Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jorge Bastos Moreno

ROBERTO MARINHO (1904-2003)

"O Papa e a Rede Globo", copyright O Globo, 8/08/03

"Quando, no dia 28 de dezembro de 1985, o dr. Ulysses Guimarães cometeu talvez o seu mais grave pecado, ao apresentar-me ao representante de Deus na terra como ?um dos mais importantes jornalistas do país? e ?representante das organizações Globo?, o Papa João Paulo II replicou: ?Rede Globo, Rede Globo, Rede Globo.? Pronto, estava paga a viagem de sete mil dólares que, da Espanha, o dr. Roberto autorizara Evandro Carlos de Andrade a me mandar para cobrir a viagem de 25 dias de Ulysses Guimarães à Asia e à Itália.

O pecado do dr. Ulysses era perfeitamente compreensível: como justificar a Sua Santidade a presença naquela audiência de um repórter, crioulo e mal vestido? Acabávamos de desembarcar no aeroporto de Roma, depois de quase três semanas na Ásia, sentindo ainda o cheiro do atentado terrorista da véspera e, naquele clima de tensão, fomos avisados de que a audiência solicitada ainda no Brasil havia sido aceita e marcada para dali a duas horas. Audiência que, bem ao seu estilo, o dr. Ulysses havia sonegado da comitiva – para, no caso de uma recusa, evitar constrangimentos.

Então, não lhe restava alternativa, a não ser sonegar também ao Papa a informação de que o único repórter que o acompanhava estava ali porque seu jornal fora o único que aceitara cobrir a viagem e nem sabia que teria a oportunidade única de, não só estar diante do Sumo Pontífice, como também de extrair dele uma entrevista que seria manchete do GLOBO do dia seguinte.

A viagem em si já era um pecado político: Sarney delegou a Ulysses poderes de Chefe de Estado, como se vivêssemos um parlamentarismo no qual o primeiro-ministro era o que menos mandava. No retorno da jornada, fui pautado a escrever uma matéria sobre o prestígio das Organizações Globo no exterior, inspirada, claro, na própria euforia papal de reverenciar a Rede Globo.

E a escrevi com facilidade. A apresentação que Ulysses me fizera ao Papa tinha sido repetida às autoridades do Japão, inclusive ao Kendarem, a Fiesp deles; da China; da Coréia; e da Tailândia. Se no Brasil é fácil às pessoas confundirem o jornal com a televisão, imagine-se do outro lado da Terra. Na China, com o perdão da Lucélia Santos, ninguém me chamava pelo nome, mas pela referência de quem vinha do país da ?Isora?, a escrava Isaura. Quando um colega chinês queria falar comigo, era ?Isora? pra lá e pra cá.

Na comitiva de Ulysses, estavam parlamentares que já tinham vivido a mesma experiência em outros países, como Cuba, por exemplo, onde o sucesso das novelas da Globo era a principal referência do Brasil. Na própria viagem de volta, no vôo Roma-Rio, o dr. Ulysses conversou longamente com Cláudio Marzo, que acabara de gravar cenas de uma novela na Itália.

– Só o Roberto para investir tanto na produção artística – comentou Ulysses.

A resposta do ator foi a confirmação de suas palavras:

– Sem o dr. Roberto, não haveria produção de qualidade na televisão brasileira."

 


"Lembranças de Roberto Marinho", copyright Folha de S. Paulo, 10/08/03

"Na tarde da segunda-feira do Carnaval de 1994, João Roberto Marinho chegou com uma fita de vídeo à casa do pai na Praia da Mombaça, em Angra dos Reis. João Roberto conversou com alguns dos convidados para o almoço, os governadores Ciro Gomes, do Ceará, e Luiz Antônio Fleury Filho, de São Paulo. E logo foi com Roberto Marinho para uma sala onde havia um aparelho de vídeo.

