ROBERTO MARINHO (1904-2003)
"Rosebud!", copyright Veja, 13/08/03
"A morte do presidente das Organizações Globo, Roberto Marinho, convida a pensar nessa categoria chamada ?poder?, bem como na sorte dos que a detêm. O Brasil teve, no século XX, dois comandantes de conglomerados de comunicações aos quais se costuma atribuir dose monumental, até mitológica, de poder. O primeiro foi Assis Chateaubriand, dono de uma cadeia de jornais e pioneiro da televisão. Chateaubriand pintou e bordou por uns bons quarenta anos, da República Velha a princípios dos anos 60. Roberto Marinho, embora com outro temperamento e outro estilo, representou o mesmo papel pelos quarenta anos seguintes, desde que criou a Rede Globo. Ao anúncio de sua morte, a Câmara dos Deputados interrompeu os debates sobre a reforma da Previdência para um minuto de silêncio, e o chefe da delegação brasileira aos Jogos Pan-Americanos determinou que os atletas se exibissem de luto. Marinho não ocupava nenhum cargo oficial, nem era um ídolo popular. Ainda assim, não se duvidou um minuto sequer de que se tratava de um morto credenciado às honrarias mais solenes. Honrava-se o poder. Nenhum outro brasileiro, inclusive os políticos, e entre os políticos inclusive o presidente da República, encarnava, como ele, a idéia de poder.
Segundo o sociólogo alemão Max Weber, numa famosa classificação, o poder pode ter base na lei, no carisma ou na tradição. Na lei, quer dizer, nas instituições do Estado, o poder de Marinho nunca repousou, mesmo porque ele nunca foi detentor de mandato ou cargo público. No carisma tampouco, pois não o possuía. Seu poder, se é para ficar nessa tríade, seria antes de ordem tradicional, qual seja – fundava-se nas estruturas e valores do tipo patriarcal. Ele era um patriarca. Como tal, a autoridade era incontrastável. Na melhor escola dos patriarcas, regia as pessoas de seu entorno como a uma família, e dominava a arte de ser bondoso ou severo, e de distribuir prêmio ou castigo. Mas atenção: era um patriarca cujo poder se assentava numa rede de comunicações montada com os recursos da mais avançada tecnologia, e moldada em padrões de alto apuro técnico. Ou seja: a tão antiga e personalista figura do patriarca atrelava-se, nele, a essa entidade ultramoderna e impessoal que é a indústria de comunicações de última geração. Daí talvez as contradições da Rede Globo, ao mesmo tempo retrógrada e avançada – retrógrada quando por exemplo se pôs a serviço do regime militar, e avançada quando, ao distribuir informação como nunca antes no país, contribui para a promoção e a conscientização da população.
Roberto Marinho, o ?doutor Roberto?, foi poderoso até quando parecia derrotado. Seu lado retrógrado fez com que a Globo boicotasse enquanto pôde a campanha das diretas. Mas a Nova República que se seguiu foi um período em que mandou como talvez nunca antes. O economista Mailson da Nóbrega só foi nomeado ministro da Fazenda depois de sabatinado por ele. Ao mesmo tempo, fortalecia-se o mito. Atribuía-se a ele a frase: ?Se um dia eu vier a faltar…? Doutor Roberto, não bastasse a imortalidade da Academia Brasileira de Letras, flertava com a imortalidade propriamente dita. Seu original estilo de poder, cruzamento híbrido da autoridade patriarcal com as exigências da moderna civilização das comunicações, não pode ser repetido. Enquanto durou, ele simbolizou as próprias contradições do país, disputado, como num cabo-de-guerra, entre as forças do atraso e do avanço. Mas patriarcas como ele só os nascidos e formados em outra era. Nos próximos quarenta anos o Brasil pode continuar a ter organizações fortes como a Globo, mas não há mais clima para um outro Roberto Marinho, como nos últimos quarenta.
