como o fato de que hardware
e software, apesar de conceitualmente imbricados, contrapõem-se
em essência material e fabril. Como o fato de que o software
tem importante função social ? o de intermediar a
inteligência alheia ?, com implicações cada
vez mais cruciais para a segurança do Estado, ausente no
hardware e no discurso da coalizão.

Concordo com o Sr. Mandarino que tais leis são ruins. Mas
não porque algum pelego ou mercenário se veja em suprema
toga para denunciar sua inconstitucionalidade, sua ideologização,
seu caráter emocional ou lunático, ou outras baboseiras.
Posso dizer, sem me ver juiz no STF, que num governo pelo status
quo a política que tais leis instituem seria ignorada. E
que, num governo pela mudança, tal instituição
não é necessária, pois política pública
se faz mais e antes com vontade do que com leis. Essas leis são
ruins porque são perigosas.

Enquanto as falácias necessárias para ocultar a fadiga
do modelo de negócio do software proprietário, modelo
que hoje predomina no mercado da informática, ocorrerem em
debates que se atêm à sua dimensão econômica,
podemos, com alguma chance de sucesso, combater seus sofismas, havendo
oportunidade. Porém, ao penetrarem na esfera jurídica,
em reação à promulgação ou à
política de TI que tais leis inculpem, injetadas pelo poder
econômico através de “especialistas” do Direito e do
jornalismo informático, será muito mais difícil
desarmá-las.

E desarmá-las não será o único problema.
Mais cara será a fatura dos seus efeitos, em custo social.
As mais nefastas injeções de sofismas talvez não
estejam em ataques diretos, mas em insidiosas abordagens envernizadas
de erudição, nas quais advogados que talvez nunca
leram uma licença GPL (software livre) tentam seqüestrar
conceitos de software, armados de juridiquês e de fama por
douto saber jurídico (assunto do próximo artigo).

O debate sobre liberdade de escolha do software deve ser conduzido
olhando-se principalmente para a frente, com equilíbrio e
espírito público, e não só para trás,
com rancor e mesquinhez. E deve centrar-se em fatos incontornáveis.
Como o fato de que um modelo se torna mais racional do que outro
na medida em que os softwares se tornam mais complexos, interligados
e ubíquos, e o de que o status quo buscará bloquear,
por meios a seu alcance, o desmonte da bomba-relógio armada,
através do consenso de Washington, pelo neoliberalismo fundamentalista
e inconseqüente do qual é filha a política de
informática passada, que só enxerga fluxos de caixa.

“Currículo ralo”

Uma dessas investidas bloqueantes se deu, recentemente, em matéria
da revista IstoÉ Dinheiro de 30 de julho [ver
em <http://www.terra.com.br/istoedinheiro/309/
ecommerce/309_todo_poderoso.htm>. Não se querendo, sabendo
ou podendo atacar a nova política, ataca-se um dos responsáveis
pela sua execução, enquanto se fomenta a cizânia
entre estes. Começam os autores com uma distorção:
“Amadeu é o todo-poderoso do governo do PT na área
de tecnologia.”, referindo-se ao porta-voz do governo PT na área
de TI ? tecnologia da informação ?, pela Casa Civil.

Tecnologia não é o mesmo que tecnologia da informação,
mas os autores repetem a confusão, na mesma toada em que
arrolam a militância do seu alvo, na juventude, em movimento
stalinista. Esse duplo estrabismo torna a matéria parecida
a uma torpe tentativa de se induzir medo, confusão e incerteza
sobre a dimensão ideológica da política em
questão, em si totalmente ignorada. Ao mencionarem o desejo
do porta-voz de levar “a bandeira do software livre” para o Planalto,
omitem-se de explicar o que vem a ser tal bandeira, ou onde mais
tremula, e como e quem mais a carrega pelo mundo. Ou mesmo o que
seja software livre, várias vezes trocado por falsos sinônimos.

Preferem citar o messianismo, a cruzada, o stalinismo e a passagem
pelo MR-8 do seu portador na Casa Civil, num espaço jornalístico
dedicado, conforme cabeçalho da página web, ao comércio
eletrônico. Ao falarem do “mercado de 5 bilhões de
dólares” que estaria “sob influência” deste porta-bandeira,
omitem qualquer referência à parte da bolada que tem
constituído flagrante desperdício ou corrupção,
inatacáveis na forma pregressa de se contratar, como apontam
documentos em várias auditorias e ações de
improbidade administrativa que se arrastam na Justiça, deveras
ocupada, mas antes em defender, por boa parte dos seus, seus próprios
privilégios.