A fita continha cenas gravadas pela Rede Globo, na noite anterior, no Sambódromo. Elas mostravam o presidente Itamar Franco ao lado da vedete Lilian Ramos que, embalada, sambava sem calcinha.

Roberto Marinho viu a fita sem um sorriso. João Roberto queria saber se o pai achava que as cenas deveriam ser levadas ao ar pela Globo. ?Vamos mostrar tudo no Jornal Nacional de hoje, sem comentários?, disse o dono da emissora. Pouco depois, Roberto Marinho me disse: ?Esse Itamar é um cafajeste?.

Foi uma das raríssimas vezes, em quase vinte anos de convívio, que vi Roberto Marinho irritado. E foi a última vez que o vi exercer o poder em plenitude. O poder de levar às casas de praticamente todos os brasileiros uma versão da realidade (a jornalística) e suas variadas imagens ficcionais, (as novelas). Ele tinha então 89 anos.

***

Três anos depois, num outro Carnaval na mesma casa de frente para a Ilha Grande, já não havia nenhum político. Eles foram os primeiros a perceber que o patriarca da Globo paulatinamente deixava de exercer o poder, na medida que diminuía a sua capacidade de entendimento das nuances da política nacional.

Roberto Marinho assistiu a um trecho do desfile do Sambódromo. Ficou impressionado com a nudez generalizada e com as cenas em câmara lenta de requebrados lascivos. ?Mas você tem certeza que a televisão está mesmo na Globo??, perguntou a Lily, sua mulher. ?Então vou ligar para o Boni?, disse, referindo-se ao vice-presidente executivo da rede, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho. Depois, achou melhor telefonar no dia seguinte. Acabou não telefonando. A Globo andava sozinha, sem ele.

***

O dono da Globo era um homem afável e modesto. Nunca levantava a voz ou dizia palavrões. Detestava reuniões, relatórios, analistas, discussões estratégicas. Preferia contar e ouvir casos, em longas conversas a dois. Só se vangloriava de seus feitos esportivos, como a vez em que ficou três minutos no fundo do mar e voltou à tona com uma garoupa gigantesca. ?Devo ter batido algum recorde?, dizia.

Gostava de mulheres: de contemplá-las, seduzi-las, ouvi-las e fazer-lhes galanteios. ?Com essa calça branca, e essa blusa estampada com motivos roxos, você está parecendo uma orquídea no seu esplendor, Lily?, disse ele certa vez. Fora um matador na longa juventude (casou pela primeira das três vezes aos 42 anos). Tinha uma garçonnière muito freqüentada. Certa vez, foi ao apartamento de uma corista na Urca e, na saída, não lembrava onde deixara o carro. Voltou para casa a pé.

Gostava de jornais. Todas as manhãs, lia ?O Globo? de cabo a rabo, dava uma olhada na concorrência, o finado ?Jornal do Brasil?, e dedicava atenção especial à ?Folha de S. Paulo?. Nunca o vi com um livro na mão. Mas sempre citava Charles Dickens, uma das suas admirações da juventude, sobretudo ?Pickwick Papers?.

Gostava da natureza. De nadar, cavalgar, pescar, ver bichos, de passear ao ar livre. ?Já são quase 5 horas?, dizia, infalivelmente, quando estávamos na casa de Angra ou na mansão no Cosme Velho, no Rio. ?Vamos sentar lá perto do jardim para ver o balé dos flamingos?. Os flamingos, importados às dúzias da África do Sul, valsavam para lá e para cá, para o renovado deslumbre de Roberto Marinho.

Às vezes, estranhamente, o malditos bichos cismavam de permanecer imóveis. Roberto Marinho esperava, um tanto impaciente. ?Acho que vou lá dar uma espantada neles?, dizia. Eu me adiantava e, com alguns ?xôs!? desajeitados, botava o bando para dançar. Quando voltava, era recebido com um sorriso e ironias: ?você dança quase tão bem quanto eles, parabéns!?