A grandeza do filme Cidadão Kane, de Orson Welles, repousa no fato de mostrar a solidão última que habita mesmo o mais poderoso dos homens. Kane, um dono de jornais capaz de eleger e destronar políticos, admirado, temido e rico, lá no fundo era atormentado pelos sonhos e frustrações da infância. ?Rosebud?, murmurava ele, nos momentos de introspecção, como quem pronuncia uma palavra mágica. ?Rosebud? (?Botão de Rosa?), fica-se sabendo no final do filme, era o nome do trenó com que brincava quando criança. Não há notícia de palavra mágica com que Roberto Marinho expressasse alguma antiga afeição ou fantasia desfeita. Mas ficou, para um Orson Welles que venha a filmar-lhe a biografia, o caso amoroso com dona Lily de Carvalho, iniciado quando tinha 84 anos. Ele contou que se apaixonara por ela cinqüenta anos antes. Enfim, a conquistava. O que sugeria a idéia de que por trás do patrão da Globo, capaz de sacudir a República e fazer tremer os presidentes, subsistiu, por cinqüenta anos, um homem espicaçado pelo pensamento da impossível namoradinha. Rosebud! Sorte para Roberto Marinho, o vitorioso de sempre, mesmo quando a vitória vinha tarde, que acabou seus dias ao lado de Lily, com quem passeava de mãos dadas como um colegial."
"Um grande legado", copyright Folha de S. Paulo, 7/08/03
"Ao dirigir durante mais de 70 anos, inicialmente um dos maiores jornais do Rio de Janeiro, e, mais tarde, o maior grupo de comunicação do Brasil e da América Latina, é natural que Roberto Marinho nem sempre tenha agradado a todos. Sua obstinada fidelidade ao jornalismo, contudo, foi maior, bem maior do que qualquer divergência ou incompreensão que tenha provocado na opinião pública nacional.
Nos tempos difíceis, logo após a morte de Irineu Marinho, que fundara ?O Globo? vinte e um dias antes, ele valorizou antes de mais nada os profissionais que trabalhavam com seu pai. Era famosa a marmita em que ele comia na velha redação do jornal, no Largo da Carioca.
Foi um dos maiores nomes do empresariado brasileiro, mas nunca deixou de ser o jornalista, assombrosamente dotado de uma visão da notícia, do fato, da opinião. Daí sua participação no rádio e, posteriormente, na televisão, onde imprimiu um padrão de qualidade que ficará como um marco na história da comunicação de todo um continente. Soube trabalhar com amigos, um dos segredos de seu sucesso. Nos anos difíceis do regime autoritário, abrigou profissionais vetados pelos donos da situação.
Tornado poderoso pelo seu esforço, ele colocou o prestígio de seu nome e de suas empresas a serviço de causas humanitárias e culturais. Com toda a justiça, seu nome figurará sempre entre os maiores brasileiros de seu tempo. E a consagração que soube merecer constituirá o grande legado que ele deixou para sua família, para suas empresas e para a história do jornalismo brasileiro."
"Confidências da lenda numa tarde de agosto", copyright Jornal do Brasil, 8/08/03
"A voz grave ecoava sem inflexões notáveis, no ritmo pausado exigido pela dicção que o impediria de apresentar telejornais da Globo. Vírgulas viravam longos pontos. Alegre, exibia um olhar luminoso. Mas o sorriso nunca ia além do rascunho.
Roberto Marinho foi um homem tímido, pouco inclinado a efusões e derramamentos. E também um romântico capaz de silenciosas audácias, o inventor de sonhos, o jardineiro das nuvens.
Poucas vezes o vi tão feliz quanto em agosto de 1994, quando acompanhei o editor José Mário Pereira, jovem amigo da lenda, numa visita ao Jardim Botânico. Encontrara o dono da Globo antes, tornaria a vê-lo depois. Mas, naquela tarde, ali estava um Roberto Marinho especial.
Mal começou a conversa, um telefonema de Lily, com quem se casara cinco anos antes, induziu o anfitrião a deixar de lado os problemas do Brasil. Nada era mais importante que aquele chamado.
Lily queria dizer a Roberto que se emocionara com a dedicatória escrita pelo marido no livro que lhe dera de manhã. Ele sussurrou a resposta com fisionomia enternecida. Desligado o aparelho, fez questão de contar a história de amor cujo prólogo ocorreu quando o futuro dono da Globo tinha menos de 30 anos e foi retomada quando passara dos 80. E retomada com o ardor por tanto tempo represado. Reconheceu que, ao se casar com Lily, encurtara as horas consumidas no trabalho para entregar-se às traças da paixão.
