ROBERTO MARINHO (1904-2003)
Chico Bruno (*)
No mesmo 5 de agosto em que Jorge Amado foi convocado para uma nova missão, um outro brasileiro, Roberto Marinho foi chamado para lhe fazer companhia. Ambos são imortais por desígnios dos mortais. Jorge, de São Jorge dos Ilhéus, pela sua obra literária, que percorreu o mundo. Roberto, por sua paixão pelo jornalismo, herdada do pai Irineu Marinho, transformou o jornal carioca O Globo em embrião para a criação do maior complexo de comunicação social da América Latina ? as Organizações Globo.
Talvez o sonho de Irineu Marinho, falecido aos 49 anos, logo após o lançamento do Globo, no distante agosto de 1925, coincidentemente o mesmo mês do falecimento do filho Roberto, fosse o de consolidar na mídia carioca um jornal independente. Como primogênito dos Marinho, Roberto, com apenas 21 anos, foi incumbido de tornar realidade o sonho do pai. Já demonstrando sabedoria, o jovem Roberto Marinho decidiu entregar essa missão ao redator-chefe do Globo, Euclides de Matos, preferindo desenvolver um aprendizado, no próprio jornal, que o tornasse capaz de dirigi-lo no futuro, o que veio a ocorrer em 1931, com a morte de Euclides.
A partir daí, Roberto Marinho demonstrou toda a sua paixão pela comunicação social, não se satisfazendo apenas com a mídia impressa: trilhou os caminhos do rádio, da televisão e, mais recentemente, o de todas as modernas tecnologias, sem nunca perder de vista seu instinto de repórter.
Roberto Marinho é personagem importante na história da República, interlocutor assíduo dos acontecimentos centrais dessa trajetória. Um homem que nunca deixou de se posicionar contra ou favor. Um cidadão que nunca se envergonhou dos rótulos que lhe foram conferidos pelos adversários. Muito menos, pela omissão de fatos importantes da vida política brasileira, como as greves de 1979, as Diretas-já, pela manipulação do debate de 1989, quando beneficiou a candidatura de Collor em detrimento da de Lula, pelo apoiamento explícito aos golpes de 1930 e dos generais em 1964, pela campanha contra Getúlio Vargas, eleito pelo voto direto, que culminou com o trágico suicídio do presidente e, muito menos, pela fraude da Proconsult, gestada por um executivo da Globo. Foi sempre cristalino em suas posições e, até bem pouco tempo, os veículos de comunicação sob seu comando comungavam a mesma posição, religiosamente.
Na medida em que foi consumindo seus anos de vida, o amadurecimento e a redemocratização do país trouxeram-lhe a clareza de que seus empreendimentos jornalísticos não mais lhe pertenciam. Tornaram-se propriedade da cidadania brasileira. Com esse entendimento, quem sabe a contragosto ou pela necessidade de se adaptar à nova realidade brasileira, sob pena de sucumbir, Roberto Marinho decidiu que suas empresas de comunicação não mais seguissem suas escolhas pessoais e políticas, mas se colocassem a serviço da cidadania, realizando definitivamente o sonho de Irineu Marinho de independência jornalística.
Um legado
Faço parte de uma geração que discordou mais das posições de Roberto Marinho do que com elas concordou. Nós éramos o bem e ele, o mal. Por ser um cidadão de posições, sem nunca ter medo de expressá-las, era natural que tivesse adversários, e ele os teve às pencas, entre os quais, alguns ainda vivos, vale ressaltar Leonel Brizola, Saturnino Braga, Hélio Fernandes e Luiz Inácio Lula da Silva. Tal perfil é responsável por uma acusação que ninguém jamais ousou fazer-lhe, a de hipocrisia. Talvez possa ser feita a alguns de seus adversários, que dele se aproximaram com o intuito de se aproveitar de seus veículos de comunicação.
Ele defendia suas posições políticas da mesma forma como sempre defendeu seus companheiros de trabalho, mesmo discordando da ideologia professada por alguns deles. Foi a partir dessa atitude, correta, de encarar o particular de cada um que Roberto construiu sua vida. Para ele, o importante era a lealdade dos funcionários com seus veículos de comunicação. Muitos estão vivos para confirmar essa verdade, principalmente os que labutaram na redação do Globo durante o regime militar.
O anticomunismo expressado por Roberto Marinho não era empecilho para que muitos comunistas trabalhassem em seu jornal: para ele o vital era ter ao seu lado, em suas empresas, sempre os melhores profissionais. Um exemplo disso foi a contratação de Paulo Francis, seu algoz no Pasquim, como correspondente da TV Globo em Nova Iorque. Essa foi uma de suas virtudes. Talvez a mais importante de todas, quem sabe mais importante do que a de construtor do maior conglomerado de comunicação social da América Latina, construído com o auxílio de operações até hoje nebulosas, entre elas a compra da TV Paulista, a cassação das concessões públicas da TV Excelsior, da rádio Mayrink Veiga, da maioria dos canais da Rede Tupi de Televisão, do seu concorrente direto Assis Chateaubriand, fundador da televisão brasileira, em 1950, e do acordo Time-Life para implantação da Globo no Rio.
Mas a virtude de ter ao seu lado sempre os melhores profissionais foi, sem sombra de dúvida, a mola propulsora que transformou o Globo, a Rede Globo de Televisão e o Sistema Globo de Rádio nos melhores veículos de comunicação do país.
A prova mais recente de sua paixão pelo jornalismo, que sempre esteve acima do seu lado empresarial, foi a implantação, no início dos anos 1990, da Central Brasileira de Notícias, a CBN. Ao colocá-la no ar, remou contra a maré: naquela época predominavam as rádios musicais, mas ele não esmoreceu, seguiu em frente, bancou a idéia, pois sabia que era chegada a hora de implantar no país uma rádio que só tocasse notícia. Hoje, a CBN é uma rede nacional de rádio que orgulha os profissionais do jornalismo brasileiro, pois só toca notícia.
Roberto Marinho partiu. A seu favor fica um legado. Um conjunto de obras no campo da comunicação social, da educação e da cultura. Sem entrar no mérito de um julgamento, fica a certeza de que morreu um jornalista, que sempre foi antes de mais nada e acima de tudo um jornalista.
(*) Jornalista