***

Roberto Marinho não gostava de política. Gostava de políticos. De políticos de nomeada, pois não tinha a menor paciência para acompanhar o jogo de partidos, alianças, bancadas, leis e assembléias. Preferia ouvi-los a dar-lhes conselhos. Fazia então as suas escolhas. Achava imperativo que os órgãos de imprensa apoiassem políticos.

Aprendera a lição na juventude. Com a morte do pai, em 1925, não se sentira com condições de dirigir ?O Globo?, fundado semanas antes. Passou a tarefa para Euricles de Mattos, a quem obedecia sem discutir. Nas eleições de 1930, Mattos dizia ao patrão e subordinado que o jornal não deveria apoiar nenhum candidato. ?Julio Prestes e Getulio Vargas são vinho da mesma pipa?, lhe falava Mattos. Roberto Marinho aquiescia cada vez mais a contragosto. Achava que Getulio e Julio Prestes era vinhos de pipas bem diferentes, que um era melhor que o outro. ?O Globo? acabou apoiando a revolução de 30.

Roberto Marinho fez com que seu império jornalístico apoiasse Getúlio, Dutra, Jânio, Castello Branco, Costa e Silva, a junta militar, Geisel, Figueiredo, Tancredo, Sarney, Collor e Fernando Henrique. Mas quem lhe deu concessões de televisão foram Juscelino, que ele criticava, e João Goulart, contra quem conspirou para derrubar da Presidência.

***

Em 1989, Roberto Marinho queria apoiar Jânio Quadros. Mas Jânio ficou doente e não saiu candidato à Presidência. Tentou então apoiar Orestes Quércia, que preferiu que Ulysses Guimarães fosse o candidato do PMDB. Ficou sem candidato. Uma situação perigosa, pois Leonel Brizola não só era candidato como tinha chances reais de vencer. Roberto Marinho tinha horror a Brizola. Nada de pessoal. Só que o político garantira que, eleito, seu primeiro ato seria acabar com o poder da Globo. ?Eu quero apoiar alguém que ganhe do Brizola?, disse inúmeras vezes naquele ano.

Por sugestão de seu amigo Jorge Serpa, deu ampla divulgação ao discurso de despedida ao Senado de Mario Covas, que assumiu a candidatura dos tucanos – discurso, aliás, escrito por José Serra – defendendo um ?choque de capitalismo? para o Brasil. Roberto Marinho não gostava de Covas nem de suas idéias, que considerava conservadoras e nacionalistas. E achava que o tucano não tinha condições de vencer Brizola.

Havia Fernando Collor. Mas o dono da Globo não gostava do pai, do irmão e do próprio Collor. Tivera negócios com o senador Arnon de Mello, que foi seu sócio na construção do primeiro shopping center do Rio, na rua Siqueira Campos, em Copacabana. Achou que Arnon se portara mal. Sempre supeitou que o sócio lhe passara a perna.

O primogênito de Arnon, Leopoldo, fora diretor regional da Rede Globo em São Paulo, e passou por uma investigação interna que culminou com a sua demissão. Durante o mês de aviso-prévio, Roberto Marinho se recusou a falar com Leopoldo. Por fim, considerava Fernando Collor um playboy inconsequente. Achava de mau gosto as camisas de punhos dobrados do, como dizia, ?filho do Arnon?.

O único Collor que admirava era o caçula, Pedro. ?Ele fez um ótimo trabalho como administrador da emissora da Globo em Alagoas?, dizia.

Passou a se encontrar com Collor. E mudou de opinião: achou-o dinâmico, preparado e em condições de vencer sua nêmesis. Só o apoiou de público em agosto, quando Collor tinha 45% da preferência dos eleitores, contra 11% de Brizola e 9% de Luis Inácio Lula da Silva, o candidato do PT.

É um mito da política nacional, feito circular pelo maniqueísmo fácil de uma esquerda que não preza informações e pensamento, o de que Roberto Marinho ?fez? Collor.