Também omitem explicações ao citarem (sem
nomear) empresas que acreditam tratar-se de “uma cruzada que pode
levar o Brasil ao isolamento no mercado internacional, criando nova
reserva de mercado de software equivalente à reserva de hardware
dos anos 80”. Onde interessa, sobre o negócio do software
em si, são ralos. Preferem falar do “currículo ralo”
de quem dizem querer conduzir a nova política de TI do governo
com excessivo e autoproclamado poder. Preferem fofocar sobre divergências
internas na disputa pelo poder sobre essa política.

Cara de pau e chantagem

Para o leitor atento, esse ataque deixa uma dúvida. Sobre
quais, de quem e para o que mesmo são as cruzadas hodiernas
que têm na informática os seus campos de batalha. Seguindo
o rastro das denúncias, já que software livre não
é invenção de stalinistas nem de petistas megalomaníacos
que tomam de assalto a Casa Civil no Planalto, há que se
perguntar sobre quem mais acompanhará o Brasil, ao sermos
levados a “isolamento do mercado internacional” com essa nova política
de TI.

A mais vistosa companhia nesse “isolamento” será, certamente,
a IBM. Tendo perdido, há quase 20 anos, a pole na
corrida do software proprietário, ela aprendeu as lições
da história e vem investindo pesado em software livre (GNU/Linux,
Apache), há mais de quatro anos. Não por filantropia:
o retorno generoso é colhido em suporte, serviços
e agregação. E o espinhoso, em ataques sórdidos
de quem teme o novo paradigma (SCO e aliados, incluindo a Microsoft).

Como se “isola” a IBM? A SCO a está processando por suposta
“violação da propriedade intelectual do Unix system
5”, exigindo, de início, 3 bilhões de dólares
em indenização (a IBM, além de distribuir GNU/Linux,
licenciou e distribui sua versão do Unix, o AIX). Que violação
é essa? Ninguém sabe. A SCO ora alega que programadores
do Linux “piratearam suas idéias”, ora que “piratearam seu
código” (código-fonte do Unix system 5), mas não
diz exatamente o que, alegando proteger seu segredo de negócio:
“Só mostraremos as provas em juízo.” Enquanto isto
vai chantageando clientes da IBM e usuários de Linux pelo
mundo.

Se for um pedaço de código “vazado” inadvertidamente
do System 5 ou do AIX, em uma semana esse pedaço seria refeito
no Linux. São 350 mil programadores, basta saber qual é
o pedaço. Se for segredo de negócio (idéia
sobre como escrever algum código), a SCO não teria
dado bola para ele, tendo comprado “seus direitos” em 1995, ocasião
em que qualquer livro sobre sistemas operacionais já ensinava
como o Unix funciona. E, pela letra da lei, não tendo zelado
pelo segredo não teria do que reclamar. Mesmo porque, enquanto
lhe convinha, ganhava dinheiro distribuindo o próprio Linux,
que ela agora acusa ser ladrão da sua “propriedade intelectual”.

Na maior cara de pau as chantagens se intensificam, enquanto a
primeira audiência com o juiz só em 2005. <Ver em
<http://www.newsfactor.com/perl/story/22014.html]). Há
nisso, todavia, algo ainda mais nefasto. A Novell, segundo a SCO,
teria lhe vendido (por 75 milhões de dólares) “os
direitos” do Unix system 5 ? inclusive sobre eventuais “trabalhos
derivativos” ?, que por sua vez os teria comprado em 1992 da AT&T
(criadora do Unix), em outros termos. A Novell veio a público
na mídia, quando começou a chantagem, para dizer que
sua venda não incluiu tais direitos.

Escolha cerceada

A AT&T havia liderado um processo colaborativo com distintas
licenças e versões do código-fonte do Unix,
entre 1974 e 1983, através do qual pedaços de código
do FreeBSD (concorrente do Linux no mundo livre, originado na Universidade
de Berkeley) foram parar no próprio Unix System 5, bem antes
da expressão “pirataria de código” reverberar, pela
primeira vez, nas cordas vocais de qualquer advogado, jurista ou
juiz. Se cooperação depois vira pirataria e 75 milhões
de verdinhas legalizam o vampirismo, drácula agora quer três
bilhões, num passe de mágica juridiquesa: trabalhos
(alheios) derivativos!

O Estado precisa proteger a cidadania contra o cerco de interesses
monopolistas, que querem sempre da Justiça dois pesos e duas
medidas para o que dizem ser o pior dos crimes, nisso não
diferindo do crime organizado. O pior crime, dizem os monopolistas
hoje, é “a pirataria”, especialmente a digital. O Estado
precisa proteger a cidadania não porque é bonzinho,
mas por instinto de sobrevivência. Foi assim que se livrou
do penúltimo ciclo escravagista. É sadio que o Estado
encontre o caminho para se livrar do ciclo atual, e para isso Lula
foi eleito seu representante no Brasil.

