Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

K-Pax ou signos em rotação

ROBERTO MARINHO (1904-2003)

Claudio Julio Tognolli (*)

O bruxo da Calle Maipú já notava que o sobrenatural, se ocorre duas vezes, deixa de ser aterrador. Portanto o que se segue estará direcionado, judiciosamente, aos que sofrem da
síndrome de K-Pax, o filme, ou melhor dizendo: aos que chegaram à Terra agorinha. Ou aos que são, ainda e tão-somente, beletristas abúlicos na arte de decifrar as entrelinhas constantes de cada linha do que a grande imprensa publica.

Em 1914, Henry Ford criou o Departamento Sociológico na fábrica de motores da Ford. Mesmo assim, nota Christopher Lasch, ele considerava a supervisão da vida privada dos operários meramente como um meio de fazer deles homens sóbrios, seres produtores "diligentes e parcimoniosos". Anos levaram os mesmos empregadores para notar que não era boa coisa ter em seus peões figuras refratárias ao álcool, ao tabaco e "contra a dissipação".

O mesmo Lasch nos deu sempre os mapas desse construto: tornar o peonato produtor, ele também, uma peça fundamental no consumo. A posse é subordinada à aparência. Como diria Neném Prancha, "quem pede, recebe; quem se desloca, tem preferência": a movimentação, portanto o espetáculo, substitui a essência. Criamos uma série de repórteres
atrabiliários, coléricos, em cujo trabalho a forma da notícia se substitui à essência: não é para menos que o ruído na informação, a imagem "suja", o microfone eivado de feedbacks
e grunhidos, acabam erigindo a noção de que o rush-rush, vulgo correria, é a maior credibilidade de que aquilo é uma notícia mais importante do que as outras.

O mesmo Lasch já nos dera as pistas, ainda nos anos 1980, de que o futuro da publicidade não seria apenas vender necessidades não necessárias, mas criar a figura do consumidor perpetuamente insatisfeito, intranqüilo, ansioso e entediado. Ou, como escreveu ele:


"A publicidade defende o consumo como a resposta aos antigos dissabores da solidão, da doença, da fadiga, da insatisfação sexual; ao mesmo tempo, cria novas formas de descontentamento peculiares à era moderna. Joga sedutoramente com o mal-estar da civilização industrial. O consumo promete preencher o doloroso vazio; em conseqüência, a tentativa de cercar as mercadorias de uma aura de romance; com alusões a lugares exóticos e a vívidas experiências".


Por que falar tanto em Lasch? Porque ele foi o primeiro a apontar, num livro que trata de tudo menos de jornalismo, que na propaganda ? como na publicidade, como na mídia ? a
consideração importante não é se as informações descrevem corretamente uma situação objetiva, mas se esta soa verdadeira (The Culture of Narcisism, 1979, W.W. Norton,
Toronto). Jacques Ellul já notara que, em 1942, os alemães não revelaram que o general Rommel estava ausente da África do Norte, no momento da vitória de Montgomery, porque "todos teriam considerado este fato uma mentira para explicar a derrota e provar que Rommel não havia sido derrotado". Ou seja: a verdade tem de ser suprimida, nota Lasch, se soar como propaganda. Já dizia um livro usado pelos aliados na Segunda Guerra, refere ele, que "a única razão para suprimir uma parte das notícias é se ela for incrível".

Para Lasch, um público educado deseja fatos e não alimenta senão a ilusão de ser bem informado, por isso "o moderno propagandista evita usar slogans retumbantes; raras vezes apela para um destino mais elevado; poucas vezes apela para o heroísmo e o sacrifício, ou faz lembrar à sua audiência o passado glorioso. Ele se atém aos fatos. A propaganda funde-se, assim, à informação".

No cravo, na ferradura

Tratando-se do ethos da Globo, tais interpretações ganham alguma força adicional. Já é tido e havido com um clichê global conferir à notícia ares de espetáculo (nas já repassadas teorias de Pierre Bourdieu e Guy Debord). Recentemente, nessa dança de signos em rotação, inverteram inteligentemente o papel: conferir ao espetáculo ares de notícia, como foi Gloria Perez ter colocado depoimento de adictos de carne e osso enxertados no meio da novela O Clone. Na semana retrasada, quando Vanessa Gerbelli levou os tiros no centro do Rio também para a novela das 8, uma novidade: a espetacularização virou notícia, previamente revestida de declarações do autor Manoel Carlos aos telejornais globais,
no qual este, esperto, revestia o espetáculo com ares de cidadania consentida ou protesto engajado contra a violência.