O que Roberto Marinho fez, isto sim, foi mandar que a célebre edição do debate final entre Lula e Collor, levada ao ar pelo Jornal Nacional, mostrasse enfaticamente que o candidato do PRN saíra-se melhor que o petista. E foram seus subordinados jornalistas que, pressurosos, providenciaram uma edição, que contra as próprias regras estabelecidas pela Globo, deu 1 minuto e 12 segundos a mais de vídeo para Collor.

A edição do debate provocou a única desavença séria entre o empresário e seu braço direito na Globo, Boni. Bateram boca publicamente, nos jornais, o que nunca houve antes nem depois. Na semana seguinte, a relação deles voltara ao que era antes: a de amigos e companheiros.

***

Qual o gesto que define um amigo? No mais das vezes, é impossível detectá-lo. No caso de Roberto Marinho, minha amizade virou pacto de sangue na tarde de sábado, 11 de julho de 1992. Até então, nosso relacionamento evoluíra da fonte-repórter para a da confiança recíproca, com afeto mútuo.

Conheci-o como responsável pela cobertura televisiva de ?Veja?, em 1984. No princípio, ele me dava notícias em ?off?. Depois, me passou notícias exclusivas. Em 1989, me concedeu um grande furo: uma reportagem de quatro páginas sobre a sua separação de Ruth Albuquerque e seu romance com Lily de Carvalho.

Fez questão que conhecesse Lily. Passei a freqüentá-los. Não passava semana sem falarmos ao telefone e mês sem que nos encontrássemos — nos seus gabinetes em ?O Globo? e na rede ou em suas casas no Rio e Angra. Quando fui nomeado diretor de redação de ?Veja?, deu um jantar em minha homenagem no Cosme Velho. Nossas famílias se estimavam.

Para facilitar a relação, havíamos combinado que ele nunca me convidaria para trabalhar numa empresa sua, e eu jamais lhe pediria emprego.

Em julho de 1992, ?Veja? publicava reportagens contínuas sobre a corrupção no governo Collor. Roberto Marinho dizia que era um erro, que Collor era ?um pouco estróina? mas, no fim das contas, um bom presidente. No dia 11, a revista chegou às bancas com uma capa com uma fotomontagem do rosto do presidente do Banco do Brasil com chapéu de couro, e a manchete: ?O cangaceiro do Planalto?.

Roberto Marinho telefonou assim que leu a reportagem. Seu tom era severo. ?Você passou das medidas?, disse. ?Nesse país, não se briga com o presidente do Banco do Brasil?. Disse-me que eu estava colocando em risco minha carreira e o patrimônio de Roberto Civita, o dono da revista.

Disse-lhe que a intenção da capa era dar um chega-pra-lá definitivo nas pressões que o governo vinha fazendo sobre a revista e a editora Abril.

?Mas há maneiras e maneiras de fazer isso. Precisava colocar aquele chapéu?? O seu receio era que Collor, se continuasse no poder (o que Roberto Marinho desejava e se esforçava para conseguir), se vingasse materialmente de ?Veja?, da Abril e de mim.

O telefonema se alongou. Empacamos nas nossas certezas. Um não convenceu o outro. Sua última frase, antes das despedidas, foi a seguinte: ?Se você tiver algum problema, fale comigo?.

Só um amigo diz uma coisa dessas.

***

Toda amizade tem arestas. Ainda mais quando os amigos estão numa situação objetiva de concorrência (?Veja? X Globo). Roberto Marinho nunca se queixou de nenhuma reportagem da revista criticando programas da Rede Globo – e elas foram muitas.

Também nunca pediu para publicar tal ou qual informação ou opinião. Era sempre elogioso. Gostava particularmente das entrevistas das páginas amarelas. ?Não sei por que, o pessoal de ?O Globo? não consegue fazer entrevistas tão boas?, disse-me mais de uma vez.

