M?DIA NO PAN
Marinilda Carvalho
Eram 19h48 de domingo ? antes portanto da cerimônia de encerramento do Pan 2003 ? e o Último Segundo, jornal do iG, já exibia a chamada amarga: "Os 28 ouros do Brasil no Pan virariam apenas um em Atenas". Matéria detalhada da Reuters avaliava, modalidade por modalidade, as conquistas do Brasil nos Jogos Pan-Americanos de São Domingos e arriscava os prognósticos para os Jogos Olímpicos de Atenas, no ano que vem.
Na edição impressa de domingo, o Estado de S.Paulo já avisara que para o país continuará difícil brigar pelo ouro, como em 2000, quando só levou prata e bronze. Em Sydney o Brasil tinha 205 atletas. "Se não repetiu a marca histórica de 15 medalhas (3 de ouro) de Atlanta, em 1996, trouxe na bagagem 12 medalhas (seis de prata e seis de bronze) ? terminou em 52?." O jornal informava que no Pan de São Domingos, com 479 atletas, o Brasil superou a campanha de Winnipeg, quando levou 436 atletas e trouxe 25 medalhas de ouro, 32 de prata e 44 de bronze.
Alertas necess&aaaacute;rios? Nem tanto. Atletas, técnicos, dirigentes esportivos, imprensa e povão vêm demonstrando que estão absolutamente conscientes das limitações do Brasil nas Olimpíadas. Ao longo de 17 dias de jogos, quem acompanhou minuto a minuto a cobertura com dedicação quase exclusiva ao Pan na ESPN Brasil e em dois canais do Sportv pôde perceber que, enquanto jornais e colunistas atribuíam o devido valor a cada pódio, à televisão coube encarnar a euforia pelas medalhas, algumas conquistadas à base de pura garra, como o ouro de Fernando Meligeni no tênis e o da equipe masculina do handebol. Afinal, eram os repórteres de TV que, lá em São Domingos, nos estádios, nas quadras e nas piscinas, flagravam o choro dos atletas vitoriosos, mostravam suas bolhas, feridas e suores, registravam os recadinhos à mamãe no Brasil e proporcionavam as imagens da glória no pódio.
Culto a padrões externos
E qual o problema em festejar o fruto do esforço de nossos atletas? É que além da mídia eufórica com o Pan temos uma parte da imprensa entregue à depressão: nada fizemos na República Dominicana, porque o que vale é a Olimpíada. Dois artigos, de dois ex-repórteres esportivos, publicados na edição de 6/8/2003 do sítio Direto da Redação <http://www.diretodaredacao.com/>, refletem bem as duas posições, de complacência e superexigência. Mair Pena Neto, ex-Globo e JB, hoje na Souza Cruz, analisando as críticas da imprensa brasileira à organização do Pan, fez comentários que se aplicam à performance atlética do Brasil. "A postura da mídia brasileira chega a beirar uma superioridade arrogante, reproduzindo o tratamento de cucarachos que sofremos dos primeiro-mundistas", disse. "O Pan é uma competição das Américas que, à exceção dos EUA e do Canadá, é formada por países pobres. O que os jornalistas esperavam?"
Do lado oposto, Mário Andrada e Silva, ex-Folha e JB, hoje na Reuters-Brasil, considera o do Pan um ouro de tolo, e defende que o esporte de um país vale ouro quando é acessível, democrático, profissional e campeão olímpico. "O Pan é uma ilha da fantasia das medalhas", afirmou, porque adversários menores fazem de nossos atletas gigantes. "Lembram-se de Winnipeg?", perguntava ele no texto. "Parecia a Serra Pelada do esporte brasileiro. Depois vieram os Jogos Olímpicos de Sydney, de onde mesmo atletas de talento mundial voltaram pelados de medalhas douradas". Mário acha que o Pan é o melhor treino que nossos atletas podem esperar antes das Olimpíadas: "Serve como forja para futuros campeões e reconhecimento público para campeões que não alcançam o céu olímpico, mas inspiram pela dedicação, talento e honra."
Bem, talvez possamos ficar com a posição intermediária de Paulo César Vasconcelos, do Lance! e da ESPN Brasil, no artigo "O Pan é motivo de orgulho". A baixa auto-estima brasileira, segundo ele, "se manifesta quando tentamos minimizar os feitos obtidos em Santo Domingo":
Esquecem os radicais do esporte que nos Jogos Pan-Americanos o Brasil respira. Na Olimpíada, o país tem espasmos. Ao depreciarmos as conquistas, projetando sempre para Atenas 2004, damos a impressão de que fazemos parte de uma potência econômica e esportiva. Longe disso. O tamanho esportivo do país se manifesta exatamente nesta competição. Não prego o conformismo, mas acho que o olhar brasileiro precisa ser mais complacente. A má campanha da Argentina é atribuída, única e exclusivamente, à crise do país. Esquecem que o Brasil também teve problemas. Desvalorização da moeda e alta taxa de desemprego não são privilégios da terra de Maradona. Mostrou este Pan-Americano que o próximo poderá ser muito melhor para o Brasil.
Perfeito. Não pode haver outra análise diante, por exemplo, de um Rodrigo Bastos, 35 anos, uns 20 quilos acima do peso, dentista de Guarapuava (PR) sem patrocinador, que paga do bolso seu equipamento, viaja 300 quilômetros para treinar, tudo por conta própria! Pois foi a Santo Domingo e levou a prata no tiro esportivo fossa olímpica. Conquistou 124 em 125 pontos possíveis, bateu os recordes brasileiro e sul-americano, igualou o mundial e atingiu o índice olímpico, que lhe dá direito a competir em Atenas no ano que vem. Isso não é um feito? Bem, Rodrigo tem chances reais em Antenas? Certamente que não, mas por que só se considera válida a medalha olímpica? À luz do bom senso, esta parece uma posição não exatamente arrogante, como quer Mair, mas antes colonizada e elitista, de culto a padrões externos, distantes de nós.