No mundo digital, esse caminho começa com a proteção
ao direito à primeira escolha do software. À liberdade
de se dizer Como: como se quer um programa de computador
que faça algo do qual se necessita. Um cidadão é
muito pouco para fazer valer, individualmente, esse seu direito
no mercado, mas um governo, não. Quem acha que a sua liberdade
de fazer negócios é violentada se o governo decide
exercer essa liberdade de dizer como, no caso de um concorrente
poder assim atendê-lo, critica a decisão com o argumento
de que se está trocando seis por meia dúzia [<http://www.valoronline.com.br/valoreconomico/
materia.asp?id=895977>]. De que se trata de trocar um monopólio
por outro, para beneficiar compadres. Será mesmo?

O governo precisa de software. E para poder dizer de que espécie
de software precisa, está tendo que lutar contra o rito sacrificial
que imola o Estado e a cidadania na pirâmide de avareza construída
de outorgas de monopólio de idéias, outorgas genéricas
e abstratas o suficiente para se tornarem, nas mãos de advogados
com bolsos fundos e escrúpulos rasos, armas de destruição
em massa da liberdade semiológica. Especificamente, da liberdade
de expressão através de códigos e canais eletrônicos.
Mas essa liberdade é mesmo importante?

Cada um que julgue por si, e é isto que o PT está
fazendo com seu mandato. Códigos e canais eletrônicos
estão se tornando ubíquos e essenciais às atividades
econômicas e sociais, e cada vez mais cruciais para a segurança
do próprio Estado. E esta liberdade está sendo cerceada
com armas que atingem, com titulação de propriedade
alheia na munição, qualquer idéia imaginável
do que possa ser feito, através de software, nesses canais
e códigos.

Inquisidores d?antanho

Como a venda-em-um-clique, as equações de Euclides
(conhecidas há mais de dois milênios), o cursor desenhado
na tela por função lógica, formatos de arquivos,
de mensagens, a roda, e outras sandices que reeditam a Inquisição.
“Mas isso só vale nos EUA”, dizem os manés. E o que
será que os EUA querem da Alca, da OMC etc.? É só
ler onde isso é dito (Exemplo: <http://www.alca-ftaa.org/ftaadraft02/por/ngipp_1.asp#II.3.Artigo24>).

Com palavras de ordem oxímoras ? “propriedade intelectual”
?, os que empunham essas armas rebatizam a mesma fé cega
que moveu a carnificina medieval, pousando a mão invisível
do mercado no lugar da infalibilidade papal, para uma cruzada contra
a tessitura de uma revolução digital que não
conseguem explicar nem compreender (se compreendessem, seu grotesco
comportamento de manada não estouraria a bolha da internet
no mercado, em 2000).

E põem-se, com suas santificadas armas, a caçar a
produção intelectual autônoma e independente
que, sem as amarras de controles proprietários, pode ameaçar
as margens de lucro dos seus patrões, quase sempre ferozes
monopolistas. Uma produção que, se não for
contida, acabará por ampliar, sabe-se lá até
onde, seu legado digital de insofismáveis vantagens em estabilidade
e versatilidade, por ser livre das distorções mercadológicas
produzidas pelo desdém ao atributo não-rival do mundo
dos símbolos, onde os softwares habitam. O exemplo está
aí, com a internet.

Mas não é tudo uma questão econômica?
Pode ser. Este embate é uma encenação do processo
evolutivo em que modelos negociais competem. Em que modelos legados
são confrontados com modelos que surgem, e, competindo em
pé de igualdade com os mais aptos ao futuro, colapsam. No
negócio do software, a história mostra três
ciclos de modelos que foram dominantes, surgidos no início
das décadas de 40, 60 e 80.

Só que há algo inédito com o modelo surgido
no início dos anos 80, com a revolução do downsizing,
e cujos sinais de fadiga indicam hoje o fim do seu ciclo de utilidade.
Amealhou riqueza e poder como nenhum outro. Não só
entre os modelos anteriores: nenhum outro negócio na história
amealhou tanta riqueza em tão pouco tempo. E ao que tudo
indica, ele não vai dar mole pra nenhum pé de igualdade,
levando a questão da economia para a ideologia.