Na verdade, reclamou uma vez. De uma reportagem de capa sobre a jogatina no Brasil. Com veemência, a matéria atacava a Globo por estar lançando uma loteria chamada Papatudo, uma iniciativa do empresário Artur Falk que Roberto Marinho encampou com entusiasmo.

Ele me convidou para almoçar na semana seguinte. Estava amuado. Não propriamente com a matéria, mas comigo. ?Jamais esperava isso de você?, disse. ?Você acha que eu quero fazer essa loteria por que preciso mais dinheiro? O que eu quero é fazer. É ver as coisas crescerem?.

Dei minhas explicações, que ele rebateu uma a uma. Mas achamos um terreno comum: a boa-fé. Ele reconheceu que o tema era jornalístico e polêmico. Despedimo-nos reconciliados. Nunca mais falamos do assunto.

***

A frase ?o que quero é fazer? lhe é definidora. Construir, plantar, frutificar e colher, ver a matéria e a engrenagem humana substituírem o nada – era essa a mola que lançou Roberto Marinho num extraordinário número de empreitadas.

Insistiu que visitássemos juntos um shopping center que iria fazer na Barra. Fomos. Vi, entediado, um areal, uma maquete e corretores. Roberto Marinho, aos 93 anos tresandava entusiasmo. Falou com pencas de corretores. Telefonou para contar que todas as lojas tinham sido vendidas no fim de semana de lançamento do shopping.

O mesmo entusiasmo se repetiu quando me levou para visitar o Projac, a cidade-estúdio da Globo em Jacarepaguá. Tinha dúvidas pertinazes, mas primárias para um empresário de televisão, que sanava com humildade:

?Boni, quanto custou essa câmera??, perguntou.

?Cento e vinte cinco mil dólares, doutor Roberto?.

?E quantas você comprou??

?Doze, doutor Roberto?.

?Não dava para comprar só seis??

?Não, porque…?

?Deixa para lá, Boni?, atalhou o empresário.

Na saída, me disse: ?Não entendo nada de televisão, mas não espalhe?.

***

?Sou um jornalista, um jornalista de redação, de banca?, respondeu-me nas vezes em que pedi que se definisse. Sua formação foi na redação de ?O Globo?. Lia e copidescava matérias, fazia títulos, escrevia editoriais, inventava pautas, cobrava, contratava, demitia, decidia manchetes de primeira página. ?Nunca quis ser outra coisa na vida?.

***

Roberto Marinho não falava do Brasil. Não tinha uma concepção de país pronta na cabeça. Tinha opiniões. E idéias. Algumas surpreendentes. Como a de que faltavam guerras na história do Brasil: ?As guerras forjam a nacionalidade, unem o povo. Veja a França, veja os Estados Unidos. Todos os países desenvolvidos passaram por guerras sangrentas?.

Outras eram mais corriqueiras, como a de que fora um erro transferir a capital do Rio para Brasília. Ninguém a defendeu com tanto ímpeto e radicalismo. Todos os políticos que encontrou desde a inauguração da capital, a começar pelos presidentes, ouviram seus argumentos em favor de que o Rio voltasse a ser a capital.

Nenhum lhe deu atenção. O motivo de sua campanha era quase pessoal: em Brasília, não podia fazer nada; no Rio, quase tudo. Mais que um brasileiro, como Nelson Rodrigues e Millôr Fernandes, era um carioca da gema que sentia saudades da sua cidade já na Via Dutra.

?Com o Rio voltando a ser capital, poderíamos fazer os prédios dos ministérios na Barra. Em Jacarepaguá, fazer as casas dos funcionários públicos. Na Marambaia, fazer hotéis de luxo e condomínios como os de Miami?, disse-me. Fazer, fazer, fazer. Chegou a fazer esculturas, umas formas enormes e esdrúxulas plantadas no jardim de sua mansão.