– Eu tirei o Roberto da toca – sorria Lily ao festejar a mudança de hábitos.
Fora da toca de jornalista, passou a freqüentar com a mulher os melhores salões, as boas festas, a fazenda de Lily, o apartamento em Nova York – e a oferecer jantares e recepções na mansão no Cosme Velho.
– Estou amando – confessou.
Faltavam quatro meses para completar 90 anos.
Uma pintura natural na sala do trono
A plena restauração do sistema democrático acionara a campanha para a eleição direta do presidente – espetáculo que a República brasileira não vivia desde 1960, quando emergiu das urnas a extravagância chamada Jânio Quadros. Naqueles idos de 1989, o perigo parecia surgir de uma trilha à esquerda: o ex-governador Leonel Brizola, do PDT, assumira o segundo lugar nas pesquisas e estreitava a cada minuto a diferença a separá-lo de Fernando Collor, líder nas pesquisas e preferido dos conservadores.
– O que vai acontecer se Brizola virar presidente? – perguntou um jornalista ao hoje deputado Wellington Moreira Franco.
Moreira, que não apoiava Collor mas era especialmente avesso ao dono do PDT, foi de um laconismo exemplar:
– Nada.
– Mas alguma coisa Brizola fará depois de eleito – insistiu o jornalista.
– Fará duas visitas – previu Moreira Franco. – Ao doutor Roberto Marinho e ao ministro do Exército, nesta ordem.
Como Brizola perdeu, foi Collor quem seguiu a programação anunciada. Mas o derrotado, que passara parte da existência entregue ao esforço de satanizar Roberto Marinho e tudo que se vinculasse ao logotipo das Organizações Globo, aproveitou a primeira chance de infiltrar-se na agenda do homem mais poderoso do Brasil. No começo de 1990, conheceu o gabinete mitológico no prédio da Rua Lopes Quintas, no Jardim Botânico. Em agosto de 1994, as anotações das secretárias contabilizavam nove visitas do persistente gaúcho.
Nunca foi fácil obter espaços na agenda de Roberto Marinho. A partir dos anos 80, Roberto Marinho tornou-se um dos raros homens do mundo a circular por altitudes que os ponteiros do relógio (eventualmente, até o calendário gregoriano) não logravam alcançar. Autonomeado governador da própria agenda, passou a conversar com quem quisesse, pelo tempo que desejasse. Se já era difícil conseguir um vão nessa agenda, mais complicado ainda era inscrever o nome das páginas dos bem-vindos. Brizola, por exemplo, jamais figurou no time dos simpáticos ao anfitrião. Menos pelas diferenças ideológicas que pelos abismos estéticos que os separaram.
– Ele foi o único que não notou a beleza dessa paisagem – informava a visitantes deslumbrados com o cenário recortado pela janela da sala.
Parece um quadro retangular dividido exatamente ao meio. Na metade superior, ondulam as águas da Lagoa Rodrigo de Freitas. A parte inferior é dominada pelo verde do Jardim Botânico. Apaixonado pela arte da pintura, colecionador de quadros magníficos, amigo de grandes pintores, Roberto Marinho sempre amou também a natureza. Ele praticava esportes com a volúpia de amante. Foi remador, dedicou-se ao hipismo e ao mergulho – sempre sem aparelhos. Reinou na única sala do trono com um quadro natural.
Em busca da bênção do imperador
Não terminou em abraços cordiais nem em promessas de novas conversas o primeiro encontro entre Luiz Inácio Lula da Silva e Roberto Marinho, ocorrido em 1993, na sala do dono da Globo. Já a caminho da segunda campanha presidencial, Lula procurou convencer o anfitrião de que no peito do líder sindicalista criador do PT batia um coração também sensível a certas angústias dos empresários. Não deixou boa impressão.
– Esse moço não tem consistência, suas idéias me pareceram fracas – resumiria Roberto Marinho um ano depois. – Acho Fernando Henrique Cardoso infinitamente melhor.