Seus soldados e generais, encastelados em escritórios de
patentes, de lobby e de advocacia da “propriedade intelectual”,
preparam-se para a sua cruzada, como novos Torquemadas, sem compreenderem
muito bem o poder emergente contra o qual se lançam. Não
o compreendem porque este poder emergente, o poder da sinergia cooperativa
no mundo virtual, é ponto cego na visão fundamentalista
de mercado, visão que os embriaga de arrogância e sentimento
de auto-suficiência, por ser expressão do mito dominante.

Mas esses militantes, como os inquisidores d?antanho, enfrentam
um sério obstáculo ao sucesso da tarefa a que se lançam,
tarefa que por tudo isto é, ao mesmo tempo, quixotesca e
trágica. Como atacar um inimigo visível apenas na
miragem que produzem em seu dogma? Como cercar um inimigo que se
posiciona, justamente, sobre o ponto cego do mito que constitui
sua fé? Só lhes resta a estratégia de terra
arrasada, que destrói o suporte das miragens.

Longa vida ao Mozilla!

Exemplo lapidar desta estratégia está nos autos do
“julgamento do século”, em que o governo federal americano,
mais 18 estados federados, processaram o maior desses monopólios
por prática predatória. Por que a Microsoft foi processada?
Não foi por ser um monopólio. Isto, por si só,
não é crime nos EUA. Crime é abusar da posição
monopolista para expandir ou consolidar monopólio. Ela foi
processada e condenada, em última instância em 8 de
outubro de 2001 por unanimidade, por abuso na sua expansão
monopolista sobre o segmento dos softwares de navegação
na internet.

Tendo chegado tarde na corrida do ouro da internet, devido ao fato,
documentado pela mídia, do seu então presidente não
ter (inicialmente) acreditado na possibilidade de sucesso de uma
tecnologia “que não tem dono” (a da internet), a Microsoft
se viu pressionada a queimar “etapas”. E pôs-se a extorquir
vendedores de computador que distribuíam, com o windows,
o navegador que já monopolizava o segmento, o Netscape, que
era gratuito porém inicialmente não-livre (hoje, sua
linhagem Mozilla é livre, sob licença GPL).

O promotor, do governo Clinton, abriu a ação. O juiz,
Thomas Penfield Jackson, tendo-a condenado e antes de apená-la,
não se conteve. Deu uma entrevista bombástica em que
comparou Bill Gates à figura de Napoleão. Foi o suficiente
para que a Microsoft conseguisse, já no governo Bush, removê-lo
do caso. A juíza substituta, Coleen Kollar-Kottely, estabeleceu
então a pena em 11/1/2002 <http://www.dcd.uscourts.gov/microsoft-2001.html>.

Esta pena estabelece o direito de a empresa cobrar, de autores
de outros softwares, pelo uso dos padrões digitais inteligíveis
aos seus programas, para compensar sua obrigação de
permitir a interoperação entre estes, obrigação
que perfaz outra parte dessa mesma “pena” <http://news.com.com/2100-1001-964278.html>.
O promotor do governo Bush aceitou sem recorrer, é claro.

A Microsoft consumiu bastante da sua munição em credibilidade,
tentando negar sua natureza monopolista, enquanto a expunha em suas
vísceras, nesta ação. Noutra, desta vez contra
a AOL, acaba de negociar um desfecho, pagando-lhe 0,75 bilhão
para deixar o software navegador Netscape morrer à mingua,
após a AOL ter tentado salvá-lo da asfixia, comprando-o
da emergente Netscape. Doutra parte, tal como um David teimoso,
sua versão GPL sobrevive pelo empenho da comunidade que mantém
o projeto Mozilla. Longa vida ao Mozilla!

Pérfida ironia

Insistir com o governo brasileiro para que siga gastando mais de
um bilhão anual com licenças de uso perfeitamente
descartáveis, enquanto o Estado sangra financeiramente, refém
de agiotas globais num sistema econômico à deriva,
porque, segundo os que vem se locupletando, “vai custar caro e dar
muito trabalho, só para trocar seis por meia dúzia”,
é terrorismo econômico. É a velha história
de quem detém o poder econômico: “Vamos antes crescer
o bolo para dividir depois.”

Depois quando? As estratégias do terrorismo econômico,
entretanto, têm efeito temporal limitado contra quem já
hipotecou seu futuro. Será que a nova política de
TI do governo PT é mesmo trocar seis por meia dúzia?
Daria no mesmo um monopólio digital escravagista das idéias,
ou um monopólio de idéias que assegure a democratização
do poder imanente da revolução digital, e das idéias
em geral como bem comum?.