OK, a Globo continua mestra na disposição dos signos em rotação oferecidos pelos seus produtos, seja novela ou reportagem. Mas os jornais impressos da Globo mostraram-se semana passada não estar ao pé de igualdade das novelas, no quesito invencionices state of the art, ou "último modelo de fábrica". Porque as publicações globais cometeram o erro
justamente tão apontado pelos marqueteiros linhas acima, citados por Christopher Lasch: venderam os feitos do finado Roberto Marinho sob a forma de slogans retumbantes, de
destino elevado, de passado glorioso. Repitamos: a verdade tem de ser suprimida se soar como propaganda, como disse Lasch. Nesse sentido, pipocaram na internet reações contraculturais à propaganda da Globo.

Na semana passada, ao ver a respeitosa manchete do Pasquim sobre a morte de Roberto
Marinho, por exemplo, tinha até jornalista indo a banco de dados, no Rio de Janeiro, na tentativa de escanear um Pasquim de 1971. Tratava-se de uma reportagem assinada pelo jovem Paulo Francis, em que este fazia um perfil de Roberto Marinho sob o título "Um homem chamado porcaria" ? no qual as letras lembravam motivos fecais entranhados de moscas verdes e gordas.

Tudo isso veio obviamente (a explicação é para quem chegou de K-Pax agora) como reação natural de quem se vexou com a notícia revestida de propaganda. Se Lasch estiver certo, e
sempre esteve, os gurus da mídia dos EUA teriam feito o contrário: revestir a propaganda de notícia.

De uma ou de outra forma, se tanto se deu no cravo, o golpe na ferradura veio em 34 linhas justificadas de texto da CartaCapital, à página 18, na edição datada de 20/8/03 e que chegou aos assinantes no sábado, dia 16. Aliás, golpe na ferradura curiosamente dado por cavalo bretão com boa fama de ser xucro. Vejamos:


The Economist, a mídia e o dr. Roberto

A mais influente revista destoa da imprensa brasileira ao analisar o legado do fundador da Globo

A revista inglesa The Economist registra a morte de Roberto Marinho na edição que vai às bancas nesta sexta-feira 15. Conhecida por sua independência, invejável capacidade analítica e humor refinado, a revista dedicou a seção People a um epitáfio na contramão das derramadas biografias da quase totalidade da imprensa brasileira.

Na coluna dos reconhecimentos, os ingleses anotam o papel de Marinho e da Rede Globo na unificação do Brasil: "No fim do dia, dr. Roberto poderia, com razão, proclamar que uma fração importante dos 175 milhões de brasileiros junta-se para ver a Rede Globo (…) "Rede Globo e você: tudo a ver" é constantemente repetido durante os intervalos comerciais.

Sempre impiedosa com seus personagens, a revista criticou duramente Silvio Berlusconi e não poupou a BBC no episódio do suicídio do cientista David Kelly. Marinho foi tratado com elegância. Mas não foi poupado de observações ferinas que o apresentam "como um habilidoso homem de negócios que gostava de ser chamado de jornalista… e um amigo do regime militar que se dizia liberal".

Dr. Roberto, diz a matéria, costumava dividir seus conterrâneos entre os "patriotas" e os "maus brasileiros". Mas admitia que as pessoas pudessem saltar de uma categoria para a outra. As Organizações Globo hostilizaram Lula nas eleições presidenciais de 1989, 1994 e 1998. Na última eleição, "a Globo tratou a campanha de forma equilibrada. Com a morte de Marinho, cessaram as hostilidades, Lula decretou três dias de luto oficial e agora todos são patriotas".

Sobre os programas da Globo, o texto fulmina: "Homem orgulhoso e apenas humano, é pouco provável que Roberto Marinho tivesse consciência de que sua fantástica audiência fosse fomentada a lixo e, menos ainda, que seus auxiliares usassem tal palavra em sua presença. Se isso tivesse ocorrido, ele poderia argumentar que pelo menos era um lixo bem-feito".


(*) Repórter especial da Rádio Jovem Pan, professor da ECA-USP e do Unifiam (SP), membro do International Consortium of Investigative Journalists (www.icij.org)