Naquele agosto de 1994, o autor da comparação já apoiava ostensivamente a candidatura de FH, a quem também se referia, às vezes, como ?aquele menino?. Além de poder de sobra, tinha tempo de vida suficiente para usar essa espécie de tratamento com qualquer presidente da República ou algum candidato ao cargo. Para um jornalista que lastimava não ter combatido com o necessário vigor o presidente Washington Luiz, nada mais natural que dizer, com a naturalidade de quem comenta o tempo, frases assim:
– Aquele menino não tinha o menor preparo para exercer o cargo.
Se captava sinais de desconcerto no rosto do interlocutor, explicava que a figura em questão era Fernando Collor. Roberto Marinho fazia questão de ser entendido, falando em código ou de modo explícito.
Em 60 anos no comando do jornal O Globo, fez com que todos os funcionários compreendessem o que pensava ou queria o companheiro jornalista Roberto Marinho. Quem se afastou da estrada principal descobriu que todos os atalhos das Organizações Globo terminavam na sala do Doutor Roberto. Na sala do trono figuras estelares tiveram a última conversa com o chefe. Ele sempre fez questão de consumar pessoalmente demissões relevantes, e explicar os motivos da decisão ao alvo da medida. Nunca ergueu a voz, mas poucos tentaram ir à réplica. A expressão glacial informava que já não cabiam recursos. A sentença fora expedida em última instância.
O estilo imperial atingia o clímax quando Roberto Marinho chegava, perto da hora do almoço, ao prédio da TV Globo. O ar ganhava eletricidade, os funcionários se moviam em velocidade de cinema mudo, tudo funcionava impecavelmente, o elevador estava invariavelmente no térreo. A face branda do imperador ressurgia depois do crepúsculo, quando se preparava para encontrar amigos e, sobretudo, rever Lily. Naquela tarde de agosto, Roberto planejava um fim de semana na fazenda da mulher amada a poucos quilômetros do Rio. O patrimônio de Lily, embora bem menor que o do consorte, inspirava a Roberto uma frase que repetia com prazer:
– Consegui dar o golpe do baú.
Lily recebeu, ao lado do marido morto, o presidente Lula da Silva, presente ao velório no Cosme Velho. O Doutor Roberto achava que aquele menino melhorou depois de 1993.
Filho que prolongou a vida do pai
Homem de temperamento sereno, Roberto Marinho raramente exibia escoriações no humor. Para curá-las, tratou de aperfeiçoar alguns truques, dos quais o preferido lhe fora legado pelo pai: reler passagens de Pickwick Papers, do escritor inglês Charles Dickens. Paradoxalmente, sentia-se com ótimo humor ao resolver revelar o segredo naquela tarde de agosto de 1994.
Levantou-se da poltrona e caminhou até a estante. Queixou-se, mansamente contrariado, de que alguém mudara o livro de lugar. Mas logo encontrou o velho exemplar de capa dura e começou a folhear as páginas com desvelos de namorado.
– Um amigo de meu pai sugeriu-lhe certa vez que fizesse isso – recordou Roberto Marinho. – As histórias de Pickwick e sua turma são formidáveis.
Sorrindo, ele saboreia alguns trechos.
– Não me canso de reler estas coisas – murmura. – É também uma forma de ficar mais perto de meu pai.
Preferiu fechar o livro ao notar que a emoção começava a afetar-lhe as voz. Ele sempre se comovia ao referir-se a Irineu Marinho, um dos príncipes da imprensa brasileira nas duas primeiras décadas do século 20. Quando morreu, com pouco mais de 50 anos, o pai decerto desconfiava de que aquele menino iria longe. Mas é improvável que tenha imaginado o quanto.
Ninguém poderia ter sido assim ousado em profecias. Roberto, claro, gostaria de que Irineu tivesse vivido para ver ao menos o começo da caminhada rumo às estrelas, iniciada ao assumir a direção do jornal O Globo, em 1930. O filho viveria quase o dobro do tempo concedido ao pai pelas trapaças da sorte. Era natural que, às vezes, falasse de Irineu como quem recorda alguém que partiu ainda menino.
O envelhecimento que afeta a memória pode tornar mais nítidas lembranças antigas, e assim foi com Roberto Marinho. Depois de octogenário, às vezes tinha dificuldade para recordar fatos recentes. Mas tudo que se vinculasse a Irineu esbanjava clareza e transparência.
– Quero que meus filhos sejam como ele foi – disse naquele dia.
Era uma forma de reivindicar em código a eternidade."