***

Roberto Marinho não era de confidências. Sempre tornava públicas as suas preferências, senão em palavras, em atitudes e gestos. A mulher de sua vida? ?Lily?, respondia antes de terminar a pergunta. Não era ressentido ou saudoso em relação às duas ex-esposas e dezenas de namoradas. Simplesmente as ignorava. Não falava com elas. O homem de quem mais gosta? ?O João?, respondeu ao longo de quase duas décadas, referindo-se ao filho João Roberto.

Não era fã de crianças. Fazia brincadeirinhas curtas com os netos, e tinha um carinho especial pelo primeiro neto, filho de Roberto Irineu. Gostava de adultos. De conversar com os homens. E de admirar e amar as mulheres.

***

O homem que conheci não tinha medo da morte. Era ateu convicto. ?Não acredito em nada: morreu, acabou?, dizia. O que não o impedia de se aproximar e cortejar cardeais, sobretudo os do Rio, de Hélder Câmara a Eugênio Salles. Para fazer política com eles.

Também não temia o julgamento da história. Sim, apoiara a ditadura de Getúlio e a dos militares. E nunca se arrependeu. Não era um democrata. Nem um defensor ideológico de regimes autoritários ou totalitários. Adaptava-se às circunstâncias políticas. ?Sou um realista?, dizia.

Claro que defendia a iniciativa privada. Era o ar que respirava. Mas desconfio que se daria bem numa monarquia absolutista ou no stalinismo.

Desde que pudesse fazer."

 

"Nosso companheiro", copyright O Globo, 8/08/03

"Para nós, jornalistas – e não cansei de repetir isso ontem em entrevistas – o traço mais marcante na carreira de Roberto Marinho foi o seu amor pela profissão. Não se orgulhava de ser empresário tanto quanto de ser jornalista. Conheci muita gente em redação que fazia questão de parecer dono e como tal agir. ?Nosso companheiro?, como gostava de ser chamado, preferia o contrário.

Não cheguei a trabalhar diretamente com ele, como alguns colegas, mas sempre me diverti ouvindo suas histórias. Em algumas atribuem-se a ele frases como aquela que, diz a lenda, ele costumava repetir: ?Se um dia eu faltar.? Outras tinham a ver com o seu hábito de telefonar de madrugada à redação para saber qual era a manchete, como estava diagramada a primeira página, que foto ia sair. Acompanhava o que se passava na redação com o interesse de um editor, não de dono.

Numa das poucas vezes em que estivemos juntos, há uns dois anos, aqui na redação, aconteceu uma cena curiosa. Estávamos esperando para participar da gravação de um anúncio institucional do GLOBO, e começamos a conversar sobre jornalismo. Puxei o assunto de crise, empresa, acreditando que ia animar a conversa, mas ele estava interessado mesmo era em contar de que maneira obtivera vários furos de reportagem ao longo de sua vida. Como um foca, mostrava-se tão orgulhoso de seus feitos jornalísticos que, se alguém chegasse ali, ia achar que eu era o empregador e ele um candidato a emprego de repórter querendo me impressionar.

Talvez por isso, os seus ?colegas? de redação se sentiam seguros durante a ditadura militar. Não foram poucos os casos de generais ou ministros exigindo a cabeça de redatores ou repórteres tidos como subversivos. Em vão.

Em 1968, quando fui preso por subversão, o coronel do Exército encarregado do meu IPM só queria falar de imprensa: tinha fascínio e ódio. Nos interrogatórios perguntava quanto a gente ganhava, qual a marca do carro, se namorava fora do casamento, se a cantora tal era mesmo lésbica, enfim essas coisas que, pelo visto, eram fundamentais para a segurança nacional. Ele devotava uma antipatia especial pelo GLOBO, com o qual aliás eu nada tinha a ver (trabalhava numa revista). Me lembro que um dia ele desabafou: ?Aquilo lá (a redação) é um antro de subversivos, todos acobertados por esse Roberto Marinho. Ele é igual a vocês.?

Tenho a impressão de que nosso companheiro ia gostar da comparação."