MÍDIA ESPORTIVA
Gilson Caroni Filho (*)
Há seis anos, num sorrateiro 26 de outubro, chegava às bancas do Rio de Janeiro a primeira edição do jornal Lance!. Uma semana depois, no dia 2 de novembro, sairia a edição paulista. Contrariando prognósticos pessimistas, a maior inovação do jornalismo esportivo, nos anos 90, veio para se consolidar como expressão de uma imprensa combativa e inteligente.
Desnecessário falar da importância do futebol no nosso imaginário. Para além de qualquer categoria abstrata (cidadania, por exemplo) é na concretude do torcedor que o brasileiro cria seus mais caros traços identitários. Quem duvidar que ouse confundir um colorado com um gremista nos pampas gaúchos. Será um erro quase tão fatal como ter chamado um "maragato" de "pica-pau", na Revolução Federalista de 1893. A distinção das cores não foge aos partidos políticos. E muitas são as bandeiras petistas que, no Rio Grande, tremulam sem o vermelho de forte simbolismo. Quem pretende conhecer o Brasil passando ao largo do futebol estará se debruçando sobre um país abstrato, despido de paixão e cultura.
Incompreensível que numa formação social como essa a imprensa esportiva tenha sido considerada, por tanto tempo, algo menor. Lugar a ser ocupado pelos menos preparados para o jornalismo. O depoimento de Armando Nogueira a Juca Kfouri, em programa televisivo, é emblemático. Confessando ao primeiro empregador que nada sabia fazer em jornal, ouviu um cáustico "vai trabalhar com esporte". E nada havia de pedagógico nessa determinação.
O campo jornalístico, sempre é bom lembrar, reproduz, mantendo suas especificidades, as virtudes e os vícios da estrutura social em que está inserido. E, nesse ponto, os vícios ganham com folga. A leniência com a cartolagem corrupta e mandonista, a convivência acrítica (quando não vantajosa) com federações viciadas e legislação arcaica fez da imprensa especializada, com raras exceções, a instância de legitimação de uma assimetria assustadora: ao melhor futebol do mundo, dentro de campo, correspondia uma ordem quase escravocrata fora dele. E nela se refestelavam tanto aqueles a quem caberia uma função fiscalizadora quanto os senhores de todas as mazelas.
"Jornalzinho marrento"
Por tudo isso, o pioneirismo do diário, lançado em 1997, é incontestável. Com a revolucionária proposta de criar um espaço para a promoção de efetivas políticas públicas a favor do esporte, o Lance! superou todos os obstáculos que muitos viam intransponíveis. Emplacou, mesmo sendo tablóide. E, apesar do fortalecimento das editorias de esporte dos grandes jornais, conquistou seu nicho no mercado.
Se o Pasquim adotou Apparício Torelly, o célebre Barão de Itararé, como patrono do humor político, não há dúvidas de que o clube de precursores do Lance! contempla visionários que, por falta de estrutura, tiveram reduzida a sua margem de ação. Dois botafoguenses ilustres ressuscitam no diário que circula com edições distintas no Rio e em São Paulo: João Saldanha e Sandro Moreyra. Do primeiro herda a combatividade e o texto enxuto, quase telegráfico. Do segundo, a irreverência ante os desmandos dos poderosos mercadores que se apossaram de clubes, federações e confederações.
Ninguém pode negar que, há seis anos, o jornal presidido por Walter de Mattos Júnior não tem se furtado à boa luta. Tão investigativo como preciso na análise dos seus comentaristas, combateu a CBF e os desmandos de seu presidente. Mostrou, em textos inteligíveis para o leitor, majoritariamente situado na faixa de 15 a 24 anos, o caráter escravocrata da Lei do Passe. Apoiou todas as iniciativas que visavam a estabelecer um calendário viável para o futebol brasileiro. Colidiu com interesses políticos regionais ao defender o fim dos falidos torneios estaduais. Deu amplo espaço às Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) que foram instaladas para apurar irregularidades envolvendo dirigentes esportivos em negociatas lesivas ao patrimônio dos clubes. Vislumbrou no Clube dos 13 a possibilidade de ruptura com modelos organizacionais ultrapassados e lamentou sua domesticação pela CBF.
Sem descuidar de uma inteligente formulação gráfica, que contempla desde o desenho tático ao retrospecto de cada equipe em múltiplas competições, o "jornalzinho marrento" já pode ser considerado a maior vitória da imprensa esportiva. Seu objetivo foi alcançado de forma inquestionável. Elevou o esporte à dimensão política e, ao fazê-lo, inscreveu a ética como elemento propulsor do sucesso esportivo. Seus leitores ludicamente adquirem consciência crítica. Sem dúvida, um golaço.
Um novo jornalismo
Na edição carioca de 17 de agosto, Roberto Assaf relembra o clássico que estabeleceu o recorde de público de jogos entre clubes:
"O Fla-Flu que decidiu o Campeonato Carioca não foi nem melhor nem pior. Apenas diferente. Quem sabe levando ao pé da letra o lema do Salgueiro, que ganhou o carnaval daquele ano com Chica da Silva, uma referência na história do samba. Quem sabe como válvula de escape para a boa porção dos três milhões de cariocas que não encontrava carne nos açougues e feijão nos supermercados, e que reagia de forma distinta diante da greve geral convocada pela então poderosa Confederação Geral dos Trabalhadores para desestabilizar o já combalido governo João Goulart."
Flamengo, Fluminense, Salgueiro, CGT e Jango. O futebol apresentado no contexto histórico não evoca apenas memórias. Dá ao jovem leitor a possibilidade de resgatar a dimensão política de sua paixão. Inscrevê-la numa trama bem mais ampla.
Se pelas virtudes técnicas muito se falou sobre os "meninos da Vila", como classificar um elenco que conta com o texto escorreito de um Paulo César Vanconcellos, as narrativas precisas de Juca Kfouri e José Trajano, a irreverência de César Seabra e a "aplicação tática" de Paulo Vinícius Coelho? Tudo sob o olhar atento de Marcelo Damato, técnico que aprecia o talento individual do time e a eficácia de seu conjunto. O que dizer de um veículo que abriu um espaço sem precedentes para várias modalidades esportivas?
Aqui creio ser perfeita a paráfrase. Há um novo jornalismo sendo jogado pelos meninos do Lance!. Azar de quem não gosta.
(*) Professor titular das Faculdades Integradas Hélio Alonso, Rio de Janeiro