Trata-se de uma escolha que envolve distintas métricas de
segurança e de responsabilidade. Não há como
comparar, mas há que se escolher. Não há revolução
sem vítimas, e precisamos decidir: qual monopólio
nos serve, ao qual serviremos. Mesmo que um deles afirme serem ambos
farinha do mesmo saco, a escolha é nossa, é urgente,
e vale o trilho do futuro num mundo digitalizado.

Para escolhermos, talvez seria melhor pensarmos na farinha não
em sacos, mas em cumbucas. Numa cumbuca chamada software, junto
com a farinha, haverá também duas castanhas. A primeira
castanha se chama autoria, a segunda se chama propriedade. Alguns
programadores, dados a macaquices, descobriram que faz mais sentido
largar a segunda para melhor se servirem de ambas, separadamente.
E estão, com isso, incomodando os que penhoram ou alugam
benefícios casados no lastro das duas, os que querem ser
donos das duas castanhas ao mesmo tempo e, literalmente, não
abrem mão.

Uma das pérfidas ironias na citada matéria da IstoÉ
Dinheiro
bem ilustra o estado de espírito dos que se
metem com software, querem as duas castanhas, não abrem mão,
e põem-se a gritar ao verem seus clientes atrás das
cumbucas que só têm uma castanha dentro. Ao falar de
uma das primeiras iniciativas da nova política de TI do governo,
pintando-a com cores de devaneio populista-stalinista, os autores
fazem uma troca aparentemente ingênua, mas capciosa. Falam
do compromisso do Serpro de refazer com software gratuito o portal
de compras do governo federal (ComprasNet), quando na verdade o
compromisso do Serpro é refazê-lo com software livre.

Quizumba e cachorro magro

A gratuidade é característica natural das licenças
de uso de um software livre, mas não é necessária
nem determinante para fazê-lo livre. Existem softwares proprietários
que, sendo proprietários, não são livres, mas
têm licença de uso gratuita (Internet Explorer, Zip,
Acrobat). Existem softwares livres com mais de um tipo de licença,
uma paga e outra gratuita (MySQL, Star/OpenOffice). Software livre,
para quem a ficha ainda não caiu, é aquele cujo autor
largou a segunda castanha dentro da cumbuca.

Software livre é aquele cuja licença de uso não
trata da sua propriedade, mas de autoria, integridade, formas de
expressão (acesso irrestrito ao código-fonte para
uso próprio), redistribuição (condições
de reuso do código fonte para uso de terceiros) e uso legítimos.
No caso do ComprasNet, o principal motivo para se buscar esse compromisso
do Serpro são as formas de expressão do software,
e não a gratuidade da licença. Por quê?

Porque softwares são feitos por seres humanos, e não
por seres angelicais. E porque ComprasNet não é um
simples editor de texto, é um sistema de compras. Se um software
vai automatizar processos de compra, é necessário
que o usuário-pagador conheça, exatamente, como os
procedimentos serão conduzidos, se quiser evitar surpresas
desagradáveis. Isto se chama auditoria. Outrossim, não
se faz auditoria em software sem acesso irrestrito ao código-fonte,
mais a possibilidade de se compilar esse código fonte no
ambiente de produção. Alguém se lembra do “botão
macetoso” no software do painel do Senado, ou querem se fazer todos
de zonzos?

Os que queiram hão de reconhecer, todavia, o que um dos
maiores problemas enfrentados pelo Estado hoje é o dos crimes
financeiros. Artigo de Luiz Orlando Carneiro no Jornal do Brasil
de 8 de maio de 2002 (pagina 14) nos alerta: quatro anos de lei
contra lavagem de dinheiro em vigor resultaram em apenas uma condenação;
87% dos juízes que poderiam julgar tais crimes jamais viram
um processo tipificando-o. Basicamente, devido a dificuldades de
se produzir e coletar provas. E uma das dificuldades básicas
são softwares inauditáveis.

Todos são livres para atacar o governo pelo empenho em tornar
auditável seu sistema de compras pela internet. Mas terão
que explicar as razões, de forma bem mais convincente do
que as insinuações na citada matéria da IstoÉ
Dinheiro
. Se for porque o fornecedor do software atual não
pode mostrar seu código-fonte, devido ao fato de o código-fonte
desse software ser, nas palavras dos autores, “a alma” do seu negócio
(do software), terão que explicar também que negócio,
exatamente, é esse, que presume a confiança cega que
existia no tempo em que se amarrava cachorro com lingüiça.

A história nos dirá como acaba esta quizumba entre
macacos e suas castanhas, em tempos de cachorros magros.

(*) Professor do Departamento de Ciência da Computação
da Universidade de Brasília