Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Vergonha na cara

TORTA NA MÍDIA

Marcelo Salles (*)

Tão acostumados eles estão com o "bom povo brasileiro", com a "hospitaleira população do Rio", que o embaixador dos EUA para as negociações da Alca nunca poderia imaginar que seria alvo de uma torta. Muito menos na cara.

Antes de analisar o acontecimento em si, seus significados e a cobertura da mídia, devo ressaltar a estranheza que me causa ler a designação de "co-presidente da Alca" atribuída por uns e outros jornais aos embaixadores Adhemar Bahadian (Brasil) e Peter Allgeier (EUA). O motivo é simples. É que fica difícil entender como um bloco comercial que está programado para ser implementado apenas em 2005 ? lembrando que esta data ainda não é consenso entre os países envolvidos ? pode ter presidentes já em 2003.

Isto posto, vamos à torta. Na cara do embaixador Allgeier ficaram estampados o susto e a vergonha. Susto porque ninguém o avisou que num país constantemente imbecilizado e amestrado pela mídia vendida poderia existir alguém disposto a ir contra toda essa corrente fúnebre que, há tempos, leva o Brasil em direção ao abismo. Vergonha por medo de o alerta direto ? embora por vias tortas ? azedar o açúcar sobre o qual já se lambuzam aqueles que sonham em anexar um mercado fabuloso como o Brasil.

Como a reunião era sobre a Área de Livre Comércio das Américas, falemos brevemente sobre este pequeno adendo da política externa dos EUA para fazer frente, neste século que se delineia, à União Européia e ao Bloco Asiático. O acordo prevê a livre circulação de mercadorias entre os países-membro, sem que haja, como no bloco europeu, livre circulação de pessoas. Ou seja, está mais para o Nafta, a área de livre comércio da América do Norte. Oportuno se faz lembrar que este acordo, em 1992, anexou economicamente o México aos EUA e, hoje, sua população segue dois caminhos, graças a sucessivos presidentes corruptos: o da miséria (para os que ficam) e o da prisão (para os que tentam atravessar a fronteira em direção aos EUA). Os que propõem tais acordos falam muito em "área livre", "liberdade". Gostam de mentir, são sádicos profissionais. Não têm escrúpulos. Estes, há muito foram mandados às favas. Hoje em dia está subentendido: mostra-se o que há de bom, esconde-se o que há de ruim.

Sinal dos tempos

A mídia vendida, coitada, não faz outra coisa senão elogiar essa exploração velada dos povos latino-americanos. É patético, triste, até mesmo deplorável assistir a um telejornal da chamada mídia grande e não encontrar questionamentos simples como a viabilidade econômica da Alca para os brasileiros. Nem, tampouco, encontramos comparações simples e óbvias com a Nafta. A única coisa simples para esses programas "jornalísticos" é dar voz aos que pagam suas contas. Nem que isso cause danos devastadores ao país enquanto nação soberana. Eu falei em soberania? Faz tempo que não ouço essa palavra nos veículos "sérios" e de "qualidade" que temos neste país. Mas foi um segurança com uniforme militar quem arrastou o ativista para fora do auditório. Certamente ele e sua torta configuravam uma séria ameaça à nossa… soberania?

Imediatamente após o ocorrido, o chanceler Celso Amorim se apressou em pedir desculpas pelo "ataque" do estudante. Com a mesma velocidade, juntamente com Adhemar Bahadian, garantiu que o episódio não irá alterar em nada as negociações. Sinal de quem quer, e muito, aprovar o acordo. Se não, permaneceria no campo das desculpas diplomáticas.

O que a mídia solenemente "esqueceu" de dizer foi que o estudante Lucas Silveira fez aquilo que muitos brasileiros gostariam de fazer ? incluindo aqui o PT de Lula e companhia, que endossaram o plebiscito em que 10 milhões de brasileiros disseram não à Alca: atirou uma torta na cara de um desses representantes do imperialismo que se acostumaram a vir aqui negociar a exploração do Brasil.

Sinal dos tempos? Quem sabe… Vamos trabalhar para que essa torta cresça, tome forma e contagie pelo menos aqueles que ainda não se esqueceram de lutar por um país melhor. Porque se a coisa continuar do jeito que está, ela vai acabar fazendo falta no prato dos brasileiros que serão crucificados pela Alca. Em nome da liberdade, claro.

(*) Estudante de Jornalismo da Universidade Federal Fluminense