Saturday, 30 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

O outro lado

A democracia americana fica devendo essa a Michael Moore. Fahrenheit 9/11 presta um serviço aos Estados Unidos não pelo nobre sentimento de mostrar a ‘verdade’ ao seu povo ou ao mundo, mas justamente o contrário. Moore contribuiu porque foi parcial, tendencioso, mostrando apenas um lado – o ruim – do governo de seu país. O cineasta completou um serviço que a mídia americana e mundial, de forma geral, não fez como deveria.

Uma regra básica do que poderemos chamar de bom jornalismo é ouvir os lados envolvidos. Muitos jornalistas pelo mundo afora, inclusive no Brasil, esqueceram dessa regra e optaram pela passividade confortável oferecida pelo lado mais forte. Os releases da Casa Branca se mostraram bem mais persuasivos e seguros do que a ‘busca pela verdade dos fatos’. Aliás, essa quase que utópica busca é o que deveria pautar a missão de uma imprensa livre, forjada na própria América, berço da democracia moderna e das liberdades.

E foi justamente em nome das liberdades que ‘os olhos e ouvidos da sociedade’ – definição do jornalismo no código de ética da imprensa americana – praticamente se fecharam. Com boa dose de miopia e surdez severa o mundo editorial elegeu o ‘outro lado’: o terrorismo. Quando poderiam falar de ‘Os Bush’ x Saddam, CIA x bin Laden, dinheiro x petróleo, a imprensa mundial, com corajosas exceções, cometeu a maior barriga da história. A ‘guerra santa’ da liberdade contra o terror matou mais do que alguns poucos terroristas, soldados desorientados e muitos civis inocentes. Matou o direito à informação, espinha dorsal de uma sociedade democrática. E lidar com esse princípio não é tarefa das mais fáceis. O novo Iraque, livre da ditadura da Saddam, quer também se ver livre da al-Jazira, uma emissora livre demais para o gosto do novo governo.

Rohter para o Oscar

Em meio a tantas incoerências dá para entender por que Moore e a imprensa trocaram de papéis. Enquanto o jornalismo mostra espetacularmente os bombardeios cirúrgicos e trata a morte de seres humanos como ‘efeito colateral’, o cinema revela o nojo dos bastidores do espetáculo, ou pelo menos parte dele. Infelizmente, este não é o único exemplo de que a ficção está se dando bem no terreno jornalístico.

Há três anos, o jornalista Michael Finkel, da revista The Times Magazine, ganhou o Prêmio Pulitzer com uma reportagem ‘turbinada’ sobre a história de um jovem escravo africano. Outra farsa que enganou o Pulitzer veio do Washington Post. Em 1981 a repórter Janet Cooke inventou um personagem chamado Jimmy, de 8 anos, viciado em heroína. Teve que devolver a premiação. No ano passado houve o caso de Jayson Blair no NYT, e em maio último Larry Rohter dizia ao mundo, no mesmo jornal, que as biritas de Lula eram preocupação nacional. Mais ficção, impossível. Em tempos de desemprego e salário de R$ 260, uma das coisas agradáveis capazes de fazer o brasileiro ainda se identificar com o presidente é mesmo uma boa cervejinha.

Bem, do jeito que as coisas andam poderíamos indicar Moore, que já recebeu a Palma de Cannes, para o Pulitzer e, quem sabe, Rohter para o Oscar de roteiro original. Com a questão do Iraque, difícil mesmo seria escolher o melhor na categoria ‘efeitos especiais’.

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Jornalista, diretor do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo e coordenador do projeto Sciencenet de Ciência e Cidadania (www.sciencenet.com.br)