O bicho vai pegar
Enquanto não houver uma política nacional maciça de esportes, que forme ampla base de atletas desde a infância, a partir das escolas, a mídia só pode cobrar medalhas é do governo. Assim mesmo, depois da entrada em vigor da Lei Agnelo-Piva, temos projetos olímpicos em várias modalidades, 5 mil atletas em processo de treinamento organizado, jogos da juventude revitalizados. É pouco, mas já é alguma coisa, e alguma coisa segundo a nossa realidade.
E esta a mídia não escondeu. Durante os 17 dias da festa do Pan, enquanto festejava nossos heróis, a imprensa foi realista, e deu todas as informações relevantes sobre as chances dos brasileiros em cada modalidade ? sempre mencionando tempos e índices dos competidores de excelência, como base de comparação. Foi pela imprensa que ficamos sabendo que após três ouros consecutivos do Brasil no hipismo por equipe em Pans os EUA mandaram seu primeiro time a São Domingos. O Brasil ficou com bronze e nem conseguiu a vaga para Atenas. Fernando Scherer venceu o campeão olímpico Gary Hall Jr. (EUA) nos 50m livre ? mas seu tempo, de 22s40, é apenas o 11? do mundo. Em Atenas, Scherer enfrentará o russo Alexander Popov, recordista mundial (com 21s64) e detentor da melhor marca do ano (21s92). Nem por isso o ouro de Xuxa no Pan perde seu valor ? embora Ricardo Prado, comentarista de natação da ESPN Brasil (ele mesmo recordista mundial e medalha de prata nos 400m medley na Olimpíada de Los Angeles, em 84), tenha valorizado mais os 10 índices olímpicos alcançados pelos nadadores brasileiros, com vaga garantida em Atenas. Frio e objetivo, Pradinho foi o melhor comentarista: acertou todas as previsões.
Neste Pan a imprensa escrita foi pródiga em informação relevante. Um exemplo foi a análise de Paulo Cobos, na Folha de 18/8, sobre nossa vocação para os esportes coletivos (ouro no futebol feminino, no handebol dos dois sexos e no basquete masculino; prata no pólo aquático masculino e no futebol masculino, bronze no basquete feminino, no vôlei masculino e no hóquei em linha). "Considerando apenas essas provas, o país ficaria na frente até dos EUA. Nesses nove eventos, os americanos ganharam apenas dois ouros e dois bronzes", informa a matéria. Você sabia disso? Pois é importante saber: a mídia quase toda cobra que o Brasil imite Cuba e invista com força nos esportes individuais, que rendem muita medalha. Mas vocação não se coíbe, aprimora-se.
Excetuando o time de handebol masculino ? que após a vitória sensacional sobre a Argentina por 31 a 30 na prorrogação cantava que "o bicho vai pegar em Atenas" ?, não vi um atleta brasileiro jurando medalha na Olimpíada, apenas prometendo muito esforço. Do técnico Lula, medalha de ouro no basquete masculino, a Carlos Artur Nuzman, presidente do Comitê Olímpico Brasileiro, a postura realista prevaleceu.
O papel de ouro da mídia
O povão também não se iludiu. O Lance! pergunta em seu fórum na internet: o Pan pode ser considerado um laboratório para 2004, ou provoca uma euforia sem motivo nos brasileiros, já que os principais atletas das potências esportivas não participam? Todos os comentários lá postados são realistas, alguns até agressivamente pessimistas. Um deles, sereno, diz: "Não. Apesar de o Brasil ter evoluído bastante, com investimentos tanto da iniciativa privada quanto do governo, ainda é cedo para pensar que o Brasil poderia ser surpresa nas próximas Olimpíadas." Pronto, resumido.
A matéria da Reuters, que mostra com clareza cristalina que estamos longe dos recordes mundiais e olímpicos, diz que "resta esquecer o Pan e torcer por surpresas e melhores desempenhos ? como o do futebol e do vôlei masculino ? para que o Brasil não deixe a Grécia com mais do que, na melhor das hipótese, um ouro".
Não, não devemos esquecer o Pan, palco nobre para muitos atletas que jamais pisarão no Olimpo. Devemos é lembrar que é impossível cobrar de um país que ocupa a 65? posição no Índice de Desenvolvimento Humano da ONU performance de potência atlética (e até voltamos de Sydney com o 52? lugar…). Não seria coerente. Somos o país com a pior distribuição de renda do mundo. Os meninos do boxe, tão criticados pelos dois bronzes, há pouco tempo moravam debaixo de uma arquibancada e bebiam água da torneira, como informou Nuzman ao Sportv. Ganharam uma casa e condições de vida razoável. Vão subir ao pódio em Atenas? Claro que não. Mas se continuarem recebendo apoio talvez cheguem fortes e seguros ao Rio 2007. O que será um grande feito.
Talvez não caiba à mídia optar entre euforia e depressão, entre complacência e superexigência em época de Pan e Olimpíada. O que certamente cabe à mídia é o cumprimento de sua função social, mostrar a realidade difícil dos nossos atletas amadores, exigir das autoridades ações decisivas para que o esporte se transforme em veículo de inclusão social. Isso, sim, é uma empreitada digna de ouro. Por enquanto, presa ao futebol, nossa imprensa leva apenas o bronze.
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