DIÁRIO DE NOTÍCIAS
"O público, esse desconhecido", copyright Diário de Notícias, 27/7/03
"Entre as mensagens ultimamente chegadas à provedora, a de Emanuel Queirós, ?35 anos, empresário de artes gráficas e leitor diário do DN desde os 12 anos?, possui a particularidade de não se limitar a apontar criticas ao jornal, propondo, também, soluções. Confessando que sente ?muita tristeza? por ?ir mudar de jornal?, espera, contudo, que a sua ?missiva contribua para inverter essa situação?. Em sua opinião, ?o DN tem sido ao longo destes anos (?) o jornal de maior qualidade (?) no panorama jornalístico nacional, graças à excelente selecção de conteúdos?. Contudo, ?após a última revolução da imagem gráfica, estas (?) características que distinguiam o DN foram quase eliminadas. A selecção, o conteúdo e a distribuição das notícias pelas páginas retiraram muita da grande qualidade e do interesse que sempre teve?.
Afirmando que ?gostaria muito de continuar a ler o DN?, o leitor sugere ao director do jornal que ?corrija? alguns aspectos, para que ele ?e muitos milhares de portugueses fiéis ao DN? continuem ?a ter o prazer da boa leitura?.
Vejamos as suas propostas: ?Repor a selecção, a distribuição e os conteúdos que existiam antes da última revolução gráfica, mantendo o design actual?; ?eliminar muitas das páginas de opinião (?), pois muitas delas não têm interesse para o leitor, independentemente da sua formação? (a mensagem é de 3/7, pelo que não abrange as novas colaborações do DN, iniciadas em 8/7); ?repor o caderno de economia à segunda-feira?, já que ?muitos leitores não lêem, ou não conseguem obter, o DN aos sábados?; publicar, ?num qualquer dia da semana, um caderno de informática?. Afirmando poder ?falar por muitos?, o leitor tem ?a certeza? de que ?se estas alterações forem efectuadas (?) a vontade e o grande prazer que era a leitura do DN, regressará, tal como a subida de audiências?.
Em suma, o que o leitor desejava era que o DN mantivesse o grafismo do actual formato, mas regressasse aos conteúdos anteriores à introdução dessas inovações, datadas de Janeiro deste ano. Ora, os novos formato e grafismo estão associados a um modelo de jornal com mais imagem, cor e ?movimento?, o que pressupõe textos mais reduzidos e fragmentados. Contudo, não é impossível conciliar um grafismo vivo e ?estimulante? com ?modelos de tratamento da actualidade inspirados na ?compreensão? e no ?serviço?, mais do que na mera informação?, como escreveu o director do jornal, no seu editorial de 9/7, intitulado Os jornais generalistas à procura de um futuro.
As sugestões do leitor suscitam algumas reflexões sobre a importância de que se reveste, para um jornal, o conhecimento do seu público.
De facto, um jornal, tal como uma obra, só adquire pleno sentido se as suas potencialidades forem activadas por aqueles que as descobrem e se apropriam delas. Os momentos menos bons na vida de um jornal podem constituir uma oportunidade para uma reflexão profunda sobre quem são os seus públicos; que tipo de informação é adequada a esses públicos e que influência pretende o jornal ter no espaço público.
Este leitor não é o primeiro a propor, por exemplo, o regresso do caderno de economia às segundas-feiras, ou a criação de um suplemento de informática. Outros fazem, também, frequentemente, sugestões. Ora, independentemente da sua pertinência e do grau de ?representatividade? dos autores, é importante que o jornal compreenda o significado da atitude.De facto, trata-se de um tipo de participação que provém de um público consciente da sua existência, que toma posição e se propõe defender certos valores respeitantes a um ?bem? comum, que neste caso é o jornal.
Este público não se confunde com a massa amorfa, redutível a ?índices?, sem voz espontânea, a que se chama ?audiência?. A audiência é reactiva, responde a uma oferta. Pelo contrário, o público é reflexivo e não pode ser apreendido independentemente de factores relacionados com a sua experiência e a sua biografia. De facto, apesar do aperfeiçoamento dos métodos de pesquisa, sobretudo inspirados no modelo do ?consumidor? construído pelo marketing e pela publicidade, o conhecimento assim obtido depende cada vez menos da intervenção directa do púuacute;blico. Os dispositivos tradicionais usados nos estudos de audiência fornecem a ideia de um público anónimo, instantâneo, atomizado, redutível a práticas simples e descritíveis.
Ora, por muito úteis que sejam, essas pesquisas não substituem a contribuição do público ?visível?, que quer participar no seu jornal. As suas reacções podem ser contraditórias, dispersas e irreconciliáveis. Mas, como mostram os estudos de recepção, a diversidade de leituras e de modos de construção de significados corresponde à diversidade de públicos.
O desafio está, pois, em saber se para além do público ?invisível? mostrado nas sondagens não existe, disponível para ser ouvido, um público ?visível?, que se manifesta, reage e critica.
A experiência mostra que esse público existe.
Bloco-Notas
Ainda o público
As manifestações do público relativamente aos media são mais numerosas e interessantes do que, por vezes, se pensa. O investigador francês Pierre Sorlin, num artigo intitulado Le mirage du public, publicado em 1992, na Revue d?Histoire Moderne et Contemporaine, afirma que desde o século XIX os leitores escrevem para os jornais, fenómeno que se estendeu à rádio e à televisão, no século seguinte. Em 1930, afirma Sorlin, a BBC recebia cerca de duas mil cartas por semana e, nesse ano, o canal americano NBC recebeu cinco milhões.
Cartas no lixo
Segundo o autor, no decurso dos anos 80, um estudante que preparava uma tese sobre o público do canal indiano Doordashan, encontrou milhares de cartas de leitores, algumas em envelopes ainda fechados, amontoadas, desbotadas e abandonadas como lixo, ao sol e à chuva. Desse conjunto de ?mensagens em sofrimento?, como lhes chama Sorlin, o autor tira uma conclusão: não serviram para nada. Algumas cartas foram lidas e comentadas ao microfone para dar a ideia de que eram levadas a sério, mas o correio nunca foi sistematicamente tratado e ninguém o teve em conta. Outras análises e estudos mostram, também, a profunda indiferença das empresas de comunicação social face aos leitores, ouvintes e telespectadores ?socializados?, isto é, dotados de palavra e com capacidade de manifestar gostos e preferências.
Público e audiência
Num estudo sobre a recepção, destinado a analisar o público de um magazine de informação televisiva, intitulado Nationwide, Charlotte Brundson e David Morley teorizaram sobre a diferenciação entre o ?público? e a ?audiência?. Nesse estudo, os autores fizeram a demonstração empírica da diversidade de leituras que uma mesma emissão provoca, a qual pode ser lida, quer de acordo com as intenções dos produtores (leitura ?dominante?), quer de uma maneira oposta a essas intenções (leitura ?de oposição?), quer oscilando entre aceitação e contestação (leitura ?negociada?).
Espectadores activos
Brundson e Morley viram que, na pesquisa, as leituras ?de oposição? vinham quase todas de pequenos grupos de espectadores capazes não só de recusar ideias contidas nas notícias, mas de as reformular, apelando à sua própria visão da realidade social. Esses espectadores, minoritários, possuíam a particularidade de ser membros activos de sindicatos; formavam um meio estável e estavam conscientes da sua identidade militante, não hesitando em tomar posição e afirmar valores que estavam dispostos a defender. Formavam um ?público? e as suas intervenções demarcavam-se completamente das dos outros espectadores interrogados no estudo. Para os autores essa é uma distinção essencial."